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sexta-feira, 10 de abril de 2020

MALONE - O JUSTICEIRO (1987)


Pode até parecer estranho, considerando a maneira distinta como ambos são vistos hoje, mas existiu um momento do século 20 em que Burt Reynolds e Clint Eastwood tiveram carreiras espelhadas, com decisões muito semelhantes – bem como polpudos cachês e resultados de bilheteria semelhantes. Burt e Clint começaram juntos neste louco mundo do cinema: ainda jovens e desconhecidos, ambos foram contratados como atores regulares pela Universal nos anos 1950, e ambos também foram demitidos no mesmo dia pelo estúdio (segundo uma piada repetida com frequência pelo próprio Burt). Ambos encontraram certo estrelato nos seriados de faroeste produzidos para a TV norte-americana no começo da década de 1960 – Clint em “Rawhide”, Burt em “Gunsmoke”. Ambos foram tentar a sorte na Itália como heróis de western spaghetti, e lá ambos foram dirigidos por Sergios (Leone no caso de Clint, Corbucci no de Burt). Ambos começaram a dirigir seus próprios filmes nos anos 1970 (Clint com “Perversa Paixão” em 1971, Burt com “Gator – O Implacável” em 1976). Ambos fizeram musicais, ambos foram dirigidos pelos seus dublês (Buddy Van Horn e Hal Needham, respectivamente), e ambos tiveram pelo menos um personagem que virou franquia (Dirty Harry para Clint, o Bandit da série “Agarra-me Se Puderes” para Burt). Curiosamente, na década de 1980 ambos tentaram um ponto de virada em suas carreiras baseado no que o outro fazia: enquanto Clint tentou trocar os policiais violentos pelas comédias ao estrelar “Doido para Brigar, Louco para Amar” e “Punhos de Aço”, Burt tentou trocar seus papéis cômicos por policiais violentos estilo Dirty Harry, como diretor e astro de “Caçada em Atlanta”. Finalmente, em 1984, quando estavam entre os astros de maior bilheteria no mundo, Clint e Burt resolveram somar forças e fazer um filme juntos: “Cidade Ardente”, de Richard Benjamin. Tinha tudo para ser um grande encontro estilo “Os Mercenários”, mas ironicamente foi quando as diferenças entre ambos ficaram mais evidentes do que nunca. E, a partir desta experiência (traumática para ambos, segundo as fofocas da época), os astros seguiram carreiras bem distintas: Burt despencou para o ostracismo, enquanto Clint tornou-se um diretor dos mais respeitados.


Inicialmente concebido como um veículo para os dois grandes astros da sua geração, que chegaram a dividir uma famosa capa da revista Time em 1978 (abaixo), “Cidade Ardente” foi uma verdadeira desgraça para o pobre Burt Reynolds: durante uma cena de briga que insistiu em fazer sem dublê, o ator foi atingido violentamente no rosto por uma cadeira de metal.
O golpe quebrou seu maxilar, forçando-o a adotar uma dieta de líquidos por meses. Segundo as más línguas, a dor terrível que sentia também o deixou viciado em analgésicos.

Ocorre que a dieta forçada fez com que o astro emagrecesse a olhos vistos, e isso num momento em que a Aids começava a se tornar uma paranóia global, não tinha cura e era certeza de morte para o paciente. Quando apareceu no seu filme seguinte (“Stick – Um Homem Destemido”, que ele também dirigiu) bastante magro e abatido, Burt acendeu a luzinha vermelha para os tablóides e programas de fofocas, que começaram a levantar a possibilidade de o galã ser HIV positivo.

Por conta do boato, Burt Reynolds ficou queimado durante alguns anos em Hollywood, esta cidade maldita que tem a fama de usar seus astros e estrelas e jogar fora quando não servem mais. O ex-astro acabou fazendo TV, inclusive aparecendo como ele mesmo num episódio do seriado “As Super-Gatas” (aquele que, por ser estrelado por simpáticas velhinhas, ganhou o apelido maldoso de “As Super-GaStas” no Brasil). Mas ainda mantinha o desejo de voltar em grande estilo e ressuscitar sua carreira no cinema.

Foi mais ou menos neste ponto que surgiu o convite para fazer MALONE – O JUSTICEIRO, o tipo de filme de ação que, na época, parecia mais apropriado para o colega Clint Eastwood.


MALONE não foi exatamente um grande sucesso de bilheteria, tampouco resgatou a carreira de Burt do limbo, como ele esperava. Mas em vários países, e também no Brasil, ganhou uma inesperada sobrevida nas prateleiras das videolocadoras e nas reprises na TV aberta. Quem viveu a era de ouro do VHS certamente deve ter visto a capinha da fita de MALONE na sua locadora (acima).

Com um Burt Reynolds mais velho, e visivelmente FURIOSO, disparando uma espingarda e emoldurado pelo mar de fogo de uma explosão, a capinha prometia ação ininterrupta. Na prática o filme não era assim tão emocionante ou explosivo, claro, mas se houve um marketeiro que soube como vender seu produto, este foi o sujeito que fez a (quase enganosa) capinha para a fita do filme.


MALONE começa com uma das “cenas iniciais de apresentação de personagem” mais rápidas da história do cinema de ação: Burt Reynolds é apresentado com um super-assassino da CIA que descobre que já não consegue mais matar. E ele tem esta epifania enquanto segura um rifle de mira telescópica, prestes a enfiar uma bala na cabeça de um alvo anônimo.

No momento seguinte, ele discute com a parceira e igualmente super-assassina Jamie (Lauren Hutton, de “Gigolô Americano” e “O Jogador”) o desejo de largar tudo para procurar o sentido da vida. E é o que ele faz: antes mesmo que terminem os créditos iniciais, nosso protagonista abandonou um atentado pela metade, discutiu seu futuro com a colega e demitiu-se da CIA, tudo em alguns poucos minutos! Tem diretor de filme recente precisando aprender este poder de síntese...


O espectador nunca fica sabendo porque exatamente o protagonista está passando por um momento de reavaliação da vida. Talvez tenha cansado de matar, talvez esteja em plena crise de meia-idade. Mas considerando que Burt era muito vaidoso na época, é bastante corajoso que, logo em sua primeira cena, a câmera dê um baita close no rosto enrugado do ator.

Ele também usa uma vistosa peruca, numa representação bem diferente daquele Burt Reynolds acostumado a papéis de galante e pegador, a que o público da época estava acostumado.


Logo após queimar a carteira de motorista com identidade falsa (“John Haggarty”), simbolizando sua saída do quadro de funcionários da CIA, Burt embarca em seu Mustang – que ama mais do que qualquer outro personagem do filme – e sai em peregrinação pelo interior dos Estados Unidos. Novamente, o roteiro não deixa claro se o protagonista tem um caminho definido ou se saiu pela estrada à revelia. Mas o destino se manifesta quando o carro quebra no meio do nada, num autêntico cu-do-mundo no Oregon (embora o filme inteiro tenha sido todo filmado no Canadá).

O herói empurra seu Mustang no muque até um velho e empoeirado posto de gasolina, onde conhece o proprietário Paul Barlow (Scott Wilson) e sua filha adolescente Jo (Cynthia Gibb). Também descobre que o carro está com problema na transmissão, e que Barlow vai ter que encomendar peças de reposição. Como estão no cu-do-mundo, isso pode demorar semanas.


Bem, Burt não tem nada melhor para fazer e resolve ficar por ali mesmo. Não há hotel na bendita cidade, mas o bastante ingênuo frentista convida aquele completo desconhecido com cara de poucos amigos para ficar hospedado em sua casa enquanto aguarda os reparos. E finalmente o protagonista se apresenta com o nome que dá título ao filme: Malone. Só Malone.

A partir daqui, as coisas se desenvolvem lentamente – o que pode ser um tanto frustrante para quem espera o festival de tiros e explosões anunciado por aquela maravilhosa capinha da fita. Aos poucos Malone ganha a confiança dos Barlow e o coração da jovem Jo (numa insinuação que beira a pedofilia), mas ao mesmo tempo conquista a inimizade dos inevitáveis vilões locais.


Curiosa e inconsequente como toda adolescente cinematográfica, Jo começa a futricar no quarto do hóspede, onde acaba encontrando uma pistola gigantesca (compensação para algo?) numa caixa fechada  a cadeado. Embora visualmente pareça a famosa Wildey que Charles Bronson empunha em “Desejo de Matar 3”, trata-se de um modelo mais moderno de Magnum 44, apelidado de AMC Automag, numa das primeiras piscadelas de Burt para o colega Eastwood (como todo mundo está careca de saber, a Magnum 44 é a arma preferida de um certo Dirty Harry...).


Enquanto isso, Malone faz suas próprias descobertas: os moradores da cidadezinha onde ele está “hospedado” vêm sendo forçados a abandonar suas propriedades e vendê-las a um figurão local, Delaney (Cliff Robertson, que depois foi o tio do Homem-Aranha do Sam Raimi e virou meme). Alguns poucos moradores mais teimosos, como os Barlow, fincaram pé e não pretendem sair. Só que os capangas de Delaney começam a ficar mais violentos e impacientes.

Nosso protagonista chega a testemunhar a fria execução de um dos revoltosos, atropelado pelos homens de Delaney bem na frente do posto de gasolina. O xerife local está na folha de pagamento do figurão, e portanto não se preocupa em investigar nada. Nem mesmo o herói pretende se meter na situação que não lhe diz respeito, ele que só quer ver seu carrinho consertado para poder voltar à sua misteriosa peregrinação. Mas aí os vilões fazem a burrada de, como diz a sabedoria popular, “mexer com quem está quieto”...


Certo dia, enquanto escolta Jo ao centro da cidade a pé, Malone é abordado por um dos caipiras que Delaney contratou para assustar os locais. O sujeito quer confusão a qualquer custo, mesmo que o herói tente evitar o confronto. No momento em que o caipira tenta dar o primeiro golpe, Malone finalmente dá uma demonstração de seus instintos homicidas: numa sequência rápida de porradas, ele arrebenta a cara do antagonista até ele apagar. Olhando furioso para os amigos do nocauteado, com sangue nas mãos, questiona: “Mais alguém?”.

Obviamente, o episódio faz com que o desconhecido bom de briga entre no radar de Delaney, que começa a ver em Malone um possível obstáculo para seus planos de dominação – embora, ressalte-se, o herói não tenha movido um único dedo até ser provocado pelos vilões. E quando o malvadão começa a acionar seus contatos para descobrir mais sobre o misterioso visitante, o paradeiro de Malone é identificado pelos seus ex-empregadores na CIA, que resolvem mandar Jamie para eliminá-lo; afinal, como todo bom super-assassino a mando do governo, ele “sabe demais”.


“Ex-Cop. Ex-CIA. Ex-PLOSIVE” (em bom português, Ex-policial. Ex-CIA. Ex-plosivo), dizia o cartaz original de MALONE. Mas sejamos justos: apenas um terço desta chamada é verdadeiro – a parte do “ex-CIA”. Em nenhum momento se menciona um passado de ex-policial do protagonista; aliás, em nenhum momento se menciona UM PASSADO, ponto.

E “explosivo” é uma qualidade um tanto generosa (e enganosa) para um filme que mantém suas explosões e cenas de ação num mínimo aceitável para a fita ficar na prateleira de “Ação” das videolocadoras – ainda mais considerando que eram os tempos de aventuras barulhentas e exageradas como “Comando para Matar” e a série “Rambo”. Diabos, as aventuras vagabundas da Cannon Films tinham mais tiros e explosões em seus 15 primeiros minutos do que MALONE inteirinho!


Mas MALONE tem uma gênese curiosa, que talvez explique como aquilo que parece um filme de ação tradicional dos anos 1980 terminou com uma narrativa com pretensões de realismo. O projeto surgiu graças ao produtor austríaco Léo L. Fuchs, que ao longo da década de 1970 fez filmes “de arte” na França. Fuchs se encantou com um livro chamado “Shotgun”, do autor sul-africano William Wingate, e comprou os direitos para adaptá-lo para o cinema.

O detalhe é que o produtor queria fazê-lo na França como uma aventura séria e intimista, bem diferente daqueles barulhentos enlatados ianques com heróis musculosos explodindo tudo. Os atores franceses Gérard Depardieu e Christopher Lambert (à época um grande astro por causa de “Greystoke – A Lenda de Tarzan” e “Highlander”) chegaram a ser contatados para estrelar, mas o projeto não vingou. Então Fuchs resolveu recuperar o investimento fazendo o filme nos Estados Unidos com a Orion Pictures.


O roteirista inglês Christopher Frank foi obrigado a “americanizar” seu roteiro original, que inclusive estava escrito em francês, adaptando-o para locações e personagens norte-americanos. Até a motivação dos vilões mudou – eles eram mafiosos no livro e viraram integrantes de um grupo de extrema direita no filme. Na conclusão do livro, o herói Hardacre (não Malone) enfrenta seus adversários numa floresta, montando armadilhas e pegando-os um a um, mais ou menos como Stallone faz em “Rambo – Programado para Matar”. Nada disso sobreviveu na adaptação para a telona.

Numa já lendária entrevista ao jornal Los Angeles Times em janeiro de 1987, publicada com o título “Burt Reynolds is The Comeback Kid” (uma brincadeira com seu desejo de retomar o estrelato), o astro foi extremamente sincero sobre os altos e baixos da sua carreira naquele momento, sobre seus problemas pessoais e sobre como envolveu-se com a produção de MALONE. Até ele achava graça no fato de um projeto oferecido a Depardieu e Lambert ter acabado em suas mãos: “Fico imaginando o quanto os caras tiveram que reescrever o roteiro para que eu me encaixasse no papel!”.


Nesta entrevista, Reynolds destacou que não achava que filmes como MALONE ou “Heat – Encurralado em Las Vegas”, que ele fez pouco antes, iriam salvar sua carreira, mas que pelo menos estava buscando projetos em que acreditava, mais sérios, distantes daquela imagem de fanfarrão cômico pela qual ficou marcado na primeira metade da década. O ator confessou que a Cannon Films tinha oferecido um cachê milionário para que ele fizesse um terceiro “Cannonball Run” (uma das suas séries cômicas mais populares), mas que preferiu recusar para fazer este aqui por muito menos dinheiro. “Pelo menos MALONE e ‘Heat’ são filmes sérios, filmes que as pessoas dizem que eu devia estar fazendo há anos. Não sei se são bons filmes, mas pelo menos estou seguindo o conselho de amigos próximos e fazendo filmes em que eu não apareço apenas pilotando um carro”, destacou.


Respondendo sobre o que lhe atraiu em MALONE, Burt novamente foi sincero: disse que os amigos Steven Spielberg e George Lucas recomendaram o cineasta inglês Harley Cokeliss, que iria dirigir o filme, e isso já lhe bastava. Cokeliss tinha recém feito o clássico da Sessão da Tarde “Black Moon Rising” (que passava na TV brasileira como “Lua Negra – O Super Carro”), e era amigão de Spielberg e Lucas por ter trabalhado como diretor de segunda unidade em “O Império Contra-Ataca”.

Cokeliss não é exatamente o mais popular dos cineastas, mas até então tinha algumas belas curiosidades na sua filmografia: um curta-metragem de 1971 adaptando “Crash!”, de J.G. Ballard, duas décadas antes do longa de David Cronenberg; um média-metragem de 1977 chamado “The Glitterball”, cuja trama é muito parecida com a de “E.T. – O Extraterrestre” (mas saiu cinco anos antes), e a aventura pós-apocalíptica “Blindado Mortal”, de 1982. E, claro, o fato de ter trabalhado na sequência de “Star Wars” mais respeitada por público e crítica.


Em MALONE, Cokeliss vai cozinhando as coisas em banho-maria, gastando um tempão com a construção dos personagens e suas relações. Demora meia hora para que o protagonista finalmente dê porrada num dos vilões, e a partir daí alguns tiroteios esporádicos mantêm o espectador acordado até o combate final na fazenda do chefão Delaney, que (infelizmente) não é nem de longe tão excitante ou violento quanto se espera de um filme de ação de 1987.

As filmagens aconteceram entre agosto e setembro de 1986, mas há relatos de que parte da equipe voltou ao estúdio em outubro para rodar um novo final. Hoje não se sabe como era a conclusão original, e se era melhor ou pior, mas o desfecho que se vê na tela é algo perceptivelmente improvisado e tapa-buraco, além de absurdamente anti-climático. Sequer existe um confronto entre o herói Burt Reynolds e o grande vilão Cliff Robertson – os atores nem mesmo dividem o quadro, evidenciando que suas cenas foram gravadas separadamente, e apenas escutamos um som de tiro para ilustrar que o herói matou o vilão, porém sem ver coisa alguma!

Felizmente, o diretor depois nos entrega uma grande explosão, seguida por um já antologico momento que mostra Malone/Burt caminhando despreocupadamente em direção à câmera enquanto tudo pega fogo às suas costas (que sempre era usado pela Globo no comercial quando o filme passava na TV).


Apesar do ritmo lento, as poucas e esparsas cenas de tiroteio de MALONE são muito bem filmadas e convincentes. Em cada uma destas cenas, os tiros disparados pelo herói têm o impacto de uma bala de canhão nos inimigos, que são catapultados para metros adiante com um rombo no tórax. Numa cena em particular, o tiro de espingarda de Malone abre um buraco extremamente sangrento que atravessa um capanga, produzido com visível exagero pela equipe responsável pelos squibs (aqueles explosivos com sangue que eram detonados de verdade, um efeito que hoje é produzido por CGI).


Vale menção também o confronto entre Malone e um capanga interpretado pelo ator cult Tracey Walter numa barbearia (a segunda piscadela para Clint Eastwood, já que a cena é muito parecida com o confronto na barbearia que Clint filmou e protagonizou em seu western “O Estranho Sem Nome”).

Walter interpreta o irmão do caipira espancado pelo herói momentos antes, e protesta que o sujeito talvez não consiga mais ter filhos porque levou um violento chute no saco desferido por Malone. “Sabe, isso pode ser uma bênção”, ironiza o protagonista, forçando Walter a sacar sua arma. Em segundos, o sujeito é varado por um tirambaço da Magnum 44 que o faz atravessar meio cenário!


Apesar de algumas frases de efeito aqui e ali, Burt interpreta Malone totalmente a sério – não há nem sinal do astro bem-humorado e cheio de piadinhas de filmes como “Quem Não Corre Voa”. Sua hilária e característica risada nunca é ouvida, e dá para contar nos dedos as cenas em que aparece sorrindo. É um protagonista problemático, quase anti-herói, difícil de simpatizar, na linha dos que Chuck Norris “interpretava” para a Cannon Films no período.

Infelizmente, o roteiro tem diversos problemas que desafiam até a lógica. Lá pelas tantas Jamie, a parceira e amante do herói, é morta por um dos vilões, que a sufoca envolvendo sua cabeça com plástico. Malone não estava presente no momento (ou não teria deixado isso acontecer), e portanto não tinha como saber quem foi o responsável pela sádica execução. Mesmo assim, no ataque final à fortaleza de Delaney, ele despacha o sujeito que matou Jamie usando o mesmo método (um saco plástico na cabeça), e ainda comenta: “Vamos ver se você gosta disso”. Olho por olho e tal, só que jamais se descobre como ele sabia que aquele era o cara que procurava! A não ser que matasse todo e cada capanga usando o saco plástico até acertar o alvo, e não é o caso.


O aspecto mais curioso de MALONE é que ele se apresenta como um “western modernizado”, atualizando aquela clássica história do cowboy que chega por acidente num vilarejo e resolve tomar as dores de seus indefesos habitantes, defendendo-os do inescrupuloso vilão que usa de violência para tentar tomar suas terras. Qualquer semelhança com “O Cavaleiro Solitário”, que Clint Eastwood dirigiu e estrelou em 1985, só pode ser mais uma piscadela de Burt para o colega.

Na mencionada entrevista ao Los Angeles Times, o próprio astro fez a analogia com o western: “Sejamos honestos, o filme é igual a ‘Shane’”, confessou, referindo-se ao clássico dirigido por George Stevens em 1953, que no Brasil ganhou o escalafobético título “Os Brutos Também Amam”.


Assim como MALONE, “Shane” trata de um misterioso personagem de passado desconhecido que chega aleatoriamente a uma pequena cidade, ganha a simpatia de uma família e resolve defendê-la do rico fazendeiro que explora a região. Em “Shane” existe um moleque insuportável que fica obcecado pelo pistoleiro, e na conclusão põe-se a gritar “Shaneeee! Shaneeeee! Come back!” quando o protagonista vai embora cavalgando em direção ao sol.

Em MALONE, o moleque cresceu e virou a adolescente Jo. O filme tenta apimentar as coisas e sugere um romance entre Cynthia Gibb e Burt Reynolds, separados por mais de 30 anos de diferença. Felizmente o bom senso prevalece e a coisa fica apenas na sugestão: o protagonista rechaça o avanço da adolescente quando ela tenta sensualizar com uma blusa decotadinha. Na despedida no final, Malone beija a menina nos lábios, num momento que já parecia errado na época, imagine hoje!


Ao final, como acontecia em “Shane”, o espectador continua sem saber muita coisa sobre o herói cujas aventuras acompanhou durante 90 minutos. Sua ficha corrida aparece num computador quando Delaney pesquisa o histórico do arquiinimigo, e descobrimos que ele liderou várias missões secretas para o governo ao redor do mundo. Em dado momento, Malone confessa que passou pela Guerra do Vietnã, mas logo no comecinho do conflito, em 1961. Quando alguém lhe pergunta se não era muito cedo para estar ali, o herói responde: “Não para o trabalho que eu fui fazer”.

No fim, descobrimos que “Richard Malone”, o nome utilizado pelo protagonista durante considerável parte do filme, não passa de outra de suas identididades falsas da CIA. Enquanto sobem os créditos finais, vemos “Malone”, ou seja lá como ele se chama, queimando mais uma vez a falsa carteira de motorista com seu nome, quem sabe preparando-se para assumir uma nova identidade em alguma próxima aventura que nunca foi filmada. (Se você também cresceu lendo a revista Mad, dá uma checada na assinatura que aparece mais acima no documento enquanto ele queima: “Alfred E. Newman”, nome do garoto banguela que era mascote da publicação!)


E se “Shane” (e inúmeros westerns produzidos antes e depois) tinha como vilão um rico fazendeiro que usava de ameaças e violência para comprar as terras dos outros, sua atualização em MALONE ganhou ares políticos. Nunca fica bem claro qual é o objetivo de Delaney, o vilão interpretado por Cliff Robertson, mas no final ele “explica” ao protagonista que pretende fazer da cidadezinha (assim que terminar de comprá-la, claro) a primeira das suas bases de operações pelos EUA, onde ele estoca armas e explosivos preparando-se para algum bizarro plano de dominação.

Também não fica bem claro se Delaney é um militante de extrema direita (numa cena ele aparece discutindo seu plano de dominação com senadores que concordam com seus “ideais”, e faz um discurso bem no estilo “Make America great again”) ou o líder de um grupo de supremacistas brancos, já que usa termos como “raça pura”, e seus homens praticam pelo menos um crime contra um inimigo político negro. Não que uma coisa exclua a outra, lógico: como se sabe, extrema direita e preconceito costumam caminhar bem juntinhos. Citando Thomas Jefferson e até Henry James (“Patriotismo, como caridade, deve começar em casa”), o vilão não poderia estar mais atual – e ver Burt Reynolds sentar tiro, porrada e bomba nesta corja ultranacionalista faz o filme parecer ainda melhor agora.


Embora o envelhecido Burt esteja muito bem como protagonista serião, quase sempre calado e com cara de poucos amigos, MALONE não fez o sucesso que todos esperavam, e uma possível nova carreira como astro de ação enrugado não vingou. Ele sequer tinha grandes memórias da obra, mencionada numa única frase na sua autobiografia “My Life”, quando conta que o filme lhe rendeu algum dinheiro, ponto. Burt até tentou fazer outros policiais depois, mas sem demora estava voltando às comédias, e delas despencaria direto para seriados de TV e telefilmes.

Durante sua fase decadente, ele voltaria a ter alguma dignidade no final dos anos 1990, quando foi ressuscitado por Paul Thomas Anderson ao interpretar Jack Horner, o produtor de cinema pornográfico da obra-prima “Boogie Nights – Prazer Sem Limites” (1997). Mas embora o papel tenha lhe rendido até uma indicação ao Oscar, o ator saiu do set brigado e jurava que nunca tinha visto o filme pronto. Péssimas escolhas posteriores (como aquele terrível “Driven”, ao lado de Stallone) terminaram por sepultar de vez o que restava da sua carreira.


O golpe de misericórdia foi o fato de Burt ter morrido pouco antes de filmar suas cenas para “Era uma Vez em Hollywood”, de Quentin Tarantino. O cineasta tinha declarado várias vezes que amava o trabalho do ator, e o núcleo central de “Era uma Vez em Hollywood” (a relação entre o astro em fim de carreira interpretado por Leonardo DiCaprio com seu dublê vivido por Brad Pitt) era confessadamente baseado na amizade entre o próprio Burt Reynolds e seu dublê Hal Needham na vida real. Não fosse a foice da morte, esta teria sido uma bela oportunidade para o ator encerrar sua carreira com alguma glória (o papel que ele faria no filme ficou com Bruce Dern no fim das contas).

Como compensação, Adam Rifkin fez uma linda homenagem a Burt no quase desconhecido “The Last Movie Star” (2017), em que o ator aparece interpretando uma curiosa versão dele mesmo: um envelhecido e esquecido ex-astro revisitando a própria carreira. As cenas que mostram o “velho Burt” interagindo com o “jovem Burt” de “Amargo Pesadelo” e “Agarra-me se Puderes” são fantásticas.


Se hoje MALONE parece uma aventura bem mais palatável e divertida do que na época em que foi produzido e lançado, também acabou se tornando uma daquelas experiências estilo “What if...?” (E se...?). Porque vendo-o ou revendo-o atualmente, é impossível não se pegar pensando: E se o filme tivesse feito sucesso e ajudado Burt Reynolds a recuperar o estrelato? Será que ele continuaria dirigindo, e alcançaria o respeito e a admiração da crítica e da Academia como o colega Clint? Será que teria uma sobrevida tipo Liam Neeson quando fez “Taken” ou Charles Bronson trabalhando para a Cannon, tornando-se um astro de ação geriátrico? Será que escaparia de micos como “Striptease” (aquela “comédia” com a Demi Moore) e “Um Tira e ½”, onde divide a tela com uma criança espertinha, tentando imitar Schwarzenegger em “Um Tira no Jardim da Infância”?

Seja como for, Burt Reynolds foi indiscutivelmente um dos grandes, dirigido, em mais de 100 filmes, por alguns dos maiores nomes de ontem e de hoje (Robert Aldrich, Paul Thomas Anderson, Sergio Corbucci, Robert Altman, Blake Edwards, Peter Bogdanovich, Mel Brooks, John Boorman, Samuel Fuller...). Se hoje é ignorado por uma nova geração, certamente não é por falta de méritos – e isso diz mais sobre as pessoas que o ignoram do que sobre o próprio Burt.

PS: A mesma trama do sujeito que protege uma cidadezinha do vilão que quer comprar terrenos alheios à força foi reaproveitada dois anos depois – e bem melhor – no clássico do cinema de ação oitentista “Matador de Aluguel”, com Patrick Swayze.


Trailer de MALONE

23 comentários:

Jamal Singh disse...

MALONE é uma das capas de VHS referenciadas pelos colecionadores em REWIND THIS, mas não tinha reconhecido o Burt Reynolds na capa. Adorei a resenha, mais do que analisar o filme você acabou fazendo uma biografia do possuidor de um dos melhores bigodes que passou por esse mundo.

Pedro Pereira disse...

De facto é um filme com problemas e falta de sentido lógico e sequencial mas eu gostei bastante. Serviu até para me levar a stockar alguns filmes dele que, ou nunca vi ou já devo uma revisada.

Colecaoema disse...

Realmente, Burt Reynolds foi um dos atores mais carismáticos de todos os tempos. O sorriso e o sarcasmo eram inigualáveis. Merecia muito mais!

spektro 72 disse...

Ele podia ser um canastrão na tela .. mas na minha humilde opinião era um bom ator e fiquei muito triste quando ele deixou esse plano e partiu para o plano espiritual,seus filme ate hoje estão na minha memoria ,Agarre -me se puderes Desta vez te agarro e Agora você não escapa ,Quem não corre .. voa ,Um Rally muito Louco ,Ladrão por Excelência, Encontros e Desencontros,,Caçada em Atlanta,Crime & Paixão,Tubarão (1969) Cidade Ardente,A Melhor Casa Suspeita do Texas, Malone Golpe Baixo (ele fez as duas versões o original e o remake ),Um Alibi para um Suspeito ,Amargo Pesadelo ( esse filme é um dos melhores trabalhos de Reynolds na tela e nesse filme só tem feras contracenado com ele como ,Ned Beatty,Ronny Cox e John Voight , eu assisti muitas vezes na madrugadas da Globo) dentre outros filmes tantos filmes em que ele atuou .
Curiosidade no filme " O Imbatível " de 1983 fora o fracasso no cinema deste filme Reynolds ,tambem sofreu com o divórcio da sua parceira de filme e esposa Loni Anderson ,quando ela pediu o divórcio dele em 1993 ela pegou uma boa parte da fortuna que ele havia adquirido durante á sua carreira e para reaver á sua fortuna com esse divorcio ele foi garoto-propaganda de rede de locadoras " Blockbusters" nos Estados Unidos ,pois o dono dessa rede era grande fã dele e convidou para tal e ele (Reynolds) aceitou e ambos viraram grandes amigos .
E por último ,muito boa essa sua resenha desse clássico filme de ação casca - grossa ,que passou muitas vezes na tela da Rede Globo ,durante á década de 90 e inclusive esse filme foi exibido ate nas tardes desta mesma emissora .. mas faz muito tempo que esse filme não é exibido na TV ,assim como tantos outros que sumiram com o passar dos anos.
Um abraço de Spektro 72.

Alexandre Carvalho disse...

"Amesma trama do sujeito que protege uma cidadezinha do vilão que quer comprar terrenos alheios à força foi reaproveitada dois anos depois – e bem melhor – no clássico do cinema de ação oitentista “Matador de Aluguel”, com Patrick Swayze."

Eu percebi essa semelhança e será isso um spoiler para uma futura análise de Matador de Aluguel?

Burt Reynolds foi um dos grandes heróis de ação que já tivemos,acredito que da velha guarda ainda temos a lenda viva Clint Eastwood.

Anônimo disse...

Muitos filmes em que Burt Reynolds atuou e passaram na TV foram dublados pelo o grande ator e dublador André Filho falecido no incio da década de 90,ótima postagem,valeu!

Anônimo disse...

Eu li o livro sobre o GTA e na parte em que mencionam o Burt Reynolds, um dos produtores do jogo o chamou de tremendo cuzão. Ele devia ser um pé no saco de trabalhar. (Ele dublou o personagem Avery Carrington em GTA Vice City e curiosamente nunca voltou ao personagem).

Leonardo Peixoto disse...

A imagem de Cliff Robertson com a bandeira americana ao fundo me fez lembrar imediatamente de "Fuga de Los Angeles" , onde ele interpretou o presidente que transformou os Estados Unidos em uma teocracia .

Fernando disse...

Obrigado por citar este The Last Movie Star, nunca tinha ouvido falar... Baixei e acabei de assistir,bela homenagem mesmo.

Allan1988 disse...

Felipe, quando vai vai ter a 400° postagem do Filmes Para Doidos? Abraço.

Felipe M. Guerra disse...

ALLAN, esta do "Malone" foi a 399ª postagem! :-D

Anônimo disse...

Outro filme que tem trama semelhanteao brutos tb amam e malone é o vencer ou morrer do van damme

Anônimo disse...

O outro filme tambem que é parecido á historia dos " Os Brutos tambem Amam" é " O Cavaleiro Solitario" de Clint Eastwood feito em 1985 e campeão de reprise das sessões de filmes do SBT,dublado duas vezes pela Herbert Richers uma com á voz de Eastwood dublada pelo o falecido dublador Orlando Prado que dublou ele em vários filmes antigos de década de 70 e inicio de 90 e depois com o seu dublador substituto Márcio Seixas que dublou toda á saga da serie "Dirty Harry" .Esperamos á postagem 400.

Unknown disse...

Tem um outro filme na mesma linha com DON JOHNSON que vai para numa cidade do meio oeste dominada por supremacistas brancos.. Liderados por CLIFF ROBERTSON .. vou descobrir

Felipe M. Guerra disse...

Lembro do Don Johnson enfrentando supremacistas em NA TRILHA DOS ASSASSINOS (Dead Bang), filmão do John Frankenheimer. Mas o Cliff não está neste.

Anônimo disse...

Assisti no domingo maior no inicio dos anos 90, ótimas lembranças, se possível faça um post da trilogia agarre me se puderes, no mesmo estilo do Bradock 1, 2 e 3, seria show de bola!!!

Anônimo disse...

19:22 É porque o Burt agiu como um babaca e até ameaçõu fisicamente o Dan Houser (um dos irmãos criadores de GTA).

Nessa matéria fala tudo: https://www.wired.com/2012/03/ray-liotta-vice-city/

Houser, que é britânico, contou que, numa cena específica de Vice City, discutiu com Burt Reynolds, que terminou respondendo: "Tire o britânico daqui", usando o termo "limey", que é uma forma pejorativa e desdenhosa dos norte-americanos se referirem aos ingleses.

Anônimo disse...

Percebi agora que o ator Pedro Pascal de Game of Thrones e Narcos é cara de Burt Reynolds.

Kaiketsu Zubat disse...

Tiro porra e bomba, por um momento pensei que estivesse lendo uma crítica de filme pornô hehehe.

Ótima resenha Felipe!!!

Felipe M. Guerra disse...

KAIKETSU, corrigido está. Valeu pelo aviso.

Johnny Cool 31 disse...

Nos meus 12 ou 13 anos vi esse filme no Corujão da Globo. Fiquei dias pensando nesse filme, as cenas violentas bem feitas... Enfim procurei por anos até me esquecer dele. Aí vieram os torrents. Encontrei, sem legendas. Rs
Agora há duas semana me lembrei dele e encontrei, agora sim com legendas. Vou ver hoje!
Um abraço.

Ps: estou acompanhando esse blog desde 2008. Só me trouxe alegrias.

Gorila Games disse...

Meus sinceros parabébs por essa resenha! Acho que é a melhor existente na internet sobre o filme.

O Burt Reynolds, sem dúvidas, merece todo o nosso respeito e atenção.

E não sei por que, eu acho que eu prefiro os efeitos especiais dos filmes anteriores à década de 90, kkkkk.

Abraços!

Anônimo disse...

Burt Reynolds é um homem tão viril. Ele é o elenco perfeito para Wolverine.