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quinta-feira, 18 de junho de 2009

EU MATEI LÚCIO FLÁVIO (1979)


Lembra daquele montão de críticas mal-humoradas acusando "Tropa de Elite" de fascista e racionário na época do seu lançamento? Pois os autores destas críticas certamente ficariam de cabelos em pé vendo EU MATEI LÚCIO FLÁVIO, um filme policial de 1979 (portanto quase 30 anos antes do Capitão Nascimento e sua trupe colocarem "suspeitos" no saco).

Dirigido por Antonio Calmon, que hoje comanda inofensivas novelas para a Globo, este provavelmente é o filme mais fascista e amoral da história do cinema brasileiro - e, ironicamente, também uma das nossas obras-primas esquecidas.

Duvida? Pois a coisa já começa nos créditos iniciais: enquanto os nomes dos atores se desenrolam sobre uma tela preta, ao fundo escutamos o som do que seria um dia de treinamento da polícia carioca. O comandante, exaltado, inicia um discurso de arrepiar defensores dos direitos humanos: "A primeira coisa que vocês têm que aprender é que isso aqui é uma guerra. A polícia é a protetora da sociedade! O marginal não existe. O marginal não é gente! Agora eu quero todos vocês repetindo comigo... E repitam com ódio!!! (som do batalhão berrando "O marginal não existe. O marginal não é gente!"). A nossa farda existe para acabar com eles, como vocês vão fazer aqui e agora: NA PORRADA... ATÉ MATAR!!!".


Ainda está em dúvida? Então saiba que EU MATEI LÚCIO FLÁVIO é a dramatização de uma história real: a vida do policial Mariel Mariscotte de Mattos, que no filme é interpretado por Jece Valadão (seguramente, o ator mais foda do cinema brasileiro de todos os tempos), e que teria sido o responsável direto pela morte de um bandido famoso na crônica policial carioca dos anos 60, o boa-pinta Lúcio Flávio Villar Lírio.

A vida deste criminoso já havia gerado um outro clássico em 1977, "Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia", de Hector Babenco, onde Lúcio foi interpretado por Reginaldo Faria. Entretanto, como 99% dos filmes policiais brasileiros, "Lúcio Flávio..." preferia dar destaque à trajetória do bandido.

Assim, EU MATEI LÚCIO FLÁVIO surgiu como um contraponto, uma resposta à obra de Babenco, focando os holofotes sobre os policiais que caçaram o criminoso, principalmente Mariel Mariscotte. Astro e também produtor do filme, Jece era amigo do verdadeiro Mariel, e assumiu a bronca de mostrar "o outro lado" do filme do Babenco. Pessoalmente, prefiro esta "resposta" ao original do que a dramatização da vida do bandido.


O roteiro de Alberto Magno e Leopoldo Serran começa contando a trajetória de Mariel, desde sua juventude como salva-vidas e leão de chácara num inferninho (ou "diretor de disciplina", como ele explica antes de surrar três caras que estavam passando dos limites), até sua entrada na polícia e o convite para atuar como guarda-costas de políticos corruptos.

Como o Rio de Janeiro da época estava completamente dominado pela alta criminalidade (não muito diferente de hoje, no caso), a polícia resolve criar uma tropa de elite formada por 12 policiais excepcionais, chamados "Homens de Ouro", com carta-branca para caçar e matar bandidos perigosos, escapando impunemente da burocracia dos tribunais.

Logo Mariel, que já vinha chamando a atenção pelo seu estilo truculento de não fazer prisioneiros, é chamado para integrar o grupo. E corpos crivados de balas começam a aparecer pelas ruas, com cartazes trazendo o desenho de uma caveira, o logotipo do Esquadrão da Morte e ameaças a outros bandidos. Finalmente, nosso "herói" declara guerra ao bandido que vem dominando as manchetes dos jornais: Lúcio Flávio (aqui interpretado por Paulo Ramos).


Talvez o grande problema de EU MATEI LÚCIO FLÁVIO seja o roteiro extremamente fragmentado e pouco explicativo. Na época do lançamento (1979), provavelmente os fatos da crônica policial ainda estavam fresquinhos na mente do espectador, e o próprio Mariel Mariscotte ainda estava vivo e, diz a lenda, aprovou a interpretação de Jece, inclusive presenteando-o com a medalhinha (com desenho de caveira!) que o ator usa no filme.

Hoje, entretanto, pouca gente lembra de Mariel e mesmo de Lúcio Flávio, e o filme não se preocupa em dar muitas explicações sobre aquela época, forçando o espectador a pesquisar por conta própria.

Só assim você descobre que a representação de Mariel no filme não é nada exagerada: durante seu período áureo, o policial linha-dura era exatamente como o herói personificado por Jece, sempre nas manchetes de jornais ou no noticiário da TV, acompanhado de atrizes, modelos e das mulheres mais bonitas daquela época.

Mariel seria assassinado numa emboscada apenas dois anos depois do lançamento do filme, em 1981, e logo caiu no esquecimento - ironicamente, como seu arquiinimigo Lúcio Flávio.


E embora o filme de Calmon mostre Mariel como um sujeito sangue-frio, que não hesita em encher bandidos de tiros ao invés de prendê-los, a caracterização de Jece é tão boa, cheia de frases antológicas e aquele ar de machão que só o ator conseguia fazer, que torna-se impossível não ficar do lado de Mariel - mesmo que o filme de Babenco, lançado anos antes, tenha tentado transformar Lúcio Flávio numa figura mais simpática que os policiais que o perseguiam.

É um fenômeno semelhante ao que ocorreu recentemente com o truculento Capitão Nascimento de "Tropa de Elite", que a platéia adotou como herói ao invés de repreender suas atitudes. A diferença é que Nascimento não ia durar cinco minutos num confronto com o Mariel de Jece: enquanto o capitão interpretado por Wagner Moura não pegava ninguém, e ainda era pau-mandado da esposa no filme de José Padilha, o policial de Jece come umas 10 mulheres ao longo do filme!!!

Curiosamente, embora tenha vários "casos" e até uma namorada oficial, Mariel vive uma relação de amor e ódio com Margarida Maria (a bela Monique Lafond), uma prostituta viciada em heroína. O policial prometeu ao pai suicida da moça que a salvaria da vida perdida que ela levava. Infelizmente, não consegue cumprir a promessa: quando Margarida Maria morre de overdose, e Mariel fica sabendo que irão enterrá-la como indigente por não ter outros familiares vivos, nosso herói intercepta a ambulância do IML e "rouba" o cadáver nu da amada, saindo com ele nos braços enquanto brada: "Vão enterrar como indigente a mãe de vocês!".


EU MATEI LÚCIO FLÁVIO mostra Mariel Mariscotte como um sujeito extremamente vaidoso, egocêntrico até, que anda sempre alinhado em terninhos brancos, duas vezes aparece transando com mulheres enquanto se olha no espelho (numa delas, chega a dizer para o próprio reflexo: "Mariel, você é o maior"!!!), e adorava os flashes e as manchetes dos jornais (em outra cena impagável, ele "ajeita" o cadáver de um bandido que acabou de fuzilar para que saia mais bonito nos jornais!). Logo fica claro que seu motivo para caçar e matar Lúcio Flávio é mais pelo "status" que isso representa à sua carreira do que por idealismo profissional.

É óbvio que o filme não pode nem deve ser visto com um olhar contemporâneo. Entretanto, para quem concorda com aquela máxima de que "bandido bom é bandido morto", EU MATEI LÚCIO FLÁVIO tem cenas lindas no seu exagero e brutalidade.

Uma delas é o assalto a uma farmácia, quando três marginais (liderados por um jovem André di Biasi, aquele da "Armação Ilimitada") provocam o caos em busca de anfetaminas. Um deles leva a balconista (uma jovem Maria Zilda) para os fundos da loja e a estupra violentamente, enfiando o revólver inteiro na vagina da moça!



Finalmente, surgem os defensores da lei e da ordem, Mariel e seu fiel companheiro interpretado pelo fantástico Anselmo Vasconcellos. Pois a dupla simplesmente entra no lugar dando tiro pra todo lado - é um verdadeiro milagre não matarem também os proprietários do estabelecimento.

Quando Anselmo dá o golpe de misericórdia em um dos criminosos, atirando à queima-roupa, o sujeito cospe sangue no rosto do policial. Mariel, sorrindo, ainda faz escárnio: "O malandro vomitou sangue, é?".



Por essas e por outras, EU MATEI LÚCIO FLÁVIO é, definitivamente, um filme para pessoas com estômago forte. O que nos leva à cena mais clássica e "politicamente incorreta", aquela que faz de "Tropa de Elite" uma produção dos Estúdios Disney: Vasconcellos coloca um disco de Roberto Carlos na vitrola e tortura um bandido no pau-de-arara, com choques elétricos, ao som do clássico "Lady Laura".

E enquanto o sujeito esperneia, a música cria um curioso contraponto às imagens brutais: "Tenho às vezes vontade de ser/Novamente um menino/E na hora do meu desespero/Gritar por você/Te pedir que me abrace/E me leve de volta pra casa". Finalmente, após enjoar da tortura, Anselmo se aproxima do sujeito todo quebrado, com marcas de tortura pelo corpo inteiro, e exclama sem qualquer emoção: "Marginal tem mais é que morrer...", antes de apunhalar o homem até a morte! Lindo.

Outra cena antológica coloca Mariel e Lúcio Flávio frente a frente, numa das muitas rápidas passagens do bandido pela cadeia. O diálogo entre os dois, repleto de raiva, me lembrou um encontro entre o Batman e o Coringa na HQ "A Piada Mortal" (escrita por Alan Moore), quando o Homem-Morcego tentava convencer seu inimigo de que, se continuassem duelando daquele jeito, mais cedo ou mais tarde um dos dois terminaria morto. Só que a conversa no filme é menos amena. Quando Lúcio provoca o policial, dizendo "O fato de eu estar aqui não significa que a luta acabou. Guerra é guerra!", Mariel responde seco: "Ô Lúcio, vai pra puta que te pariu!".


Como um daqueles raros filmes que defende (sem restrições) o trabalho da polícia, mesmo quando este é levado às últimas conseqüências, EU MATEI LÚCIO FLÁVIO retrata uma saudosa época em que, quando um policial matava um bandido, aparecia na capa dos jornais, era condecorado pelos seus superiores e elogiado pelos políticos na televisão (hoje, provavelmente, o mesmo policial seria processado por usar "força excessiva").

É claro que o Esquadrão da Morte que Mariel integrava passou bastante dos limites aceitáveis, o que fica evidente na cena que Vasconcellos pendura o cadáver de um bandido torturado em frente a uma estátua de São Sebastião (aquele com o corpo crivado de flechas), numa "cópia humana" da imagem. Quando Mariel vê o trabalho, ainda elogia: "Mas que obra-prima, hein?".

A dupla Jece/Vasconcellos brilha no filme, e o fato de Anselmo hoje ser mais lembrado como humorista do quadro fixo do "Zorra Total" do que como o grande ator que é soma-se à cada vez mais longa lista de injustiças do cinema brasileiro (lembrando sempre que Anselmo também interpretou a única múmia do nosso cinema, em "O Segredo da Múmia"!!!).

O filme tem ainda uma pequena participação de Otávio Augusto como instrutor dos cadetes na academia de polícia. Com seu jeito bonachão, ele tem um diálogo impagável em que orienta os policiais a atirarem na cabeça, no coração e no saco dos seus alvos! Jece e ele fariam dupla no filme posterior de Calmon, o impagável "O Torturador", já resenhado aqui.


Acabei me estendendo demais, mas é justamente porque EU MATEI LÚCIO FLÁVIO é uma daquelas muitas obras-primas esquecidas da nossa filmografia tupiniquim. Inclusive recomendo a todos que leiam a excelente resenha da Andrea Ormond no blog Estranho Encontro, pois praticamente tudo que eu queria dizer está escrito lá (e não foi fácil conseguir escrever um texto diferente do dela!).

Só sei que, depois de ter encarado "O Torturador" e EU MATEI LÚCIO FLÁVIO num curtíssimo espaço de tempo, estou começando a achar que o Antonio Calmon era o "Tarantino brasileiro", antes mesmo do Tarantino começar a fazer filmes!

Diálogos espirituosos? Confere. Atores "cool"? Confere. Violência e humor negro? Confere. Trilha sonora bizarra? Confere (com direito, além de Roberto Carlos, a "A Divina Comédia Humana", de Belchior, "As Rosas Não Falam", na voz de Fagner, e disco music). Citações à cultura pop em geral? Confere! Em EU MATEI LÚCIO FLÁVIO, por exemplo, a casa de Mariel tem um pôster de Clint Eastwood em "Três Homens em Conflito", Monique Lafond deita-se nua sobre um lençol vermelho imitando aquela clássica foto da Marilyn Monroe (veja abaixo), e a cena da tortura ao som de música pop lembra diretamente o posterior "Cães de Aluguel"!


Além disso, só mesmo num filme do Calmon (ou do Tarantino lá no norte...) você vai ver um policial, inspirado no personagem real Milton Le-Cocq, falar "Salve a Umbanda. Entrego minha alma aos homens da encruzilhada!", antes de cair fulminado com um tiro na cabeça. E ainda tem gente que acha que HOJE é que o cinema brasileiro está interessante... Povo sem memória e sem cultura é fogo!

PS: Outro filme que aborda o Esquadrão da Morte que limpou o crime do Rio de Janeiro dos anos 70 é "República dos Assassinos", de Miguel Faria Júnior, que ironicamente foi lançado no mesmo ano de EU MATEI LÚCIO FLÁVIO, e tem Tarcísio Meira, Sandra Bréa e, surpresa!, Anselmo Vasconcellos nos papéis principais. Ainda não consegui encontrar este para ver, mas quem já viu jura que é outro clássico.

Veja o massacre da farmácia!


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Eu Matei Lúcio Flávio (1979, Brasil)
Direção: Antonio Calmon
Elenco: Jece Valadão, Monique Lafond,
Anselmo Vasconcellos, Paulo Ramos,
André Di Biasi e Maria Zilda.

sábado, 9 de maio de 2009

O TORTURADOR (1981)


Jece Valadão interpretando um mercenário que é a cara do Charles Bronson e tem Otávio Augusto como parceiro? Vera Gimenez, mãe da insuportável Lucianta Gimenez, emulando as mulheres fatais dos filmes noir, especialmente Rita Hayworth? Ary Fontoura como ditador de uma republiqueta sul-americana? Anselmo Vasconcellos como um mafioso disfarçado de padre que aproveita a deixa para cheirar cocaína em pleno altar? Paulo Villaça (o eterno "Bandido da Luz Vermelha" de Sganzerla) no papel de um general valentão que na verdade é homossexual? E Rodolfo Arena como um oficial nazista assessorado por um jovem Jorge Fernando???

Sim, amiguinhos, tudo isso está em O TORTURADOR, filme brasileiro dirigido por Antônio Calmon em 1981. A cada minuto que passava desta pérola, mais eu ficava surpreso e satisfeito com doideiras como estas que listei acima, e muitas outras que transformam esta em uma daquelas pérolas perdidas da cinematografia nacional. A cada minuto que passava, também, eu me pegava questionando por que não fazem mais filmes tão diferentes e divertidos hoje, quando o cinema brasileiro teoricamente tem mais recursos e mais qualidade técnica para isso.

Num comentário feito em outro blog, que encontrei quase acidentalmente no Google, um leitor opina que este talvez seja "o mais bizarro filme comercial" já feito no Brasil. Talez não seja "o" mais bizarro (considerando que o cinema brasileiro de antigamente também gerou pérolas como o clássico "Rio Babilônia", de Neville D'Almeida), mas certamente entra com louvor em qualquer Top Ten dos mais loucos filmes produzidos por aqui.


Escrito a seis mãos por Calmon, Jece e por Alberto Magno, O TORTURADOR tem como protagonista o capitão Jonas, interpretado por um Jece Valadão em estado de graça. Ele é um mercenário que acabou de ser libertado de uma prisão militar, por motivos ignorados, e está prestes a cometer suicídio, quando surge seu velho companheiro Chuchu (Otávio Augusto) com uma proposta irrecusável: um grupo de milionários judeus está pagando um milhão de dólares pela cabeça do ex-carrasco nazista Herman Stahl, que fugiu da Alemanha após a derrota na Segunda Guerra (mas não sem antes matar dois milhões de judeus nos campos de concentração).

Para pôr as mãos na valiosa cabeça, a dupla terá que infiltrar-se entre a segurança pessoal de Borges (Ary Fontoura), o ditador de uma república das bananas fictícia, já que o envelhecido oficial nazista agora é um dos homens de confiança do chefe de estado. O trabalho atual do coronel Herman, claro, é extrair "confissões" de presos políticos, motivo pelo qual ganhou a alcunha de "El Torturador" - e daí o nome do filme.

Depois que Jonas mata a saudade de mulher dando uma rapidinha ainda no hangar (uma cena hilariante), a dupla de mercenários embarca para o tal país sul-americano, onde a língua oficial é o espanhol, mas todo mundo fala português! São recepcionados pelo violento general interpretado por Paulo Villaça - que, apesar da pinta de machão, é gay e fica seduzindo os jovens do vilarejo -, e assumem o cargo de guarda-costas de uma cantora brasileira por quem Borges é apaixonado, Gilda (Vera Gimenez).


Como era esperado, Gilda também é um antigo amor de Jonas. E enquanto Jonas e Chuchu tentam conseguir a valiosa cabeça de "El Torturador", a revolução está para explodir no país, já que o povo cansou da sangrenta ditadura de Borges e começa a revidar com violentos atos de terrorismo.

O roteiro é aquela baboseira típica do cinema de ação norte-americano, e o filme, mesmo mantendo um forte tom de humor e sátira, tenta seguir fielmente esta cartilha, incluindo sangrentos tiroteios.

É divertido ver Jece andando para lá e para cá sempre com uma escopeta nas mãos, óculos escuros e cigarrinho no canto da boca, sem esboçar um único sorriso em uma hora e meia, repetindo seu tradicional papel de canalha insensível e comedor (ele pega três mulheres ao longa da película). Só por isso, O TORTURADOR já seria um filme, digamos, obrigatório.



Mas felizmente não fica só nisso: se a trama parece clichê, o roteiro compensa colocando na boca dos personagens principais alguns diálogos simplesmente impagáveis.

Jece é o campeão, claro. Afinal, o roteiro não perde a oportunidade de representá-lo como "o" fodão, e por isso o homem dispara pérolas como "Se você não voltar para mim, te dou um tiro no meio da cara!", ou "Toda mulher é puta. Menos, obviamente, as nossas mães", ou "Vou matar aquela vadia, pois ela é a única mulher do mundo que não me quer", ou ainda "Nasci pelado, tou vestido, tou no lucro!".

Em alguns momentos, eu me pegava rolando de rir sozinho no sofá da sala depois de ouvir estas e outras preciosidades. Sem contar que o saudoso Jece Valadão encarnando um pistoleiro durão - e, claro, cafajeste - é uma coisa mágica.


O diretor Calmon já havia feito um filme anterior estrelado pelo astro: o clássico esquecido "Eu Matei Lúcio Flávio", de 1979 (provavelmente um dos grandes exemplares do cinema exploitation brasileiro); no caso de O TORTURADOR, Jece também é produtor, além de co-roteirista.

Hoje mais conhecido como roteirista de novelas da Globo, já que não dirige nada para o cinema desde 1984, Calmon destila no filme uma grande cultura cinematográfica hollywoodiana (como também faz em suas telenovelas, entre elas "Vamp" e "O Beijo do Vampiro").

Isso vem desde os créditos iniciais, ao som da melancólica "Moonlight Sonata", de Beethoven - passando uma falsa idéia de que veremos um filme sério, e não uma aventura em tom de paródia.



Além de citações óbvias, como o nome Gilda em alusão à personagem de Rita Hayworth no clássico filme homônimo, há uma cena entre Jonas e Gilda num bar em que a moça pede ao pianista: "Toque outra vez, Sam", e este põe-se a dedilhar a música-tema do romance "Casablanca" (a própria frase da personagem remete a este filme).

Mais adiante, Otávio Augusto aparece cercado de putas nuas num bordel ao som da música-tema de uma das aventuras de James Bond, "007 Contra Goldfinger". A brincadeira remete a um diálogo anterior com Gilda, quando a moça diz: "Você se acha o James Bond, não é, Chuchu? Pois você é o James Bunda!".

E a situação principal da cabeça do nazista que vale ouro lembra outro clássico, "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia", de Sam Peckinpah. Finalmente, num momento brilhante, Jonas é torturado com uma enorme lâmina em forma de pêndulo suspensa sobre seu peito nu, pronta para parti-lo em dois - exatamente como acontecia em "Mansão do Terror", de Roger Corman, por sua vez adaptação do conto "O Poço e o Pêndulo", de Edgar Allan Poe!


Também é muito engraçado ver Otávio Augusto, imortalizado na televisão em papéis humorísticos, aqui fazendo papel de assassino e inclusive distribuindo balaços em seus desafetos!

Sabe aquele clichê das duplas cinematográficas, que têm o cara durão e o engraçadinho? Pois é exatamente o que se vê aqui: Chuchu passa o filme inteiro fazendo piadinhas ou cantarolando músicas de Roberto Carlos para sublinhar as diferentes situações em que ele e Jonas se envolvem, seja "Você é meu amigo de fé, meu irmão camarada", para convencer Jonas a aceitar um último serviço, seja "Estou amando loucamente a namoradinha de um amigo meu", quando percebe as trocas de olhares entre Jonas e Gilda diante do vilanesco Borges, que é obcecado pela cantora.


Otávio Augusto também protagoniza duas cenas absolutamente antológicas. Numa delas, talvez o momento mais engraçado do filme, Chuchu, escondido no mezanino de um bar, grita para um pequeno grupo de soldados que invade o local: "Ô, sua bichona!". Quando todos os surpresos adversários olham para cima, atendendo ao bizarro chamado do pistoleiro, este responde com disparos de revólver e completa a piada: "Eu chamei só uma!".

No seu segundo momento impagável, Otávio Augusto está sendo torturado por Herman, amarrado a uma daquelas mesas que esticam os ossos, e, ao invés de responder as perguntas do seu inimigo, fica provocando-o com xingamentos. Depois, em meio à tortura, o pistoleiro bonachão fica gritando: "Abaixo o nazismo e viva o Mengo!". hahahahaha!


Por momentos como esses, mais os sangrentos tiroteios, cenas de tortura, decapitações e mulheres nuas, O TORTURADOR é um filme mais do que recomendado para fãs de ação que procuram uma hora e meia de diversão sem tratado de sociologia ou grandes pretensões com a seriedade.

E, óbvio, é um programa obrigatório para todos os leitores do FILMES PARA DOIDOS, pois talvez seja uma daquelas raras obras que se encaixa perfeitamente nessa descrição. E é brasileiro, gente! Brasil-il-illllll!!!!!!!!!

Embora seja muito difícil encontrar a velha fita VHS lançada nos primórdios das videolocadoras brasileiras, volta-e-meia O TORTURADOR é reprisado nas madrugadas do Canal Brasil. Apenas para deixar saudade, nos verdadeiros cinéfilos, de um cinema brasileiro extremamente criativo e popular, que há muito tempo não existe mais...


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O Torturador (1981, Brasil)
Direção: Antônio Calmon
Elenco: Jece Valadão, Vera Gimenez, Otávio
Augusto, Marta Anderson, Rodolfo Arena, Ary
Fontoura, Paulo Villaça e Anselmo Vasconcellos.