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sábado, 6 de outubro de 2012

O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA (1979)


O nome "Tony Vieira" não significa nada para as novas gerações de cinéfilos, muito menos para aqueles espectadores metidos a besta que acham que agora é que o cinema brasileiro está bom. Entretanto, num período de pouco mais de 10 anos, Tony (o "nome artístico" do mineiro Maury de Oliveira Queiróz) foi um dos mais bem-sucedidos produtores de filmes de ação baratos da Boca do Lixo, daquele tipo bem popularesco, econômico e que dava dinheiro nas bilheterias, com a cor, a cara, o cheiro e o linguajar do povão.

Entre o início da década de 70 e a metade dos anos 80, o homem produziu, dirigiu e estrelou cerca de 15 filmes, policiais ou faroestes que geralmente reaproveitavam os mesmos elencos, locações e figurinos. Investia pouco e lucrava bastante, numa época em que as salas de cinema ficavam na rua e estavam sempre lotadas, muito antes do surgimento do "cinéfilo de shopping" e dos ingressos custando mais de 20 reais.


Eu sempre digo que para fazer esses filmes de hoje, sobre miséria no Nordeste ou violência urbana nas favelas cariocas, é muito fácil: você liga a câmera e a coisa toda já está mais ou menos pronta. Difícil era fazer os filmes que Tony Vieira fazia, transformando cidades do interior de São Paulo/Minas Gerais em cenários de bangue-bangue. Queria ver se essa molecada que faz cinema hoje conseguiria produzir algo como O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA, uma das mais escalafobéticas produções do Chuck Norris brasileiro: trata-se de um filme de ação sobre mercenários brasileiros que enfrentam nazistas (???) no interior do Paraguai!

A trama absurda foi escrita por Rajá de Aragão (que também era diretor na Boca, além de um dos principais colaboradores de Tony). O cinema de ação norte-americano, claro, foi a grande inspiração para a dupla, mas incrivelmente os inúmeros tiroteios, explosões e acrobacias dos heróis foram filmados ANTES de grandes produções gringas como "Braddock - O Super Comando" (1984) e "Rambo 2 - A Missão" (1985). Acredite ou não, O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA é de 1979, e já traz elementos que depois apareceriam nos filmes de Chuck Norris e Stallone, produzidos com dez, vinte vezes mais dinheiro!


O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA se passa "em época e país imprecisos", como explica a sinopse oficial, mas foi filmado na fronteira com o Paraguai. A história não tem muita lógica e é tocada na base do "Foda-se; se colar, colou". Se alguém dublasse isso em inglês, podia muito bem passar por aventura classe B norte-americana; ou, pelo menos, por aquelas imitações das aventuras B norte-americanas produzidas pelos italianos ou filipinos!

Eis que, nessa "época e país imprecisos", existe um oficial nazista chamado General Zog (interpretado por Francisco Assis Soares). Será que o nome foi inspirado no maléfico General Zod, aquele inimigo do Superman nos quadrinhos? Nesse caso, o roteirista Rajá devia ser um ávido leitor das HQs do herói, pois o filme em que aparecia o General Zod (interpretado por Terence Stamp), "Superman 2", saiu apenas um ano depois, em 1980.


O "nosso" General Zog conseguiu reunir um pelotão sob seu comando e montou um campo de concentração onde aprisiona não judeus, mas sim as filhas gostosas dos fazendeiros da região - lembre-se que essa é uma produção da Boca do Lixo, e como tal precisa entregar a cota de nudez que o espectador da época esperava. Os nazistas sequestram as moças para fazer experimentos de fertilização tentando criar uma raça superior. Na prática, as moças seminuas são abusadas e torturadas durante a maior parte do filme, o que lembra tanto aquelas produções sensacionalistas com vilões nazistas (os "nazisploitations") quanto os filmes WIP ("Women in Prison", ou Mulheres na Prisão), ambos bastante populares no período.

Zog tem dois asseclas: o violento Tenente Sparago (Itagiba Carneiro) e a cientista Nicole (Renée Casemart), a única que parece ser realmente alemã, e fala sempre com sotaque carregado, embora vez por outra solte alguma expressão francesa, tipo mon cherry. Nas "horas vagas", quando não está colocando em prática as experiências para criar a raça superior, Zog obriga a cientista a torturar as prisioneiras, em testes dignos do Dr. Mengele para descobrir, por exemplo, quanto tempo uma paciente suporta uma cirurgia sem anestesia antes de morrer.


Só que o reinado de terror dos nazistas paraguaios está para terminar: os fazendeiros das cercanias, pais das moças sequestradas, resolvem contratar uma dupla de mercenários para acertar o placar com os vilões e resgatar as garotas. Porque diabos eles não procuram a polícia ou o Exército Brasileiro é algo que o roteiro não se preocupa em explicar decentemente. De qualquer maneira, entram em cena os mercenários mais improváveis do cinema de ação universal: Jô (Tony Vieira) e Gato (Heitor Gaiotti).

Pensa comigo: quem foi o sem-noção que inventou um herói durão, bom de tiro e pegador chamado... Jô? Isso parece mais apelido carinhoso do que um nome que provoque temor nos bandidos. Imagina o vilão dizendo: "Oh não, o Jô está vindo me pegar". Porra, não funciona! Sem contar que remete ao mala do Jô Soares, então toda hora você fica pensando que o barrigudo vai invadir o filme e não deixar mais ninguém falar!


A entrada em cena de... hã... Jô... é hilária: um helicóptero pousa numa clareira e dele sai Tony Vieira vestindo uniforme camuflado, com uma metralhadora a tiracolo, um capacete antigão que parece ter sido roubado de um museu da Segunda Guerra Mundial e óculos escuros espelhados daquele tipo usado por motorista de ônibus. Não é nenhum Braddock ou Rambo, mas certamente é muito engraçado!

Jô (hehehe) aceita a missão de acabar com os nazistas, mas não para salvar os pobres fazendeiros, nem para resgatar as pobres meninas aprisionadas, e muito menos pelo dinheiro: o que o nosso herói quer é acertar as contas com o Tenente Sparago, com quem "trabalhou" no passado e não recebeu o pagamento justo. Pois ao invés de resolver a questão num Tribunal de Pequenas Causas, Jô (hehehe) resolve pegar sua metralhadora e, no processo, dar uma mão aos fazendeiros e acabar com a nazistada paraguaia.


Forma-se, então, um improvável grupo de resgate com Gato (o alívio cômico, sempre falando bobagem), Jô (o herói sério e quietão, sempre mandando Gato calar a boca) e Beto (Elden Ribeiro), um dos homens do vilarejo, convocado para guiar os mercenários até o campo de concentração.

Enquanto isso, no tal campo de concentração, os vilões estão tendo seus próprios problemas: a Dra. Nicole está arrependida de torturar e matar pobres garotas seminuas, e pretende abandonar o grupo. Mas sua própria filha Zeida (Cristina Kristner), devidamente convertida à "causa", cagueta a mãe, que é fuzilada na sua frente por traição. Só que aí a pequena delatora percebe que seus "companheiros" não são flor que se cheire e foge do campo de concentração, aliando-se ao grupo de mercenários para dar um fim na ameaça nazista.


Se não deu para perceber só pelo resumo da trama, O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA é um daqueles filmes inacreditáveis, hilários, que se tornam obrigatórios pela sua ingenuidade e criatividade.

Como escrevi lá em cima, fazer filme de favela e Nordeste é fácil, pois cenários e personagens já existem; quero ver é ter coragem de fazer uma aventura de guerra com mercenários lutando contra nazistas, e no Brasil! Por si só, já é um motivo mais do que suficiente para recomendar a obra: este é o melhor filme brasileiro sobre mercenários contra nazistas paraguaios de todos os tempos!


O título já entrega a inspiração de Rajá e Tony: "Selvagens Cães de Guerra" (The Wild Geese), uma bem-sucedida aventura lançada no ano anterior (1978), dirigida por Andrew V. McLaglen e estrelada por Richard Burton, Roger Moore e Richard Harris. Os realizadores provavelmente tentaram forçar uma relação inexistente com o filme gringo, para que o espectador desavisado pensasse estar vendo uma continuação ou nova aventura dos "Cães de Guerra" importados.

(O engraçado é que esta picaretagem brasileira saiu seis anos ANTES da continuação oficial de "The Wild Geese", lançada apenas em 1985, e batizada por aqui como "Caçado pelos Cães de Guerra".)


Óbvio que qualquer comparação entre O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA e os "Cães de Guerra" estrangeiros é injusta. Afinal, Tony Vieira e sua turma fizeram o filme nacional com uma merreca de orçamento, o que transparece nos efeitos simplórios dos tiros e explosões, nos cenários e na reutilização de figurantes para dar a impressão de que o pelotão nazista é muito maior do que na verdade era - tem figurante que morre umas seis vezes até o final do filme.

O roteiro de Rajá dispensa os diálogos rebuscados e floreados dos "Cães de Guerra" importados em prol de expressões chulas, palavrões e conversas simplesmente inacreditáveis entre nossos "herói" Jô (hehehe) e seu parceiro Gato. Isso responde por 60% da diversão no filme de Tony, já que é impossível não pegar-se rindo sozinho do festival de bobajada.


Os diálogos fuleiros também fazem de O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA um filme único em comparação aos enlatados estrangeiros que ele homenageia/emula/copia. Por exemplo, em várias aventuras de ontem e de hoje, você certamente já viu o herói ou seu companheiro cair em alguma armadilha daquelas que deixam o sujeito pendurado de cabeça para baixo.

Isso também acontece aqui, com o personagem de Gaiotti. É a reação do sujeito que faz a diferença, já que você jamais esperaria ver Braddock ou Rambo gritando algo como: "Será que tem algum rio aqui por perto? Acho que me caguei todo!". E não, não é no sentido figurado: na cena seguinte, Gaiotti realmente aparece lavando a bunda dentro de um rio! Braddock e Rambo nunca cagaram nas calças, por isso O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA é muito mais divertido.


Você também não espera que uma aventura gringa traga um diálogo como este, em que um dos fazendeiros explica a Gato sobre as experiências genéticas dos nazistas:
- Teve um cara com essa mesma ideia, e por causa disso ele quase botou fogo no mundo.
- Hitler. Adolph Hitler.
- É esse mesmo o filho da puta!

O mesmo Gaiotti tem uma reação inacreditável a uma cena de sexo entre Jô (hehehe) e a nazista convertida a mercenária Zeida: "Muito bonito... Eu me fodendo com os pernilongos, e você deitando e rolando nesse contra-filé!". (Nesse momento, visualize uma projeção mental de Sandra Anneberg e seu famoso "Que deselegante".)


A tal cena de sexo é fantástica e responde por um daqueles momentos absurdos e gratuitos que só estão no filme para cumprir a cota de sexo e mulher pelada esperada numa produção da Boca. Pois eis que Jô (hehehe) e Zeida começam a transar sem que haja qualquer preliminar, qualquer menção de atração física, uma piscadinha ou olhadela sensual, um diálogo maroto... Nada!

Os personagens se conhecem, mal falam seus nomes um para o outro, e na cena seguinte já estão rolando pelados dentro de um rio! Caramba, por que nunca acontece um troço desses comigo? O Jô (hehehe) é tão fodão que nem precisou lançar uma cantada elaborada, fingir que concordava com os gostos de Zeida ou sequer pagar flores ou um jantarzinho antes. O cara é mestre!


Por falar em fodão, Rajá criou todo tipo de diálogo absurdo para justificar a "fodãozice" de Jô (hehehe) e para transformá-lo numa espécie de "super-mercenário". Todos os outros personagens, heróis e vilões, passam o tempo todo falando maravilhas sobre o herói, mesmo que na prática não vejamos nada de tão espetacular. Gato, por exemplo, lança um "Lembra daquele dia no Vietnã, Jô?", enquanto o vilão Sparago informa ao general que Jô (hehehe) "esteve na Angola, na Argélia e no Vietnã". Braddock e Rambo são meros principiantes perto do "nosso" cão de guerra...

E já que estamos falando em diálogos, lá pelas tantas o General Zog larga um discurso tão sem pé nem cabeça que estou até agora na dúvida se o roteirista Rajá fez de propósito, para deixar bem claro que o vilão era maluco, ou ele mesmo era maluco e escreveu o texto a sério. É algo assim: "A próxima etapa é a infiltração em toda a América Latina. A terceira etapa será a conquista da Austrália e de todo o Continenta Africano. A Europa não nos interessa, porque está em decomposição física e mental". Epa, peraí: os caras são nazistas e não querem conquistar a Alemanha, que fica na Europa, preferindo a África e a Austrália? Mas que espécie de prioridades são essas? Porra, Austrália??? Bem, mas o que esperar de supostos nazistas que tratam uns aos outros por "camaradas", como se fossem comunistas?


Como bom trashão que é, O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA também está repleto de momentos hilários. Ao toparem com um campo minado, por exemplo, os heróis simplesmente detonam as minas terrestres rolando um tronco de árvore sobre elas - como se uma única mina não tivesse poder de fogo suficiente para explodir o tronco em pedacinhos!

Sem contar que a missão de resgate é um autêntico fiasco, pois os vilões retaliam matando quase todos os fazendeiros que contrataram os mercenários (!!!), e praticamente todas as garotas aprisionadas perdem a vida na fuga. Ou seja, teria sido até melhor se continuassem presas no campo de concentração, e não sobrou nenhuma família viva para comemorar o fim do pesadelo!

Na última cena, Tony até é cruel o suficiente para mostrar os bebês ainda vivos no berçário da base nazista agora destruída; pois as pobres crianças, que eram resultado dos experimentos genéticos dos nazistas, certamente morrerão abandonadas à própria sorte, já que não tem mais ninguém vivo num raio de muitos quilômetros, e o campo de concentração estava em chamas quando os heróis saíram de lá...


As prisioneiras dos nazistas, vale o registro, são interpretadas por musas da Boca do Lixo, como a deusa loira Arlete Moreira (de "Os Trapalhões na Guerra dos Planetas") e a futura estrela pornô Débora Muniz (de "A Quinta Dimensão do Sexo"). Christina Kristner, que interpreta Zeida, também é uma gracinha, e ainda faz o gênero "girls with guns", enfrentando os vilões de igual para igual com uma metralhadora nas mãos.

Outros nomes conhecidos da Boca que integram a equipe técnica são José "Índio" Lopes, como responsável pelos efeitos especiais com uma pequena participação no filme (hilária, pois envolve assédio sexual gay), e Afonso Brazza como eletricista. Esse último tornaria-se herdeiro direto de Tony Vieira, pois, com a morte do cineasta mineiro, ficou com sua mulher Claudete Joubert e produziu, dirigiu e estrelou várias aventuras baratas em vídeo. Como aconteceu com Tony, Brazza morreu na miséria.


Infelizmente, O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA pertence àquela saudosa categoria de filmes que os cineastas brasileiros modernos não têm mais interesse em fazer, pois são muito "populares" e "comerciais" para o gosto deles. Infelizmente, também, tornou-se artigo raro, que só circula por aí numa cópia horrível (como você pode ver pela qualidade das imagens capturadas) tirada de um velho VHS castelhano, com legendas em espanhol e tudo mais. Se bobear, os negativos originais já se perderam para sempre, o que é uma lástima.

Nesses tempos em que os diretores brazucas estão muito preocupados fazendo tratados de sociologia para pensar na diversão do povão, é triste constatar que nunca mais veremos um herói popular, como o mercenário Jô (hehehe), enfrentando nazistas paraguaios, muito menos comunistas argentinos, e muito menos ainda fascistas uruguaios.

E, assim, o título do filme se revela tristemente poético: Tony foi, realmente, o "último cão de guerra", e hoje temos que nos contentar com uns poodles de madame tipo Thiago Lacerda em "Segurança Nacional" ou Aílton Carmo em "Besouro"...

Bons tempos: estreia do filme num cinema de rua de São Paulo

Por último, mas não menos importante, descobri um fã ilustre de O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA quando estive em Palmitos, interior de Santa Catarina, filmando um documentário ano passado: trata-se do cineasta independente Petter Baiestorf (foto abaixo), que gentilmente atendeu meu pedido de escrever suas memórias sobre o filme de Tony Vieira, que ele viu na infância. Eu sempre acho o máximo essas recordações de uma época ingênua em que as produções brasileiras rodavam o país e chegavam às menores cidades em condições bem improvisadas, algo que remete ao maravilhoso "Cinema Paradiso". Isso criou uma legião de adoradores de cinema do tipo mais puro, não aqueles mequetrefes que leem a Ilustrada ou a Cahiers du Cinéma e saem papagaiando frases prontas por aí. Com vocês, as memórias de Petter Baiestorf:

"Não lembro o ano exato, nem que idade eu tinha, mas foi entre 8 e 10 anos. Como eu fazia todos os anos em minhas férias escolares, me mandei prá casa de minha vó que ficava numa estância hidromineral chamada Ilha Redonda. Tinha piscinas, sorvete, diversões, árvores com frutas para colher e comer, primos para brincar e até um pequeno cinema improvisado (as cadeiras eram de palha e a tela era um enorme lençol branco). Naquele ano cheguei na casa da minha vó e o dono do cinema improvisado estava anunciando um filme de guerra chamado 'O Último Cão de Guerra', somente para maiores de 18 anos. Fui até minha vó e comecei a encher o saco em tempo integral para ir ao cinema. Como sempre conseguia o que queria através da insistência, foi fácil dobrar a velha e logo estava na fila com minha vó me 'cuidando'. Na hora de entrar o dono do cinema me achou jovem demais, mas minha vó (possivelmente já irritada comigo e meu objetivo de ver o filme de qualquer modo) resmungou com o cara e entramos.


Começa o filme e me deparo com um filme de guerra diferente, algo que até então eu nunca tinha visto. Prisão de mulheres, milhares de mulheres nuas, pelos reluzentes nas bucetas (que visão maravilhosa), torturas sangrentas, cenas com blasfêmias, diálogos hilários que não tinha em filmes de Hollywood, cenários sujos, sangue, tudo que um filme precisa ter! Porra, fiquei fascinado com aquele universo fantástico do Tony Vieira (que só vim a saber anos depois quem era) sorvendo tudo extasiado. Revi o filme duas décadas depois, já adulto, e continua uma tranqueira adorável. As cenas com torturas são bem ingênuas e mal filmadas, mas para um moleque de 8 anos eram perfeitas. 

Depois desta sessão de cinema com 'O Último Cão de Guerra' comecei a descobrir o cinema vagabundo mundial, comecei a descobrir o que era a Boca do Lixo paulista com suas produções maravilhosas de filmes sujos e sexuais, onde as pessoas falavam palavrões, trepavam e suavam, bem distante daquele cinema limpinho e sem graça dos americanos. O que mais um moleque poderia querer nos anos 80 além de sexo e violência sem noção? Naquele dia senti que as portas do paraíso haviam se aberto para mim."

PS: A atriz Christina Kristner, que descambou daqui direto para a obscuridade, foi brutalmente assassinada no México, país em que vivia há dez anos, em 2011. O caso praticamente não repercutiu aqui no Brasil, mas foi bastante polêmico por lá graças à extrema crueldade do assassino, que esquartejou o cadáver da brasileira e espalhou os pedaços pela cidade! O nome verdadeiro de Christina era Matilde Christina Arré Verri, e ela passa a engrossar a triste galeria de ex-musas do cinema brasileiro que tiveram um fim trágico e/ou violento. Para quem se interessar em saber mais, uma das poucas notícias do crime em português pode ser lida aqui.


Lobby cards de O ÚLTIMO CÃO DE GUERRA


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O Último Cão de Guerra (1979, Brasil)
Direção: Tony Vieira
Elenco: Tony, Heitor Gaiotti, Christina Kristner, Itagiba
Carneiro, Arlete Moreira, Francisco Assis Soares, Elden
Ribeiro, Renée Casemart e Débora Muniz.

domingo, 20 de setembro de 2009

TORTURA CRUEL - FÊMEAS VIOLENTADAS (1980)


Em 1974, no clássico "Desejo de Matar", Charles Bronson interpretou um homem levado ao limite após o estupro e assassinato da sua esposa, e que, para dar o troco - e ao mesmo tempo combater a violência urbana -, saía pelas madrugadas enchendo marginais de tiros. Na época, muita gente criticou a violência do personagem de Bronson e a apologia de justiça pelas próprias mãos feita pelo filme de Michael Winner, que foi um grande sucesso e gerou uma série com quatro continuações inferiores.

Mas acredite: os bandidos correriam felizes da vida ao encontro de Paul Kersey se soubessem como Tony Vieira lidou com uma situação parecida em TORTURA CRUEL - FÊMEAS VIOLENTADAS, policial exploitation de 1980 que é um colírio para os olhos de quem acha que "bandido bom é o bandido morto".

Salu, o personagem de Vieira neste filme barato que ele mesmo produziu, escreveu e dirigiu (!!!), faria o próprio Paul Kersey correr de medo e se esconder junto com Chico, o justiceiro interpretado por Francisco Cavalcanti em "Horas Fatais - Cabeças Trocadas", e com o dr. Rogério, o justiceiro interpretado por Carlo Mossy em "Ódio", outros dois bons filmes brasileiros sobre justiça com as próprias mãos.


E se você duvida, saiba que o bandido que menos sofre nas mãos de Salu é enterrado vivo. Imagine o triste destino dos outros!

Salu é um bandido que acabou de sair do presídio e pensa em se regenerar, já que sozinho precisa sustentar a família - composta pela mãe, velha e doente, e por duas irmãs que não trabalham (a mais velha, interpretada por Aryadne de Lima, sonha em ser cantora).

O problema é que vida de ex-presidiário em cidade pequena é fogo, e o coitado não consegue arrumar nenhum trabalho. Mesmo quando salva uma garota de ser estuprada por três marginais, e ela intercede junto ao seu marido para que Salu seja contratado como peão de obra, o emprego dura só até o patrão saber que ele é ex-presidiário.


Obrigado a lavar carros para faturar uns trocos e poder comprar o remédio que sua mãe precisa, ele se recusa a aceitar a ajuda financeira da amante, que é prostituta (interpretada pela bela Maristela Moreno, de "A Quinta Dimensão do Sexo"), e prefere jogar na loteria esportiva, sonhando em ficar milionário. Para piorar a situação do sujeito, a polícia fica na sua cola, considerando-o suspeito de qualquer crime que seja cometido na região - e isso inclui, claro, tentativas de confissão na base da porrada, já que ninguém acredita que Salu realmente está tentando se regenerar.

Paralelamente, uma quadrilha formada por quatro bandidos da pesada chega na cidadezinha, após uma série de assaltos e estupros pelas redondezas. Ela é chefiada por Raja (o futuro diretor Rajá de Aragão, que realizou o inacreditável "Hospital da Corrupção e dos Prazeres", em breve aqui no blog), que não gosta de estupros e prefere ficar dando discursos sociológicos para suas vítimas, do tipo "Vida de rei, né doutor? Pobre se danando, comendo casca de banana, e vocês comendo franguinho de leite... Filho da puta!". Seus três asseclas são um tuberculoso que é alvo de gozações dos colegas por não conseguir estuprar ninguém de dia (diz ele a uma vítima: "A sua sorte é que eu sou que nem vampiro: só como à noite"), e dois violentadores profissionais, Nivaldo e Toninho, que não podem ver um rabo-de-saia passar que já pensam em cair em cima. Furioso, Raja pede aos seus comparsas que fiquem na moita, sem estuprar ninguém para não chamar a atenção.


Os primeiros 40 minutos do filme mais parecem um dramalhão mexicano, com Salu procurando e perdendo empregos por ser ex-presidiário, e apanhando direto da polícia (é preciso lembrar que esse tipo de produção era voltada a um público de classe média para baixo). Mas então sua sorte muda: Salu finalmente ganha na loteria e fica multimilionário da noite para o dia!

E adivinha qual é a primeira providência do cara? Comprar o remédio para a mãe? Ajudar as irmãs com o aluguel atrasado? Comprar uma casa nova para a família? Tirar a amante da prostituição? Que nada: Saul faz o que todo homem sensato faria, e se manda para um puteiro para fazer uma comemoração em alto estilo, fechando a zona para ficar com todas as putas só pra ele! (Num momento impagável, rodeado de mulheres nuas, ele pega o garçom do recinto pelo colarinho e grita: "Já falei que não quero homem nenhum aqui dentro além de mim!").

Enquanto nosso herói comemora sua vida de milionário, o trio parada dura do estupro aproveita um momento em que Raja não está por perto para controlar e invade a casa de Salu, matando sua mãe e estuprando as duas irmãs. Algo me diz que eles escolheram a pessoa errada para sacanear...


O restante de TORTURA CRUEL é Salu caçando os quatro bandidos, infiltrando-se em sua quadrilha como se fosse um puxador de carros roubados, e finalmente arquitetando mortes sofridas e tenebrosas para cada um deles.

Como eu escrevi lá em cima, ser enterrado vivo é o castigo mais brando, considerando que um dos pobres coitados é amarrado de quatro para ter o fiofó arrombado por ninguém menos que Satã (aquele moreno careca e gigantesco que aparece em vários filmes do Zé do Caixão), e outro acaba envolvido numa trama diabólica que lembra "Oldboy", de Chan-wook Park, só que 23 anos antes!!! Finalmente, o quarto criminoso, amarrado à linha do trem, ainda tenta protestar: "Mas você não pode me matar assim!". Irônico, o herói apenas retruca: "Quem vai te matar é o trem, e não eu".


O filme em si é bem fraquinho, com uma narrativa simples e sem grandes surpresas, muita mulher pelada e diversas cenas de sexo ou estupro - bem exploitation mesmo.

Duro é suportar os primeiros 15 minutos, já que a trilha sonora utiliza algumas lastimáveis músicas de corno interpretadas pelas piores bandas de baile que a produção pôde pagar (a letra de uma delas, repetida duas vezes ao longo da película, diz: "Deixou a sua casa/Cegamente iludida/Pra tentar a sua sorte/Mas caiu despercebida/Com a sua pouca idade/Se tornou mulher da vida").

Mas após o ataque à família de Salu, a coisa vai ficando cada vez mais interessante, até porque o espectador espera ansioso pelo castigo que os "pusilânimes" receberão. E a generosa quantidade de mulher pelada (inclusive a belíssima Maristela, que aparece quase o tempo todo nua, frente e verso) já vale o programa, pelo menos para os taradões.


Como diretor, Tony ainda consegue a façanha de intercalar a cena alegre da festa do seu personagem no puteiro com o violento ataque dos bandidos à sua família, numa triste (e até sádica) ironia. Mas também sai com várias abobrinhas, como um desfile de escola de samba que cai do céu e não tem qualquer objetivo no enredo, ou a aparição-relâmpago de um "louco assassino de prostitutas" que foge do manicômio e só dá as caras por uns cinco minutinhos (pelo jeito, foi a única saída encontrada para sumir com a amante de Tony da história!!!).

Felizmente, o filme inteiro está repleto daqueles diálogos engraçadíssimos que a gente não costuma ver fora das obras da Boca do Lixo, como "Sexo a gente faz em qualquer lugar. No mato é até mais gostoso porque o capim faz uma cósquinha" e "Dinheiro não é problema, bem. Enquanto eu tiver essas pernas pra abrir uma pra cada lado, nós não vamos ficar duros".

Para quem não conhece o homem, Tony Vieira (pseudônimo de Maury de Oliveira Queiróz) foi um dos mais bem-sucedidos produtores de cinema barato da Boca do Lixo. Ele fazia filmes extremamente populares, econômicos e rápidos, que tinham a cor e o cheiro do povão, além do linguajar e dos cenários que o povão queria ver (e muita mulher pelada e violência, claro, pois também é disso que o povão gosta). Os diálogos de TORTURA CRUEL, por exemplo, não têm firulas, usando e abusando de expressões populares e de gírias da malandragem - algumas chegam a soar estranhas para o espectador contemporâneo.


Entre o início da década de 70 e a metade dos anos 80, Tony produziu cerca de 15 filmes baratíssimos, com histórias policiais ou de western, sempre assumindo ele mesmo o papel principal, e volta-e-meia dirigindo. Investia pouco e lucrava bastante, numa época em que cinema para o povão ainda era rentável no país (lembre-se: era a época dourada das salas de cinema de rua, não dentro de shopping centers).

Em várias entrevistas do período, Tony reclamou que não gostava de dirigir, mas não encontrava ninguém para filmar o tipo de história que filmava. "Faço o que o povo gosta. Vejam as rendas. E eu, inicialmente, atendo o público. Quando tiver dinheiro até para perder, farei o filme que eu gosto", declarou certa vez.

No começo da década de 80, quando a produção cinematográfica da Boca do Lixo descambou para o sexo explícito, Tony também se rendeu aos filmes pornôs, dirigindo, entre diversos, "Banho de Língua" (1985) e "Eu Adoro Essa Cobra" (1987). Em 1988, tentou voltar ao gênero policial com "Calibre 12", mas o fracasso de bilheteria da obra decretou a aposentadoria precoce do ex-galã da Boca do Lixo.


Desanimado e doente, ele voltou para o Estado onde nasceu, Minas Gerais, e lá morreu no começo dos anos 90. Apesar de uma vasta filmografia, composta inclusive de diversos sucessos de bilheteria, suas obras continuam praticamente desconhecidas e inéditas no Brasil. É o caso de TORTURA CRUEL, que até chegou às nossas locadoras nos primórdios da fase áurea do VHS, e hoje só circula em cópias piratas com legendas em castelhano (!!!).

Quando vejo esses DVDs de luxo lançados na gringolândia para filmes de diretores tão mequetrefes quanto o italiano Andrea Bianchi, fico sonhando com o dia em que teremos, aqui no Brasil, um box bem-feitinho com as obras de Tony Vieira, trazendo pérolas remasterizadas como "Gringo, O Último Matador", "O Exorcista de Mulheres", o impagável "O Último Cão de Guerra" ou o policial "Os Pilantras da Noite" (que tem, no elenco, Tony Tornado, Helena Ramos e Aldine Müller!!!!).

Mas o sonho logo se transforma em pesadelo quando eu me lembro da falta de memória (e de valorização) dos brasileiros para com seu cinema, de como a maioria nem liga para o que foi produzido no país pré-Globo Filmes e do triste fim do herdeiro direto de Tony Vieira, o brasiliense Afonso Brazza (que inclusive trabalhou na equipe técnica de vários filmes assinados por Tony). Brazza não só ficou com a esposa de Tony (Claudette Joubert) após sua morte, como seguiu a triste sina do seu mentor: morreu pobre e fazendo apenas filmes baratíssimos que quase ninguém viu.

Lobby card de "Tortura Cruel" com Tony e Rajá


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Tortura Cruel - Fêmeas Violentadas
(1980, Brasil)

Direção: Tony Vieira
Elenco: Tony Vieira, Maristela Moreno,
Aryadne de Lima, Rajá de Aragão, Clery
Cunha, Satã e Lúcia Alves.