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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

VENOM (1981)


Quando VENOM foi originalmente concebido, no começo da década de 1980, era o projeto dos sonhos de todo fã de cinema fantástico. Analise: o produtor norte-americano Martin Bregman (que fez filmaços como "Scarface" e "Um Dia de Cão") ia bancar a versão para o cinema de um best-seller do sul-africano Alan Scholefield sobre uma terrível cobra assassina, adaptado pelo roteirista Robert Carrington ("Um Clarão nas Trevas") e com direção de Tobe Hooper, que tinha acabado de dirigir "Pague Para Entrar, Reze Para Sair" para a Universal.

O filme seria rodado em Londres, com um elenco dos sonhos: nos papéis principais, o veterano Sterling Hayden ("O Grande Golpe") e grandes atores como Oliver Reed, Klaus Kinski, Sarah Miles ("Blow-Up - Depois Daquele Beijo") e Susan George, além de vários talentos do cinema inglês, como Nicol Williamson ("Excalibur").

Enfim, não tinha nada para dar errado, mas às vezes os deuses do cinema resolvem intervir e fazer com que projetos dos sonhos, como este, se transformem num verdadeiro pesadelo. E assim VENOM tornou-se mais conhecido pelo bafafá nos bastidores do que pelo resultado como filme em si.


Para resumir a história, o ator alemão Klaus Kinski - que, como se sabe, era um carrasco para todos os cineastas com quem trabalhou - odiou Hooper desde o primeiro dia das filmagens, e começou um motim com outros astros (principalmente Oliver Reed) para pedir a cabeça do diretor. Consta que, após dez dias de filmagens, Hooper teve um colapso nervoso e abandonou o projeto alegando "diferenças criativas", levando junto o seu diretor de fotografia.

A vaga foi preenchida às pressas por Piers Haggard, um inexpressivo diretor da TV inglesa que é mais conhecido por ser bisneto do aventureiro e escritor Henry Rider Haggard (autor de "As Minas do Rei Salomão") do que propriamente por seu trabalho como cineasta.

E quando parecia que a calma iria reinar, Kinski e Reed começaram a brigar entre eles, transformando as filmagens num inferno - o stress entre os dois atores fica bem claro em cada fotograma que dividem no filme.


Enfim, o clima era tão pesado que o diretor Haggard declarou que a única pessoa simpática no set era a própria cobra assassina!

Depois que VENOM milagrosamente ficou pronto, o estúdio errou no marketing. Ao invés de divulgá-lo como uma trama policial com uma pequena surpresa (o ataque de uma mortífera serpente mamba negra), os realizadores fizeram questão de salientar a presença do bicho desde o início, como se fosse um filme de horror sangrento e assustador. Em comparação, imagine se "Um Drink no Inferno", de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino, tivesse sido divulgado desde o início como horror podreira com vampiros - o que não aconteceu.

(Os pôsteres de cinema de VENOM inclusive propagandeavam, exageradamente: "O mistério de 'Os Pássaros', o perigo de 'Psicose', o medo de 'A Profecia', o terror de 'Tubarão', e agora o máximo em suspense!".)


O resultado do "projeto dos sonhos" foi fiasco nas bilheterias e destruição sumária pela crítica, fazendo com que o filme ficasse esquecido durante anos no limbo de produções complicadas e filmes problemáticos. Só foi redescoberto quase 20 anos depois, quando ganhou certa aura cult exatamente pela quantidade de talentos envolvidos - muitos deles pagando o maior micão.

VENOM é muito mais história policial do que de horror, e envolve o sequestro do pequeno Philip Hopkins (Lance Holcomb), filho de um casal de milionários, por um grupo de violentos criminosos. A quadrilha é liderada por Jacques Müller (Kinski), associado ao motorista do casal, Dave (Reed), e à babá do garoto, Louise (Susan George).


Os criminosos aproveitam uma viagem dos pais de Philip para invadir a casa, depois de afastar de lá o avô do garoto - um explorador chamado Howard Anderson (Hayden), que fez muitos safáris na África.

As coisas começam a dar errado desde o começo: primeiro é o avô que volta para casa antes do tempo; depois Dave, com os nervos em frangalhos, atira com uma espingarda num policial, atraindo toda a polícia da cidade até o local.

Mas o pior ainda está por vir: devido a um erro da atrapalhada balconista de uma loja de animais, o pequeno Philip acabou de levar para casa uma caixa contendo uma mamba negra no lugar da inofensiva cobra doméstica que ele tinha ido buscar. E, conforme a médica especialista em toxicologia Marion Stowe (Sarah Miles) faz questão de ressaltar, a mamba negra é a serpente mais agressiva e venenosa do planeta!


Isso fica claro desde o primeiro ataque do bicho, quando a caixa em que ele estava preso é aberta por Philip: sobra para a pobre babá Louise, picada várias vezes, no pescoço e no rosto, pela furiosa serpente. O veneno age em minutos e ela morre sofrendo dores atrozes, numa cena impactante.

A partir daí, porém, VENOM vai ladeira abaixo. Afinal, como já escrevi lá em cima, trata-se de uma trama policial, e não uma história de horror. A cobra some, fugindo para os dutos de ventilação da casa, enquanto o filme gasta um tempão mostrando o cerco da polícia e as negociações do sequestradores para tentar sair da delicada situação.

Demora uns bons 40 minutos para a terrível mamba negra voltar a dar o ar de sua graça, e ela só ataca novamente perto do final (!!!), transformando o filme numa verdadeira agonia para quem esperava um horror sobre cobras assassinas.


Na verdade, VENOM não é tão ruim quanto a crítica da época considerou; o problema é justamente a questão da expectativa, pois a produção jamais deveria ter sido lançada como horror escabroso. Afinal, a presença da serpente venenosa é tratada como um aspecto secundário da história, e na maior parte do filme apenas vemos a dita cuja se arrastando pelos dutos de ar - embora sua presença seja temida pelos amedrontados personagens forçados a ficar presos dentro da casa com um dos bichos mais mortais da natureza!

Seria diferente, talvez, se fossem várias serpentes ao invés de uma só, ou mais vítimas para serem atacadas pela bicha. (SPOILER) Do jeito que está, o negócio até ficou bem moralista, pois apenas os três bandidos são atacados e mortos pela mamba negra, e nenhum dos bonzinhos chega a sequer correr perigo de vida. (FIM DO SPOILER)


Infelizmente, a trama do sequestro também é burocrática e mal-desenvolvida, pois os bandidos nunca parecem uma ameaça real aos personagens do garotinho e seu avô (ao contrário da terrível mamba negra), nem fazem grande coisa além de ficar brigando entre si e tagarelando com a polícia.

Sabendo disso - que a cobra aparece pouco e o foco é na trama policial -, dá para encontrar boas qualidades em VENOM. A principal delas é a forma como a serpente é tratada como uma ameaça real e terrível, e suas esporádicas aparições a aproximam de um vilão de slasher movie, geralmente dando o maior susto no espectador - como quando Dave vai servir-se de uísque e encontra a cobra na maior moleza dentro do barzinho!


Para quem morre de medo de cobras, como eu (que, na infância no interior, quase fui picado duas vezes por serpentes venenosas!), o filme é igualmente eficaz porque a mamba negra realmente parece uma criatura agressiva e perigosa.

O ataque a Susan George é chocante, violento e inesperado, e na maior parte das cenas uma cobra verdadeira foi utilizada, dando um ar ainda mais ameaçador à grande vilã (hoje provavelmente usariam CGI de quinta categoria).


Finalmente, o grande mérito dessa produção esquisita é sua insólita reunião de talentos. Quando vi o nome de Sterling Hayden nos créditos, pensei que ele faria apenas uma participação especial, considerando que já estava bem velhinho à época das filmagens.

Mas não, Hayden participa ativamente da trama e até tem uma cena de forte suspense em que é obrigado, por Jacques, a revistar um quarto escuro à procura da mamba negra. Este é o último filme do ator, que morreu em 1986.


Confesso que também é divertidíssimo ver astros do calibre de Klaus Kinski, Oliver Reed, Susan George e Sarah Miles sendo aterrorizados por uma cobra venenosa. Eu sempre disse que esses filmes com animais assassinos, gigantes ou em tamanho natural, são um porre, a não ser que os produtores coloquem gente conhecida para morrer.

É o caso aqui: quem diria que um dia veríamos um ator do calibre de Oliver Reed tomando uma picada de cobra no pinto!!!


Mas o mais legal é a presença de Klaus Kinski na bagaça. É possível observar, em cada cena do filme, a tensão existente entre ele e Reed - lembre-se que os dois brigaram o tempo todo durante as filmagens, e, para piorar, dividem diversas cenas!

Também é visível o desgosto do alemão maluco em participar do filme. Quando ele é atacado pela cobra, no final, quase dá para ler na expressão do ator algo do tipo: "Mas que diabos eu estou fazendo aqui?".

E sabe o que é mais engraçado? Para aparecer em VENOM, Kinski recusou um convite de um tal de Steven Spielberg para aparecer num filminho quase desconhecido chamado "Os Caçadores da Arca Perdida"! Acredite se quiser, mas o papel do nazista torturador (que ficou com Robert Lacey) tinha sido escrito especialmente para Kinski. Em sua autobiografia, o ator declarou que o roteiro era uma merda e que optou por enfrentar a serpente assassina porque o salário era melhor!!!


O resultado é essa doideira perdida entre gêneros, que ficaria bem melhor sem a meia hora de história policial no primeiro ato (as burocráticas cenas que mostram os tiras isolando a área e negociando com os vilões parecem coisa de telefilme, e tomam um tempão), e com mais ataques da safada da mamba negra, que é uma vilã de respeito.

Inclusive eu sempre achei que as cenas de ataque da cobra, bem gráficas e violentas, tinham sido filmadas por Hooper, com Haggard tapando os buracos ao filmar as cenas com os policiais. Mas o diretor substituto garante que todos os takes feitos por Tobe foram descartados, e que ele mesmo filmou tudo que está na tela. Como o próprio Hooper jamais se manifestou sobre o caso, teremos que ficar com a palavra do cineasta inglês...


O roteiro também desperdiça a presença de um especialista em répteis do zoológico chamado pela polícia para ajudar a capturar a cobra, interpretado por Michael Gough (o Alfred nos "Batman" de Tim Burton e Joel Schumacher). Apesar de ser baseado num sujeito real, David Ball, o personagem não alça maiores voos e é esquecido em poucos minutos, quando poderia ter rendido melhor caso conseguisse entrar na casa e participasse da caçada à cobra.

(Nos créditos finais, há uma mensagem de agradecimento ao verdadeiro Ball, que ajudou os produtores a manipular a cobra verdadeira usada durante as filmagens. Diz o texto: "Sem a sua habilidade e coragem no tratamento da mortal mamba negra, este filme jamais teria sido feito".)


Longe de ser um filmaço, VENOM diverte pelo inusitado (ver astros e estrelas conhecidos à mercê de uma cobra venenosa) e pelos esporádicos ataques da serpente, muito bem filmados. Cansa um pouco por enrolar mais do que deveria, e por mostrar a grande vilã menos do que poderia, mas eu sinceramente já vi coisas bem piores sendo laureadas pela crítica e pelo público.

Assim, dispa-se do preconceito e tente conferir o filme pelo que ele realmente é: uma produção tumultuada, problemática, que poderia ter sido muito melhor, mas engasgou no meio do caminho.


Se for o caso, use o FF para passar o miolo chato envolvendo a operação policial, e divirta-se com uma vilã reptílica que dá um banho, em agressividade e ameaça, em todas as suas rivais gigantes desses filmes com cobras monstruosas, tipo "Boa Versus Python" e "King Cobra". Porque tamanho, definitivamente, não é documento!

PS 1: Há pelo menos mais dois filmes com terríveis mambas negras que vale a pena procurar. Um é "Jogo Fatal" (Mamba, 1988), sobre um marido perturbado que se vinga da ex-esposa trancando-a num apartamento na companhia da cobra venenosa; o outro, claro, é "Kill Bill Volume 2", de Quentin Tarantino, em que Michael Madsen tem um encontro nada agradável com uma mamba negra (em cena bem parecida com o ataque a Susan George em VENOM), enquanto Daryl Hannah sadicamente lê as propriedades mortais do veneno do réptil!

PS 2: Tobe Hooper foi despedido ou afastou-se de inúmeros outros projetos por "diferenças criativas" (que, segundo as más línguas, era a desculpa oficial para o seu notório vício em cocaína). Ele iria dirigir, por exemplo, "The Dark" e "A Volta dos Mortos-Vivos" (foi substituído, respectivamente, por George Bud Cardos e Dan O'Bannon); também iria dirigir o famoso filme do Homem-Aranha que seria produzido pela Cannon Films e algumas produções da Empire Pictures, mas nada disso saiu do papel.

Trailer de VENOM




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Venom (1981, Inglaterra)
Direção: Piers Haggard
Elenco: Klaus Kinski, Oliver Reed, Sterling Hayden,
Susan George, Sarah Miles, Nicol Williamson,
Lance Holcomb e Michael Gough.

domingo, 27 de setembro de 2009

O GRANDE GOLPE (1956)


Sempre que um diretor ganha status de gênio ou se transforma em lenda, é comum que seus primeiros filmes sejam esquecidos, ou considerados "produções menores" em comparação aos clássicos que dirigirá posteriormente.

Foi assim, por exemplo, com Francis Ford Coppola, que antes de "O Poderoso Chefão" e "Apocalypse Now" dirigiu um pequeno filme de horror produzido por Roger Corman, "Dementia 13", que a maioria dos cinéfilos costuma descartar (embora seja ótimo). Foi assim também com Spielberg: muitos de seus fãs nunca viram o clássico "Encurralado", um de seus primeiros e melhores filmes.

E tem também o Stanley Kubrick. Cinéfilos de todas as idades se divertem tentando eleger os melhores filmes desse grande diretor, e é claro que figurinhas carimbadas, como "2001", "Laranja Mecânica" e "Dr. Fantástico", normalmente dominam os "Top Ten" do diretor. No caso de uma filmografia praticamente impecável, como a de Kubrick, é até comum dar menos importância para seus primeiros filmes, aqueles que ele fez ainda jovem e com pouca influência no mundo do cinema.


Mas não se engane: O GRANDE GOLPE, que é apenas o terceiro filme do diretor, é uma daquelas obras-primas esquecidas que teve maciça influência na cultura pop. Também é, provavelmente, um dos melhores filmes de roubo da história. Mesmo assim, raramente aparece em qualquer "Top Ten" de Kubrick. Eu, pelo menos, o colocaria entre os cinco melhores do diretor, sem pensar muito.

Lembro que só descobri que O GRANDE GOLPE existia depois de ter visto "Cães de Aluguel", no começo dos anos 90. Um ex-colega de trabalho falou maravilhas e praticamente me obrigou a ver, contando o filme inteiro como uma forma de me preparar para a cena final: "O cara tem um trabalhão para inventar um plano perfeito, todo mundo morre, aí ele vai para o aeroporto tentar fugir com todo aquele dinheiro e... Bom, aí tu tem que ver o que acontece", relatou o saudoso ex-colega, completando: "Dá dez a zero no 'Cães de Aluguel', e deve ser um dos melhores finais de filme de todos os tempos!".

Resultado: abobalhado pela propaganda feita, tive que ficar acordado até umas quatro da manhã para poder gravar o filme do Corujão, quando a Globo ainda passava esses clássicos na madrugada (afinal, ele não havia sido lançado em VHS no Brasil, e o DVD só chegaria quase uma década depois). Foi só aí que percebi como o incensado filme do Tarantino era bastante inspirado no de Kubrick, além, é claro, de pegar diversas idéias de "Perigo Extremo", do Ringo Lam.


Quando Kubrick fez O GRANDE GOLPE, ele já tinha certa moral no mundo do cinema por causa do sucesso do seu segundo trabalho, o estiloso "A Morte Passou por Perto" (1955).

Dessa vez, o diretor resolveu adaptar o livro "Clean Break", de Lionel White. Escreveu um roteiro não-linear e chamou Jim Thompson, um famoso autor de "pulp fictions" da época ("Os Implacáveis", do Peckinpah, foi baseado em livro dele), para criar diálogos memoráveis. E que diálogos: "Você tem um maço de dólares onde as outras mulheres têm um coração", "Moça, você tem uma bela cabeça sobre os ombros. Quer mantê-la aí ou sair carregando nas mãos?", e nessa linha vai.

O GRANDE GOLPE trata do minucioso planejamento de um crime perfeito. Johnny Clay (Sterling Hayden, nome imposto pelo estúdio, mas ótimo no papel) é um criminoso que acabou de sair da cadeia e está disposto a dar o "grande golpe" para poder curtir o resto da vida como milionário.


O objetivo é roubar dois milhões de dólares (um dinheirão na época; se bem que hoje também é, pelo menos para mim!) de um hipódromo, bem no dia de uma grande corrida de cavalos que vai levar uma multidão ao local, inflacionando as apostas.

Para poder praticar o crime, Clay se alia a um grupo de homens que não são exatamente bandidos, mas apenas pobres-coitados com dificuldades financeiras, cuja posição e área de atuação pode ajudar na realização do assalto: George Peatty (Elisha Cook, de "House on Haunted Hill") é um dos caixas do hipódromo e quer usar a sua parte do dinheiro para comprar o amor da esposa adúltera, Sherry (Marie Windsor); Randy Keenan (Ted de Corsia) é um policial que precisa da grana para ajudar a esposa doente... Enfim, todos têm seus motivos, e não são exatamente caras malvados - apenas Clay é um bandidão no concreto sentido do termo.

Na primeira metade do filme, todo o plano é meticulosamente planejado para funcionar como um relógio. Clay também contrata alguns "peões" para provocar distrações e tirar a atenção sobre o assalto, como um pistoleiro (Timothy Carey) designado para matar um dos cavalos no auge da corrida, e um ex-lutador de luta livre (Kola Kwariani, que é a cara e o físico do Tor Johnson!) para iniciar uma briga de bar do hipódromo.


Quando todas as peças estão no tabuleiro, o plano acaba funcionando perfeitamente, como Clay previra, e como se fosse uma jogada de xadrez. Os problemas começam na divisão do dinheiro. Principalmente porque Sherry, a tal esposa traidora, andou contando do assalto para o seu amante, e mais gente aparece disposta a colocar a mão na bolada...

Tudo termina naquele tal final maravilhoso no aeroporto, que, como meu ex-colega de trabalho descreveu sem nenhum exagero, é uma daquelas cenas que fica marcada eternamente na memória de qualquer cinéfilo, do tipo "seria cômico se não fosse trágico".

A comparação que fiz, do plano de Clay com um jogo de xadrez, não foi gratuita e nem delírio de blogueiro que gosta de metáforas: o próprio Kubrick era um fã de xadrez, e disse ter criado O GRANDE GOLPE nos moldes de uma partida desse nobre jogo, onde a estratégia ocupa papel central e há os peões para serem sacrificados - não por acaso, um dos personagens do filme é especialista em xadrez, e seu encontro com Clay acontece num salão de jogos onde todos estão disputando partidas de... xadrez!


O filme é tão bem escrito e dirigido que funciona maravilhosamente bem, tal qual o "plano perfeito" do protagonista, criando uma tensão crescente à medida que se aproxima o momento do roubo (algo que filmes posteriores sobre "crimes perfeitos" não conseguiram nem de longe imitar).

Além disso, há a estrutura não-linear da narrativa, que, no momento do assalto, acompanha o papel de cada uma das "peças" no grande plano arquitetado por Clay.

Isso invariavelmente resulta na repetição de alguns acontecimentos (já que estamos revendo os fatos pelo ponto de vista de cada personagem), e o público da época não entendeu direito, embora o clássico "Cidadão Kane", que também traz uma narrativa não-linear, tenha sido feito anos antes.


Assim, O GRANDE GOLPE foi massacrado em algumas exibições-teste, e os produtores forçaram Kubrick a fazer uma nova montagem na ordem correta dos acontecimentos, para tentar tornar o filme mais convencional.

É claro que o diretor odiou a idéia, mas fez a remontagem mesmo assim, só para provar aos "gênios" do estúdio como a história perderia totalmente a lógica caso fosse exibida de maneira convencional. Dito e feito: os tais "gênios" se convenceram e optaram, a contragosto, pela edição "fora de ordem", mas adicionaram uma estúpida "narração para cegos" que explica detalhadamente cada cena, mesmo aquilo que o espectador está VENDO, supostamente para que os espectadores não ficassem perdidos com as idas e vindas da trama.

Ignorando essa estúpida voz do narrador, fica ainda mais fácil perceber como o filme funciona bem, com direito a uma cena belíssima, em plano-seqüência, que mostra Clay entrando no hipódromo e encontrando, ao longo do caminho, todas as peças do seu complicado plano.


E nem precisa lembrar como essa narrativa não-linear foi depois aproveitada por Tarantino em "Cães de Aluguel"... O nobre Quentin, por sinal, sempre foi um fã confesso de O GRANDE GOLPE, e quase contratou um dos seus atores (o lunático Timothy Carey) para o papel que ficou com Lawrence Tierney em "Cães de Aluguel".

Em seu terceiro filme, Kubrick já demonstrava ser mesmo um gênio, e por isso os momentos criativos não se resumem à estrutura narrativa, mas também à estética. Por exemplo, os personagens estão quase sempre na escuridão, iluminados por pequenos pontos de luz (um abajur, uma lâmpada, a brasa do cigarro), em cenas soberbas.


No final, as sombras inclusive refletem um X sobre o rosto de Sterling Hayden, lembrando sempre que a letra tinha um papel simbólico (anunciando morte, violência ou punição) em muitos filmes de gângsters da época, começando pelo "Scarface" de Howard Hawks - recentemente, Martin Scorsese homenageou essa tendência ao encher seu filme "Os Infiltrados" de letras X...

Para completar, num toque de gênio que deve ter deixado muita gente furiosa na época do seu lançamento, Kubrick desvia a câmera do alvo na principal cena do filme (a "matança" do título em inglês). Ao espectador, só resta escutar os sons dos tiros e depois ver os cadáveres espalhados pelo chão, mas sem saber quem atirou em quem e quem matou quem. Kubrick não mostra a violência, mas as conseqüências dela, numa opção estilística muito imitada desde então (como esquecer do antológico tiroteio final do incrível western "Matalo!", que adota essa mesma estratégia?).


Sem esquecer, ainda, que o truque de esconder uma espingarda no meio de flores virou clichê no cinema, aparecendo em filmes tão diferentes quanto "Um Dia de Cão", "O Exterminador do Futuro 2", "Fulltime Killer" e, mais recentemente, "Hitman". E a máscara de palhaço usada por Clay durante o assalto também pôde ser vista recentemente na cena inicial de "Batman - O Cavaleiro das Trevas", quando os capangas do Coringa, e o próprio, vestem máscaras bem parecidas.

É claro que, hoje, muito pretenso cinéfilo e pesquisador de cinema não dá a O GRANDE GOLPE a mesma importância dada a outras obras posteriores de Kubrick. Até por puro preconceito, já que esse é um legítimo filme B, ou seja, uma produção barata (custou 320 mil dólares) produzida para ser a "segunda atração" em cinemas que exibiam programas duplos - havia o "filme B" e o "filme A", que era a atração principal, um filme mais caro e melhor produzido. Na época, O GRANDE GOLPE foi exibido junto com o filme A "Bandido!", de Richard Fleischer.

Mas convém esquecer que Kubrick dirigiu genialidades posteriores para apreciar melhor essa obra-prima como o que ela realmente é: um excelente filme policial, que fica muitos degraus acima da média das produções B da época, com uma narrativa envolvente e original, ótimos personagens e situações, e aquele final que é realmente de arregalar os olhos.


Não por acaso, o sucesso do filme acabou abrindo o caminho para as grandes obras de Kubrick, quando Kirk Douglas, maravilhado com O GRANDE GOLPE, contratou o diretor para dirigir o filme de guerra "Glória Feita de Sangue".

Enfim, um CLÁSSICO que deve ser escrito em maiúsculas, mais um para a série "FILMES PARA DOIDOS POR CINEMA", e que todo mundo deveria ser obrigado a conferir uma vez na vida, nem que seja para ver aquela inesquecível cena final e saber o que acontece para motivar esse último diálogo entre o protagonista e sua namorada:

- Você precisa fugir, Johnny!
- E fugir pra quê?


Trailer de O GRANDE GOLPE


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The Killing (1956, EUA)
Direção: Stanley Kubrick
Elenco: Sterling Hayden, Coleen Gray,
Elisha Cook, Marie Windsor, Ted de
Corsia e Timothy Carey.