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sábado, 12 de março de 2011

SONATINE - ADRENALINA MÁXIMA (1993)


(Depois de algumas semanas de tranqueiras, nada como fugir um pouco da rotina com mais uma resenha da série FILMES PARA DOIDOS POR CINEMA.)
Imagine um filme sobre a Yakuza (a máfia japonesa) completamente diferente de tudo o que você já viu: ao invés de ficar trocando tiros, matando rivais ou cortando os dedos em sinal de lealdade, os gângsters passam a maior parte do tempo numa casa de praia, brincando com frisbee (!!!), jogando conversa fora e aprontando brincadeiras uns com os outros.

Pois assim é SONATINE, o quarto filme dirigido (e também escrito e estrelado) pelo mestre Takeshi Kitano. Considerando que praticamente nada acontece durante a maior parte dos 94 minutos da película, é mais do que inapropriado o título nacional, "Adrenalina Máxima" (!!!), certamente uma tentativa de tentar vender o filme de Kitano como um exemplar do explosivo cinema de ação japonês da época - "citando" ainda títulos brasileiros para produções do gênero, como "Fervura Máxima" e "Velocidade Máxima".


O que faz de SONATINE uma obra espetacular é que esse marasmo, esse "não acontece nada", esse ritmo letárgico e silencioso da maior parte do filme é quebrado inesperadamente, em diferentes momentos da trama, por explosões furiosas de violência - que pegam não só os personagens, mas o próprio espectador, de surpresa!

Quem acompanha o FILMES PARA DOIDOS há tempos deve saber que Takeshi Kitano é um dos meus cineastas contemporâneos preferidos. SONATINE não é o meu filme preferido do diretor, mas é dos melhores que ele fez e um filmaço!


O diretor-roteirista interpreta Murakawa, um veterano membro da Yakuza que explora o jogo ilegal num bairro de Tóquio. Ele já está de saco cheio de ser gângster e vive um dia-a-dia de rotina, desprovido de emoção - mesmo quando precisa executar um rival nos "negócios", ele o faz de maneira tão desinteressada como se estivesse apenas varrendo o chão.

Certo dia, o chefão da Yakuza reúne seus aliados e resolve enviar Murakawa até a cidade japonesa de Okinawa, para intermediar as negociações de paz entre dois clãs mafiosos que estão em guerra. Mas o velho bandidão, que não é moleque nem nada, questiona a validade da "negociação", considerando que no passado, em outra situação parecida, perdeu três dos seus melhores homens.


É claro que o chefão não escuta seus argumentos, e assim Murakawa e seu bando - formado por comparsas fiéis e também por alguns garotos novos e indisciplinados - parte para sua missão.

Porém, já nos primeiros dias, o grupo sofre um violento atentado na cidade e resolve esconder-se numa casa de praia, onde veteranos e novatos irão se conhecer melhor e descobrir que têm pelo menos uma coisa em comum: nenhuma expectativa de vida.

Muito já se falou e se escreveu sobre como Martin Scorsese (com "Os Bons Companheiros", em 1990) e Quentin Tarantino (com "Cães de Aluguel", em 92, e "Pulp Fiction", em 94) desmistificaram e "desglamurizaram" o universo dos gângsters cinematográficos, mostrando-os como pessoas comuns, que fazem brincadeiras, riem e falam sobre filmes e músicas, ao invés de ficar o tempo todo planejando crimes e matando pessoas.


Mas pouca gente lembra de citar SONATINE, que tem uma pegada bem parecida e foi feito na mesma época. É realmente muito estranho ver membros durões da Yakuza jogando frisbee na praia (ainda que o personagem de Kitano logo apareça para acabar com a brincadeira, disparando tiros de revólver no frisbee!!!) ou tomando banho de chuva como se fossem crianças.

Porém o mais interessante dessa pequena gema do mestre Takeshi são os rompantes de fúria que, de repente, invadem a narrativa lenta e silenciosa, mudando completamente o tom do filme.

Como na vida real, a violência surge de repente, caótica, sem anúncio prévio tipo trilha sonora subindo, câmera tremendo, cortes rápidos na edição, e definitivamente sem pistoleiros invadindo o quadro berrando "iáááááá" ou "die motherfuckers!!!!".


A primeira vez em que isso acontece é de fazer o espectador saltar da poltrona: NADA acontece na primeira meia hora do filme além de diálogos entre os bandidos e cenas com pessoas caminhando ou andando de automóvel.

Então, inesperadamente, Murakawa e seu grupo estão num bar quando começa um tiroteio infernal, anunciado apenas pelo som dos tiros e pelas pessoas caindo ensanguentadas no chão (confesso que levei um susto, tão inesperado que é o ataque). Nunca me peguei no meio de um tiroteio, mas aposto que na vida real a coisa é bem assim.

Mais adiante, perto do final, outra cena explosiva de violência acontece dentro de um elevador lotado, e outra vez inesperadamente, com tiros sendo disparados para todos os lados e personagens centrais da trama morrendo como moscas. Ficou curioso? Então veja no vídeo abaixo:

Nunca troque tiros num elevador lotado!

Aqui, como em praticamente todos os filmes de Kitano, chama a atenção o fato de que ninguém fala, xinga, ameaça o rival ou grita durante os tiroteios (os personagens apenas ficam estáticos, sérios, disparando suas armas), e nenhum personagem grita de dor ao ser alvejado, como se a surpresa pelo ferimento fosse maior do que a dor.

Também como na maioria dos filmes do diretor, seu personagem, Murakawa, é um sujeito fechadão e de poucas palavras, mas capaz de revelar seus sentimentos apenas com os olhos puxados quase inexpressivos.


 Ele vive uma relação esquisita com uma garota que salvou de um estupro (Aya Kokumai), mas ao mesmo tempo leva uma vida auto-destrutiva demais para se importar com o futuro. Tanto que, à noite, ao invés de ter um sono tranquilo, Murakawa sempre sonha que está estourando os próprios miolos ao jogar roleta russa!

E que personagem fantástico Murakawa é! Um gângster cansado da vida de gângster, que só quer administrar suas casas de jogo ilegal, mas acaba envolvido numa guerra estúpida que sabe que irá acabar em banho de sangue...


 Na cena brilhante em que o chefão reúne seus aliados para explicar a missão, Murakawa ouve tudo silenciosamente e fumando um cigarro. Quando o conselheiro do chefe, e puxa-saco de marca maior, declara algo como "Chefe, nós colocamos nossas vidas em suas mãos", o personagem de Kitano levanta-se furioso e esbraveja: "VOCÊ está colocando minha vida nas mãos dele!".

Logo em seguida, revelando que é realmente um sujeito casca-grossa, Murakawa pega o tal conselheiro puxa-saco de surpresa no banheiro e arrebenta o cara na porrada para mostrar o que acha do seu puxa-saquismo!


Econômico em diálogos, tiroteios e até em movimentos de câmera, SONATINE é um filme parado e introspectivo, e por isso mesmo deverá decepcionar quem espera a "adrenalina máxima" prometida pelo título nacional.

Mas quem tem certa intimidade com o cinema, digamos, diferente de Takeshi Kitano vai curtir muito, principalmente porque as cenas são embaladas por uma belíssima (e melancólica) trilha sonora de Joe Hisaishi. A conclusão é a esperada, mas o filme tem pelo menos meia dúzia de cenas fantásticas que já valem o programa.


Ironicamente, SONATINE foi um fracasso de bilheteria na época do seu lançamento. Afinal, Kitano era um comediante popular na TV japonesa, e ninguém gostou de vê-lo como mafioso implacável e violento.

Somente anos depois, quando sua obra-prima "Hana-Bi - Fogos de Artifício" (1997) ganhou o Festival de Veneza, é que SONATINE foi redescoberto e reavaliado pelos críticos japoneses e do resto do mundo. Nos EUA, por exemplo, o filme só chegou aos cinemas em 1998, com comentários elogiosos de um certo Quentin Tarantino, que "apadrinhou" a obra.

PS:
Alguns consideram SONATINE uma grande homenagem de Takeshi Kitano a um dos seus mestres, o veterano Kinji Fukasaku. Em 1971, Fukasaku dirigiu um filme chamado "Sympathy for the Underdog", sobre gângsters que se reúnem na mesma Okinawa para resolver uma guerra de gangues. Kitano estaria prestando a homenagem ao cineasta que lhe deu a primeira oportunidade de dirigir um filme, o excelente "Violent Cop", em 1989, já que a obra seria originalmente dirigida por Fukasaku, mas ele desistiu e Kitano assumiu a missão.


Trailer de SONATINE - ADRENALINA MÁXIMA

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Sonatine - Adrenalina Máxima (Sonatine, 1993, Japão)
Direção: Takeshi Kitano
Elenco:Takeshi Kitano, Aya Kokumai, Tetsu Watanabe,
Masanobu Katsumura, Ren Ohsugi, Susumu Terajima
e Tonbo Zushi.

sábado, 8 de janeiro de 2011

VIOLENT COP (1989)


Imagine a surpresa que você teria se fosse ao cinema para ver "Tropa de Elite" e descobrisse que o implacável Capitão Nascimento não é mais interpretado por Wagner Moura, mas sim por Renato Aragão. Ou pelo Sergio Mallandro.

Deve ter sido um choque semelhante aos espectadores japoneses que, em 1989, foram ao cinema ver VIOLENT COP, o primeiro filme escrito, dirigido e estrelado por Takeshi Kitano. Afinal, até então Kitano era apenas um humorista e apresentador da TV japonesa, daquele tipo que ninguém consegue levar a sério, e ri só de olhar para a cara do sujeito.

Só que VIOLENT COP não tem o menor pingo de humor. E imagine os fãs do humorista entrando no cinema para rir das macaquices de Kitano e vendo uma cena como essa:


Contrariando totalmente a sua consagrada imagem televisiva, o ator aparece em cena não só como um policial violento (eis o título), mas também como um completo sociopata que distribui tiros e pancadas em todo mundo, não só nos bandidos, e que chega a chocar pela sua crueldade - perto dele, o Capitão Nascimento, citado no início do texto, não passa de um escoteiro.

Antes de mais nada, permitam-me dizer que sou apaixonado por Takeshi Kitano. Para mim, ele é mais um dos poucos cineastas contemporâneos cuja obra nunca decepcionou (até agora) e que vale a pena acompanhar religiosamente.


Conheci o trabalho do cineasta praticamente por acaso em 1998. À época fã de filmes policiais vindos do Oriente (por causa das obras de John Woo e Ringo Lam), topei com a fita de "Hana-Bi - Fogos de Artifício" na locadora da minha cidade.

Não tinha muitas referências (é bom lembrar que a internet ainda engatinhava em 1998), mas resolvi dar uma chance pela imagem da capinha, que mostrava aquele sujeiro durão (Kitano) apontando uma arma contra a câmera. Foi amor à primeira vista, e "Hana-Bi" virou imediatamente um dos meus filmes preferidos de todos os tempos.

Diferente do que eu esperava como fã de Woo e Lam, "Hana-Bi" é lento e introspectivo, como praticamente toda a obra do cineasta. A diferença é que não é chato nem artístico, como podem fazer supor os dois adjetivos anteriores. Pelo contrário: lentamente, Kitano prepara o espectador para levar uma porrada no meio da cara.


VIOLENT COP, sua estréia no cinema, já é um verdadeiro soco na boca - e olha que posso falar com conhecimento de causa, porque sei como é levar um soco na boca! Trata-se, assim, de mais um autêntico FILME PARA DOIDOS POR CINEMA, porque nem só de tranqueira vive esse blog.

Takeshi inicialmente iria apenas estrelar o filme, que seria dirigido pelo veterano Kinji Fukasaku ("Battle Royale"). Doente e desanimado ao saber que só teria o astro durante 10 dias (por causa de seus compromissos com programas de TV), o diretor saltou fora.

Kitano assumiu a produção e fez uma revolução: originalmente, VIOLENT COP seria uma comédia estilo "Um Tira da Pesada". Marcado como comediante na TV, o ator queria mudar sua imagem, portanto reescreveu todo o roteiro de Hisashi Nozawa para tirar o humor.


Numa análise simplista, poderíamos dizer que Azuma, o "policial violento" interpretado por Kitano no filme, é uma espécie de Dirty Harry japonês. Olhando mais de perto, entretanto, percebemos que Azuma tem pouco ou nada de heróico, ao contrário do tira vivido por Clint Eastwood na série norte-americana.

Se nos filmes policiais "comuns", como "Perseguidor Implacável" e o próprio "Tropa de Elite", o policial violento é apenas o reflexo de um mundo violento (para males extremos, soluções extremas), isso não acontece em VIOLENT COP, onde o próprio policial é o catalisador da violência, não raras vezes o provocador.


O filme começa com um grupo de jovens espancando um mendigo na rua. Um dos garotos volta para sua confortável casa de classe média-alta, e logo o policial Azuma bate na porta. A mãe do garoto atende. Cordialmente, Azuma pede para subir e conversar com seu filho. Chegando no quarto do garoto, a máscara de simpatia cai: o policial espanca o adolescente com socos, chutes e tapas, e ordena que ele se entregue à polícia no dia seguinte.

Essa cena, sem relação com a trama principal, já dá o tom do filme. E foi feita quase 20 anos antes do Capitão Nascimento tratar estudantes maconheiros de classe média-alta do mesmo jeito, no primeiro "Tropa de Elite".

Como tratar marginaizinhos mimados (em espanhol!)



Mas há um novo comandante na delegacia, o delegado Higuchi (Hiroyuki Katsube). Muito mais novo que Azuma, ele não concorda com os métodos truculentos do subordinado; por outro lado, sabe que o "violent cop" já vivenciou coisas demais em seus muitos anos de carreira, e que não tem cacife para repreendê-lo. Portanto, apenas recomenda que Azuma entre na linha ou faça as coisas "por baixo dos panos", pelo menos por um ano, quando o delegado será promovido para outro distrito.

Num daqueles clichês dos filmes policiais, o veterano ganha um parceiro novato com a intenção de controlá-lo, Kikuchi (Makoto Ashikawa). Não adianta nada, claro. Até que, acidentalmente e por puro acaso, a dupla esbarra no caso do assassinato de um traficante. O responsável é Kiyohiro (Hakuryu), um assassino da Yakuza, que será obsessivamente perseguido por Azuma até um sangrento desfecho.


Eu sou fã de policiais durões e de personagens cheios de defeitos, que tenham problemas de moral e conduta como a maioria das pessoas normais. Mas o Azuma de Takeshi Kitano exagera: é praticamente impossível simpatizar com o personagem, tão ou mais violento que os bandidos que persegue (e eventualmente mata).

Queria só ver a cara daqueles malas que chamaram "Tropa de Elite" de reacionário e fascista caso eles assistissem VIOLENT COP e suas "cenas de interrogatório". O saco plástico dos homens do Bope parece um colírio perto dos métodos de Azuma.


Numa cena, o policial começa a dar tapas no rosto de um suspeito para saber o nome do assassino que procura. A câmera fixa acompanha o "interrogatório" durante uns bons 50 segundos: Kitano não pára de esbofetear o homem, e percebe-se nitidamente que ele está batendo no ator DE VERDADE! O rosto do sujeito começa a ficar cada vez mais vermelho em função dos tabefes recebidos, até que ele (o personagem e talvez o próprio ator, cansado de apanhar) finalmente fala o que o "herói" quer saber.

Mais tarde, Azuma finalmente põe as mãos em Kiyohiro (uma prisão ilegal, com entorpecentes "plantados") e leva-o para "interrogatório" no vestiário da delegacia.


Inicialmente, tudo o que vemos é o parceiro novato parado em frente à porta fechada do vestiário, para impedir alguém de entrar. Mas também escutamos os sons abafados de porradas e gemidos que vêm de dentro da sala.

Quando a câmera finalmente permite que o espectador entre no vestiário, o suspeito está caído no chão todo arrebentado, os armários repletos de manchas de sangue do brutal espancamento!


E não é só isso: Azuma também espanca brutalmente um rapaz apenas porque ele saiu com sua irmã (que é deficiente mental), atropela de propósito um suspeito em fuga (!!!) e começa a chutar o próprio parceiro Kikuchi quando ele tenta proteger um suspeito do espancamento! Tudo isso faz do policial Azuma um dos maiores anti-heróis do cinema policial de todos os tempos!

Para quem não conhece a obra do mestre Takeshi Kitano, este primeiro filme é um perfeito cartão de visitas. Tudo o que caracteriza a sua filmografia já aparece aqui: o protagonista durão de poucas falas que tem vários closes silenciosos, as longas cenas que mostram apenas os personagens caminhando, e o clima lento e silencioso que apenas prepara para um explosivo confronto final.


Como na maioria dos filmes de Kitano, também, a violência é realista e incômoda, sem aquele glamour típico do cinema de ação. Quando alguém leva um tiro, o efeito não é "bonitinho": não há música, câmera lenta ou efeitos estilizados.

O mesmo vale para as cenas em que alguém apanha, geralmente filmadas em plano-sequência, e apenas com os ruídos dos socos e chutes como trilha sonora, algo que mexe com o espectador porque na vida real acontece EXATAMENTE ASSIM, sem edição videoclipeira, trilha sonora ou coreografia elaborada.


Por isso, eu recomendo VIOLENT COP para todos os fãs do bom cinema policial contemporâneo, mas não àqueles que gostam de filmes mais visuais, com firulas e enfeites (tipo os de John Woo), e muito menos às pessoas sensíveis, que não terão estômago para suportar esse soco na boca desferido por Kitano.

O primeiro de muitos, no caso, já que toda a filmografia de Takeshi Kitano é composta por repetidos e cada vez mais impactantes socos na boca do seu espectador - um verdadeiro espancamento cinematográfico, como aqueles que seu policial Azuma adora promover em VIOLENT COP.

Trailer de VIOLENT COP



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Violent Cop (Sono Otoko, Kyôbô
ni Tsuki, 1989, Japão)

Direção: Takeshi Kitano
Elenco: Takeshi Kitano, Maiko Kawakami, Makoto
Ashikawa, Shirô Sano, Sei Hiraizumi, Mikiko
Otonashi, Hakuryu e Ittoku Kishibe.

domingo, 1 de março de 2009

JOHNNY MNEMONIC (1995)


"QUE PORRA ESTÁ ACONTECENDO? Toda minha vida eu tive o cuidado de ficar no meu canto, sem complicações. Agora, de repente, sou o responsável por toda a porra do mundo, e todos estão tentando me matar... Isso se minha cabeça não explodir primeiro! Você vê aquela cidade lá no fundo? Era lá que eu deveria estar! Não aqui embaixo com cães, lixo e essas merdas de jornais do mês passado. Me enchi deles, me enchi de você, me enchi de tudo isso! Eu quero um serviço de quarto! Eu quero um 'club-sandwich'! Eu quero uma cerveja mexicana gelada! Eu quero uma prostituta de 10 mil dólares! Eu quero minhas camisas lavadas... como eles fazem... no Imperial Hotel... em Tóquio!"

Em 1995, quando realidade virtual e internet ainda eram pura ficção científica, um filme chamado JOHNNY MNEMONIC tentou faturar em cima da estética "cyberpunk" dos romances de William Gibson - um universo então conhecido apenas por nerds, e que somente "Matrix", quatro anos depois, conseguiria transformar em "cultura pop".

Talvez JOHNNY MNEMONIC seja um filme à frente do seu tempo. Afinal, esta bizarra e sombria aventura de ficção científica parece bem melhor hoje do que na época do seu lançamento, quando foi detonada pela crítica e boicotada pelo público, quase enterrando a promissora carreira de um jovem astro chamado... Keanu Reeves! Que, por este trabalho, foi indicado ao Framboesa de Ouro de Pior Ator, depois passou um tempão estrelando porqueiras como "O Observador", e, ironicamente, voltou ao estrelato justamente ao revisitar o tema "cyberpunk" na bem-sucedida série "Matrix".


Roteirizado pelo próprio William Gibson, a partir do seu conto homônimo, este filme "quase B" (custou 26 milhões de dólares) parte de uma idéia intrigante: no ano de 2021, piratear informação é tão comum que internet e satélites não são mais confiáveis; a única maneira segura de "transportar" informação é carregar o cérebro dos chamados agentes mnemônicos com os dados em gigabytes e então mandá-los até o seu destino, incógnitos.

Pode parecer idiota, considerando que o tal agente corre o risco de sofrer um acidente no percurso e adeus informações. Mas, sei lá, soa mais seguro que o correio comum numa sociedade à beira do colapso como a que é mostrada no filme - uma sociedade extremamente capitalista e dominada por megacorporações, tipo a nossa.

Keanu interpreta Johnny, um destes agentes mnemônicos, cuja capacidade cerebral de informação é de 80 GB. Isso mesmo, igual a muitos smartphones de hoje (e insira aqui mesmo a sua própria piadinha em relação ao tamanho do cérebro de Keanu Reeves!).

Claro que o mundo de 2021 não é dos melhores: fazer implantes cibernéticos no corpo é tão comum quanto cortar o cabelo ou trocar de cueca; por outro lado, uma doença chamada NAS é transmitida através das ondas eletromagnéticas e está matando a maior parte da população mundial. Que horror, não?


A ação começa quando o pobre Johnny aceita uma "última missão" (alerta de clichê!!!): carregar dados confidenciais de uma poderosa indústria farmacêutica, de Tóquio para Newark. Ele "compacta" seu HD cerebral para poder carregar 160 GB, mas a quantidade de informação que os caras enfiam na sua cabeça chega a 320 gigas!!! Claro que isso não é nada bom: se Johnny não conseguir fazer o download dos dados em 24 horas, seu crânio vai literalmente explodir!!! Problema número 2: a Yakuza, ligada à tal indústria farmacêutica, está atrás dos dados confidenciais carregados por Johnny. E a vida do mensageiro não importa: tudo que eles precisam é da sua cabeça, e o resto que se exploda!

JOHNNY MNEMONIC tem muitos problemas que explicam a fria recepção na época do seu lançamento. Keanu vinha do sucesso de "Velocidade Máxima", e ninguém esperava vê-lo no papel de um herói desagradável e nada simpático, numa história complicada e sem humor. Embora o roteiro tente "humanizar" o agente mnemônico vivido pelo astro (o rapaz perdeu todas as memórias da sua infância por carregar mais informações no cérebro do que seria recomendável), a verdade é que Johnny Mnemonic é um herói bem diferente do usual, egoísta, insensível e sem a menor vocação para salvar o mundo - tudo que ele quer é salvar a própria cabeça.

Outro grande problema é que tudo soa bizarro demais para o público em geral, embora seja um verdadeiro deleite para quem gosta de FILMES PARA DOIDOS. A ambientação "cyberpunk", por exemplo, atropela o espectador com uma quantidade absurda de informação que não fazia muito sentido lá atrás, em 1995.


Se hoje termos como download, cyberspace e internet já são comuns até para crianças de 6 anos, é bem possível que a maioria do público tenha ficado boiando na época de lançamento do filme. Mesmo hoje, algumas operações "cibernéticas" dos personagens e certos termos técnicos utilizados parecem grego até para quem tem um mínimo de conhecimento na área.

Completando o quesito "bizarria", este é um filme não só estrelado por um herói nada heróico (o discurso do início do texto é feito pelo personagem no clímax da trama, para dar uma idéia de sua preocupação com o futuro da humanidade), mas que também conta com um assassino que usa seu chicote laser para cortar metal, pescoços e pessoas ao meio; um médico viciado em fazer implantes cibernéticos baratos em seus amigos; um golfinho que teve o cérebro modificado pela Marinha para decodificar códigos inimigos e que vive num aquário, além, é claro, de um padre psicopata, vestido como Jesus Cristo, com esqueleto biônico e uma espada em forma de cruz!!!

Para completar, JOHNNY MNEMONIC traz um dos elencos mais "diferentes" já reunidos numa produção hollywoodiana: um astro como Keanu Reeves divide a tela com roqueiros (Ice-T e Henry Rollins), com o astro oriental Takeshi Kitano e mais Dina Meyer, Udo Kier, Barbara Sukowa e, acredite se quiser, Dolph Lundgren (!!!), provavelmente no papel mais esquisito da sua carreira como o tal padre biônico assassino! O pior é que Lundgren quase rouba o filme. Inacreditável!

Obviamente, uma mistura tão estranha só pode ser apreciada por públicos bem específicos. Também não ajuda o fato de o filme ser de uma escuridão digna de Tim Burton (toda a história se passa à noite), e de ser o primeiro (e até agora único) longa-metragem de um obscuro artista plástico chamado Robert Longo, que até então só havia dirigido videoclipes do REM e do New Order e um episódio (ruim) da série "Contos da Cripta".


Contando ainda com as tradicionais e multicoloridas cenas criadas por computação gráfica para representar as viagens dos personagens pelo cyberspace (estilo "O Passageiro do Futuro"), JOHNNY MNEMONIC é o tipo de filme que você nem sabe direito como avaliar, em que idéias muito boas são jogadas lado a lado com outras completamente imbecis, e cenas bem legais (incluindo mãos e cabeças decepadas com o tal chicote-laser) são seguidas por momentos pouco ou nada inspirados (cortesia do diretor de primeira viagem).

Entretanto, várias imagens e situações seriam vistas posteriormente em outros filmes, dos sobretudos escuros que viraram mania em "Matrix" às traquitanas tecnológicas que se tornaram presença obrigatória em todo e qualquer filme sobre hackers e computadores (alguns aparelhos ligados no cérebro também lembram "Matrix"). E tem até a imagem do casal se beijando enquanto edifícios queimam no horizonte (vista depois em "Clube da Luta").

Será que estamos diante de uma obra visionária? Bem, dá para apostar que tanto o filme quanto os seus realizadores teriam muito mais sorte caso JOHNNY MNEMONIC tivesse sido lançado hoje, e não 14 anos atrás. Mas este é o preço pago por todas as obras à frente do seu tempo, como "Blade Runner", que também foi um fracasso na época de seu lançamento (1982).


Claro que seria covardia (para não dizer loucura) comparar este debut de Robert Longo ao eterno cult movie de Ridley Scott, embora ambos tenham muito em comum, da "estética" futurista à presença de um astro hollywoodiano completamente perdido no seu papel. Mas quem sabe JOHNNY MNEMONIC não seja redescoberto nos anos vindouros?

PS 1: O tradutor brasileiro que teve a genial idéia de colocar no filme o subtítulo "O Cyborg do Futuro" merecia ele mesmo um implante cibernético... no rabo! Afinal, não há um único cyborg no filme, seja do futuro ou do passado.

PS 2: A versão japonesa do filme tem 107 minutos (11 a mais que a versão original). Estes minutos adicionais dão mais tempo em cena para o personagem de Takeshi Kitano. Como o ator era muito mais conhecido no Oriente do que no Ocidente lá no ano de 1995, foram gravadas mais cenas com ele especialmente para atrair o público oriental. Não deu outra: esta versão estendida é mais respeitada (e realmente bem melhor, incluindo uma trilha sonora diferente) do que a "oficial".

Trailer de JOHNNY MNEMONIC



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Johnny Mnemonic (1995, EUA/Canadá)
Direção: Robert Longo
Elenco: Keanu Reeves, Dina Meyer, Dolph
Lundgren, Takeshi Kitano, Ice-T, Henry
Rollins, Barbara Sukowa e Udo Kier.