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domingo, 22 de dezembro de 2013

Entrevista com Dedé Santana - Parte 1


Há alguns meses, quando eu soube que o ex-Trapalhão Dedé Santana estaria de passagem pela minha cidade-natal como atração principal do Circo Mix, decidi que não perderia a chance de entrevistar o meu segundo preferido do quarteto (depois, claro, do Mussum).

Nascido em 1936, descendente de ciganos e filho de artistas de circo, Dedé sempre viveu nos picadeiros (consta que apareceu em seu primeiro espetáculo circense quando tinha apenas alguns meses de vida!). Não demorou para ele levar esse humor circense para a TV e para o cinema, primeiro com a dupla humorística Maloca e Bonitão (com o falecido irmão Dino Santana), e depois na famosa parceria com Renato Aragão que daria origem aos imortais Trapalhões.

Várias entrevistas com Dedé Santana já foram feitas, mas eu queria abordar um aspecto que geralmente meus colegas jornalistas deixam de fora: o diretor de cinema Dedé Santana. Porque hoje pouca gente lembra, mas ele assinou quatro filmes da fase de ouro do quarteto ("Os Trapalhões e o Mágico de Oróz", "A Filha dos Trapalhões", "Os Trapalhões no Reino da Fantasia" e "Os Trapalhões no Rabo do Cometa"), mais um quinto sem Renato, "Atrapalhando a Suate", dos tempos em que os Trapalhões estavam separados.


Inicialmente, o contato com o pessoal do circo em que ele iria se apresentar foi complicado, já que dias e horários para a entrevista eram marcados e desmarcados (depois descobri que o astro teve queda de pressão num dos dias e precisou passar algumas horas no hospital em observação). Mas não desisti: numa das noites em que o circo se apresentaria, fui acompanhar o show normalmente como espectador, e, ao final, quando Dedé distribuía autógrafos, aproveitei para me infiltrar entre os vários fãs e o abordei:

"Sr. Manfried Sant'Anna?" - este é o nome de batismo do Trapalhão.

Ao ouvir seu nome completo, Dedé fez uma daquelas suas típicas caretas de Trapalhão e respondeu fingindo medo: "Rapaz, para me chamar por este nome, só pode ser encrenca!". Estava quebrado o gelo. Mesmo sendo um dos artistas mais populares do Brasil, que teve sua cara associada a programas de TV, filmes, discos, camisetas, produtos diversos e até revistas em quadrinhos, Dedé Santana é uma pessoa simpaticíssima e humilde!

Ao mestre, com carinho: presenteando Dedé com o DVD de um dos meus filmes, "Canibais & Solidão" (que presente de grego!)

Comentei sobre minha intenção de entrevistá-lo e ele ficou animadíssimo; especialmente quando disse que não iria lhe questionar sobre Renato Aragão ou Os Trapalhões, como já é costume entre os colegas de profissão. Não demorou para Dedé revelar-se um verdadeiro apaixonado pelo trabalho atrás das câmeras, que inclusive ficou feliz por ser entrevistado como cineasta, e não como ex-Trapalhão pela milionésima vez.

Infelizmente, Dedé Santana continua um astro com agenda cheia. Eu só tive direito a uns 40 minutos com ele, no intervalo entre uma apresentação e outra. O resultado o leitor acompanha a seguir. Percebam que usei "Parte 1" no título dessa postagem, justamente porque essa entrevista não foi concluída - ela foi interrompida quando estava mais ou menos na metade!

Mas Dedé percebeu meu interesse e garantiu que no futuro me concederia mais tempo para uma possível segunda parte. Enquanto isso, vejamos o que o carismático Manfried Sant'Anna comentou sobre amazonas alemãs, macacos, as lições que aprendeu com Ary Fernandes, J.B. Tanko e Adriano Stuart, a influência dos musicais de Hollywood nos seus filmes, e muito mais...



FILMES PARA DOIDOS: Dedé, você estreou como diretor no "Atrapalhando a Suate"...
DEDÉ SANTANA (interrompendo): Na realidade, o primeiro filme que eu fiz se chamava "Os Desempregados", em preto-e-branco e tal. Esse foi o primeiro que escrevi e dirigi, e também é conhecido como "Os Irmãos Sem Coragem". Naquela época eu não podia colocar meu nome como diretor porque não tinha carteira.

FPD: Quem assinou a direção foi...?
DS: Foi o [Antonio Bonacin] Thomé, que era só o diretor de fotografia. Mas como eu não podia assinar como diretor, eu falei: "Olha, assina você, Thomé. Eu assino só como roteirista". Isso foi em mil novecentos e antigamente, eu nem lembro o ano mais! [Nota: o filme foi lançado em 1972]

FPD: E era um filme do Maloca e Bonitão.
DS: Isso, e quem fazia o Bonitão era meu irmão. Com esses personagens nós fizemos... Deixa eu ver... Esse "Os Desempregados", "Deu a Louca no Cangaço", "2000 Anos de Confusão" (ambos de 1969)...

FPD: E uma participação no "Se Meu Dólar Falasse" (1970), lembra?
DS: Isso, isso. Eu fazia várias participações nessa época, fiz até para filme estrangeiro.

FPD: O alemão aquele, "Lana, Rainha das Amazonas" (1964)!
DS (arregalando os olhos): Você já viu "Lana, Rainha das Amazonas"?

FPD: Sim pô, eu gosto muito desse filme! (risos)
DS: Por sinal, consegui uma cópia dele só agora, eu não tinha. Aí fui assistir e pensei comigo mesmo: "Belo canastrão esse cara!". (risos)


FPD: Já que estamos falando nele, o que você acha de "Lana, Rainha das Amazonas"?
DS: Rapaz, para a época ele foi muito bem. Na Alemanha, todo filme que tratava de amazonas e essas coisas fazia sucesso, tanto é que esse filme estourou lá fora. Na Alemanha, fiquei sabendo que chegou a ter filas na porta dos cinemas para ver "Lana, Rainha das Amazonas"! (risos) Inclusive aquela menina... A loira... Uns dois anos depois ela trocou de nome e ficou muito famosa. Ela trocou para Maria Schell, e, pode ver, fez até filmes famosos. Mas naquela época ela ainda não era a Maria Schell. (risos)

[Nota: Dedé na verdade fez confusão, já que a atriz de "Lana, Rainha das Amazonas", chamada Catherine Schell, não tem nada a ver com Maria Schell, que é uma outra atriz. Em todo caso, Catherine também apareceu em filmes famosos, como "O Prisioneiro de Zenda" e "007 - A Serviço Secreto de Sua Majestade".]

FPD: Também nesse filme o vilão é o Átila Iorio, que teve presença marcante na sua vida, já que foi seu sogro durante muitos anos e você até batizou um filho com o nome dele (Attila Iorio Santana, mais conhecido como Dedé Santana Jr.).
DS: Isso aí. Pô, o cara sabe tudo de mim! (risos) Eu não vou te dar meu livro! Você já sabe tudo, por que quer o meu livro?

Átila Iorio (esq.) e um jovem Dedé em "Lana, Rainha das Amazonas"

[Nesse momento, Dedé pega uma sacola que estava do lado do sofá e tira dois exemplares do livro "Eu e Meus Amigos Trapalhões", que escreveu sobre sua carreira e vida religiosa, e deu de presente para mim e para meu irmão Rodrigo, que estava presente filmando a entrevista.]

FPD: Eu nem sabia que existia esse livro. É novo?
DS: Na verdade saiu agora, eu fiz ele mais para venda interna. Mas fala de todos os filmes, dos meus grandes amigos, tipo... Olha aqui... (mostra fotografia de Carlos Alberto de Nóbrega) O grande Carlos Alberto... E olha essa aqui... (pára numa foto dele com Renato Aragão, ambos jovens nos anos 1960) Olha só como era Dedé e Didi no começo! O Dedé tinha o corpo que o Didi tem hoje, e o Didi era ainda mais magro!

FPD: E o Didi tinha cabelo...
DS (apontando para a foto): Pô, olha só que cabelão! (passa para outra foto com Renato e Roberto Guilherme, o Sargento Pincel, nos anos 90) Essa aqui é em Portugal. Muita gente não sabe, mas quando pensavam que eu estava fora da televisão, na verdade eu estava em Portugal. O Didi continuou fazendo o Criança Esperança, mas eu saí. Pensavam que eu estava desempregado, mas na verdade estava em Portugal. Ficamos três para quatro anos em primeiro lugar de audiência lá, três anos batendo o primeiro lugar, e depois, lá pelos três anos e meio, caiu um pouco, mas ainda era uma audiência muito alta.


Abertura do programa "Os Trapalhões em Portugal"
 


FPD: Foi boa essa experiência em Portugal?
DS: Olha, foi a primeira vez que eu me senti artista na vida. (abre um sorrisão)

FPD: É mesmo?
DS: Foi. porque o tratamento lá era fora de série. Eu tinha o meu próprio camarim, meu próprio camareiro, meu próprio maquiador. Aí pensei: "Pô, agora sim tou me sentindo um artista!". Mas menos de um ano depois, a Globo já tinha mais estrutura que eles. Hoje a Globo... Rapaz, eu tenho muito orgulho de trabalhar com eles. Você vê, eu moro em Itajaí (Santa Catarina). Quando eles me contrataram, eu falei que queria continuar em Itajaí. Disseram que não tinha problema, e hoje me dão passagem de avião, hotel, carro à disposição e tudo mais quando tem gravação! Mas claro que nunca vou esquecer de outras emissoras que mataram a minha fome, como a Record, onde fiquei dois anos com "A Escolinha do Barulho", e o SBT, onde fiz "Dedé e o Comando Maluco" por quatro anos.

FPD: Voltando ao "Lana, Rainha das Amazonas", acho que foi um dos seus raros papéis sérios, não foi?
DS: Na verdade meu papel era meio comédia, porque o cara batia palmas para uma cobra e ela saía correndo! (risos)

Capanga dos vilões, Dedé atira num montão de índios e acaba levando flechada nas costas em "Lana, Rainha das Amazonas"!

FPD: Ah, mas você é da turma dos bandidos, mata um montão de índios e até toma uma flechada nas costas!
DS: É mesmo, levo uma flechada! (risadas sonoras) Na realidade mesmo, eu me assustei quando fui no cinema na época. Não com a versão alemã, mas com a versão brasileira...

FPD: Por causa da quantidade de mulher pelada? (risos)
DS: Não, porque... Bom, para a época isso aí também foi uma coisa chocante. E o filme deu bilheteria no Brasil, talvez até por causa disso. (risos) Naquela época ainda era muito difícil ver mulher pelada no cinema. Mas o que aconteceu foi o seguinte: estou lá eu olhando o letreiro (créditos iniciais) do filme e aparece Christian Wolff, que era tipo o Kirk Douglas da Alemanha, depois Átila Iorio, depois o nome da menina, e depois Dedé Santana sozinho na tela, bem grande! Eu, no cinema, pensei: "Meu Deus do Céu, o que é isso?". Porque eu esperava meu nome bem pequeno. Já na versão alemã não, lá meu nome aparecia bem pequeno.

FPD: Como foi que você começou a dirigir?
DS: Rapaz, eu sempre tive o sonho de dirigir! Inclusive estudei para isso, fiz um curso com o Ary Fernandes (ao lado), que você sabe que foi o Vigilante Rodoviário. O Ary fazia um verdadeiro milagre naquela época porque se encarregava de tudo: ele escrevia, dirigia, montava... Ele fazia tudo! E o filme, na época, demorava uns dois ou três dias para ver depois que você filmava, mas mesmo assim ele conseguia fazer um episódio do Vigilante Rodoviário a cada 10 dias! E com cachorro! É muito difícil trabalhar com criança e qualquer animal, porque você não consegue dirigir, falar "Vai ali" e fazer ele ir. Enfim, fiz um curso com o Ary e, no primeiro dia, perguntei quanto ele iria me cobrar. Ele respondeu: "Olha Dedé, não vou te cobrar nada, mas você tem que vir lá em casa". Então eu acordava às quatro, cinco horas da manhã e ia para a casa dele. Geralmente, acabava tomando café na casa dele, oito da manhã, porque ele só saía de casa pelas onze. E o Ary se interessou tanto por mim que às vezes passava do horário. Tipo, "Te dou mais uma horinha", mas passávamos duas horas ali discutindo roteiro. Eu aprendi muito com ele, principalmente em matéria de enquadramentos. Outro grande professor meu foi o J.B. Tanko. Ele era um grande diretor, mas o que mais aprendi com ele foi como construir um roteiro. Começou assim: uma vez eu tive uma ideia de fazer um filme baseado em "O Planeta dos Macacos".

FPD: "O Trapalhão no Planalto dos Macacos" (1976)!
DS: Isso, "O Planalto dos Macacos". Eu vi o filme original no cinema e pensei: "Pô, a gente podia fazer uma sátira disso!". Um dia nós estávamos filmando numa gruta, não lembro para qual filme, e eu falei: "Seu Tanko, tive uma ideia para um filme que vai estourar na bilheteria! Vamos fazer uma sátira do Planeta dos Macacos". E ele: "Mas o quê? Pára com isso! Vamos continuar a filmagem!". Depois, na hora do almoço, ele me puxou para o lado e disse: "Dedê, vem aqui almoçar comigo e me fala mais desses macacos". Porque era assim que ele me chamava por causa do sotaque, de “Dedê”. [Nota: Tanko era originário da antiga Iugoslávia]. Aí o Tanko me levou para Muriqui, onde ele tinha uma casa de praia, e falou: "Dedê, te convidei para passar uns dias aqui comigo, mas quero que você faça aquele roteiro sobre o qual me falou". Respondi: "Mas como, Seu Tanko?". E ele repetiu: "Faça o roteiro". Eu insisti: "Mas como assim 'faça o roteiro'?". Aí ele me explicou: "Olha, os diálogos não precisa, você apenas construa o roteiro, faça uma sinopse". Depois disso eu não demorei, fiz praticamente de um dia para o outro, e entreguei. Ele leu, leu, e falou: "Não, não, tudo errado!". (risos)


FPD: Qual era o problema?
DS: O próprio Tanko me explicou: "Você entra num ambiente fechado e não sai mais. Não é assim! O povo precisa respirar! Se você começar fechado, você abre depois, deixa o povo respirar! Acho melhor você fazer outro roteiro". Aí ele me deu mais alguma dicas, eu reescrevi tudo, o Tanko leu e falou: "Tá ótimo!". Tanto é que você vê, em "O Planato dos Macacos", o crédito "Colaboração no roteiro: Dedé Santana". Não só nesse, mas em outros também. E eu aprendi isso com ele. Agora, sobre humor no cinema, eu aprendi muito com o Adriano Stuart.

FPD: Adriano Stuart, grande mestre!
DS: Ele era ligeiro, inteligentíssimo, sabia tudo! Aí de repente ele mudava tudo, falava: "Olha, ao invés de abrir aqui, você abre ali. Aí o Didi vem por ali, você tropeça nele e cai aqui". Ele inventava tudo na hora! E o Adriano era um mestre mesmo, porque o pai dele era um mestre do humor, o Walter Stuart. Ele criou o primeiro circo de televisão, o Cirquinho Bombril. [Nota: Walter Stuart foi o idealizador e apresentador do programa semanal "Circo Bombril", da TV Tupi, em que artistas circenses se apresentavam ao vivo.] Eu aprendi muito com esses dois caras, o Tanko e o Adriano Stuart. Agora, o Tanko era muito corajoso... Eu dava muito palpite, até me chamava de palpiteiro. Teve uma vez que ele me chamou a atenção: "Ô Dedê, deixa eu fazer o meu filme? No dia que você fizer o seu filme pode falar, mas agora eu estou fazendo o meu!". Mas eu realmente dava muito palpite, chegava nele e dizia: "Ô Tanko, você não acha que essa cena devia ser de tal jeito?". Aí tinha uma coisa engraçada... Às vezes eu dizia "E se o senhor fizesse assim, assim e assim", e ele me cortava: "Dedê, faz favor! Me deixa trabalhar!". Aí quando ele começava a gravar, pensava um pouco e perguntava: "Ô Dedê, como você falou mesmo para fazer a cena?". (risos) Aí eu dizia: "Olha, Seu Tanko, eu faria assim, assim e assim". E ele: "Isso! Isso! Vamos fazer assim!". Acabava fazendo muita coisa do jeito que eu sugeria para ele. Na verdade, eu tinha mais prática em circo, em humor, em como cair. Tanto que em todos os filmes do Tanko, todas as lutas que você viu foram marcadas por mim, às vezes eu até dirigia.

Foi Dedé quem sugeriu a aventura no "Planalto dos Macacos"

FPD: E nos primeiros filmes vocês mesmos faziam tudo, sem dublês.
DS: Isso. Hoje ficou fácil, hoje tem dublês e trazem até gente dos Estados Unidos para marcar as lutas. É tudo muito bem feito, claro, mas naquela época não tinha, e aí quem se defendia nesse setor era o "Dedê"! (risos) Mas voltando ao "Planalto dos Macacos": quando eu expliquei minha ideia para o Tanko, ele achou que as máscaras dos macacos seriam um problema. E realmente, na época, isso ficaria muito caro, porque o ator só podia usar uma vez, no fim da cena arrancava tudo e precisava construir outra depois. Então ele disse: "Olha Dedê, a tua ideia é boa, mas é impossível". Eu perguntei: "Mas, Seu Tanko, e se eu fizer a máscara?". Ele respondeu: "Bom, se você fizer a máscara, esse vai ser o nosso próximo filme!". (risos) Então eu comprei uma máscara de macaco, que na época estavam vendendo por causa do sucesso de "O Planeta dos Macacos", recortei ela toda e deixei só a parte do nariz e da boca. Colei ela, fiz uma maquiagem no resto do rosto e filmei com uma câmera Super 8, porque o Tanko queria ver na tela. Quando ele viu, ficou surpreso: "Mas como você consegue isso? Se eu chamar uma maquiadora, você explica tudo?". Aí ele chamou a melhor maquiadora do Rio e compramos uma outra máscara melhor, de borracha. A maquiadora viu e disse: "É possível, mas vamos ter que usar uma maquiagem especial para enrugar o resto do rosto que fica fora da máscara". Aí fizemos o filme, e foi um sucesso de bilheteria!

FPD: Você quase morreu durante as filmagens, né? [Dedé sofreu um acidente grave ao bater a motocicleta que pilotava contra um poste, onde bateu a cabeça. Precisou ficar internado durante um tempo e inclusive se submeter a cirurgia plástica no rosto antes de retornar ao set do filme].
DS: Deus me livre! E não só isso: eu inventei sarna para me coçar com aquela história de me transformar em macaco. Porque eu não gosto de dublê, nunca usei nos meus filmes...

FPD: Coisa de artista de circo.
DS: É... E o Tanko tinha me avisado para usar um dublê quando eu me transformava em macaco, mas eu insisti: "Não, Seu Tanko, quero fazer eu mesmo". E foi a maior mancada que eu dei! (risos) Eu botava a maquiagem às seis da manhã e tinha que ficar daquele jeito até a última cena! Na hora de comer, não tinha comida: era vitamina tomada com canudinho! Me arrependi e hoje acho que devia ter usado dublê mesmo, porque eu sabia que era eu ali, mas o público só vê um macaco!

Dedé como "macaco": era ele mesmo por baixo da máscara!

FPD: Podia ser qualquer um!
DS: Sim! E "O Planalto dos Macacos" foi um filme que me deu muita alegria, mas também muito cansaço. Quando a gente bateu em 30 dias de filmagens eu já estava até meio traumatizado, rapaz! Já estava me dando pânico, não queria mais colocar aquela máscara! Fiquei num mau humor que eu mesmo não me aguentava, só de saber que tinha que colocar a máscara toda hora! Meu Deus do Céu! Mas no final deu tudo certo.

FPD: E por que você não dirigiu mais nada até "Atrapalhando a Suate" (1983)?
DS: Para falar a verdade, eu dirigi todas aquelas cenas de "Os Saltimbancos Trabalhões" (1981) nos Estados Unidos, no Universal Studios, com o tubarão e tal. E dirigi nos Estados Unidos sem falar inglês, eu tinha um intérprete, e acabou que me saí bem. O engraçado é que eu recebi uns três palpites muito bons lá, e me lembrei de quando eu fazia isso com o Tanko. (risos) Acontece que eles lá (se referindo à equipe norte-americana) são muito éticos para falar com o diretor, para eles o diretor é um deus e eles me tratavam como tal. Mas eu era muito popular, brincava com todo mundo, brincava de falar inglês e eles morriam de rir, e tal. E me lembro muito bem que eu fiz uma cena em que o Didi vinha lá de trás, no cenário do "Guerra nas Estrelas", e coloquei a câmera para pegar metade do boneco do "Guerra nas Estrelas" vindo por cima dele. Aí eu senti uma espécie de mal-estar na equipe... Não exatamente um mal-estar, um clima esquisito. Perguntei para o intérprete o que estava acontecendo, e ele disse: "Sabe o que é, aqui eles não dão nenhum palpite, mas o diretor de fotografia tem uma ideia e queria transmitir pra você". Eu pedi para ele contar sua ideia, e o cara me explicou que se eu colocasse a câmera embaixo, nos pés, o Didi apareceria pequeninho no fundo, mas conforme chegasse perto ele ia crescendo cada vez mais, e aí eu abria a câmera e ele apareceria bem no ombro do boneco. Na mesma hora eu disse: "Ótimo, vamos fazer assim!".

Dedé filmou as cenas na Universal de "Os Saltimbancos Trapalhões"

FPD: Mas o pessoal estava com vergonha de sugerir para o diretor. (risos)
DS: Pois é, eles não queriam falar. Mas rapaz, esse diretor de fotografia acabou ficando meu melhor amigo lá, só porque eu aceitei a ideia dele. Outro palpite foi numa cena em que a gente saía correndo de dentro de um foguete. Eu gravei várias cenas e já ia terminar a filmagem, porque era quatro e meia da manhã e estava um frio danado. De novo, ele pediu para falar comigo, me deu uma dica para posicionar a câmera, e aquilo me salvou a sequência inteira!

FPD: A sua volta como diretor, em "Atrapalhando a Suate", foi por causa daquela separação do Renato dos demais Trapalhões...
DS (interrompendo): Na verdade não foram os Trapalhões que brigaram, foram as empresas, a Renato Aragão Produções e a Demuza. O irmão do Renato [Francisco Paulo Aragão] me ligou avisando que eles iam fazer um filme sem a gente, aquele do dinossauro Papangu ["O Trapalhão na Arca de Noé"]. E quando ele falou que iam fazer o filme sem a gente, na verdade eles já estavam até filmando! O Renato não quis se meter muito, era uma briga de empresas, e um dia o Mussum ligou para a minha casa e disse: "Ô compadre, você não falou que era diretor de cinema? Então vamos fazer o nosso filme!". Aí nós nos reunimos e foi quando surgiu a ideia do "Atrapalhando a Suate", porque tinha aquele seriado "SWAT" no ar, na Globo, e fazia muito sucesso.

[Nota: Aqui Dedé tentou suavizar um pouco a história, já que, na época, houve uma briga dos três Trapalhões com Renato Aragão - ou seja, não foi apenas uma separação de "empresas". A reportagem abaixo, publicada pela Folha de São Paulo na época da produção de "Atrapalhando a Suate", traz inclusive declarações magoadas dos três Trapalhões contra seu então ex-líder Renato Aragão.]

Reportagem sobre "Atrapalhando a Suate" na Folha de 09/10/83

FDP: Foi muito difícil escrever um roteiro para os três Trapalhões sem o Didi?
DS: Não, no dia seguinte eu já tinha toda a história do filme. Eu queria fazer uma cena meio trágica, com os heróis sendo expulsos da Suate e agindo por conta própria. [Nota: É bem possível que seja uma referência à "expulsão" do trio do novo filme de Renato Aragão na época.] Aí eu falei: "Mussum, vou precisar de umas músicas específicas para o filme, porque quero fazer várias cenas musicais no meio". E o Mussum disse: "A música pode deixar comigo!". E logo ele veio com aquela letra (cantarolando) "Tã-na-nam que a Suate chegou". Foi ele e alguns sambistas amigos dele, agora não me recordo o nome, mas eram famosos pra caramba! [Nota: Um dos compositores da trilha do filme foi Jorge Aragão.] Ele levou os caras na casa dele e fizeram tudo. Outra coisa sobre a trilha sonora é que o Mussum, certa vez, me contou uma história da infância dele sobre uma babá, e eu pedi para ele fazer uma outra música em homenagem às babás. Também tive a ajuda de um grande amigo meu, o Victor [Lustosa] que fez todos os filmes dos Trapalhões e é meu compadre, sou padrinho da filha dele. A gente era muito amigo e eu o convidei, o Victor arriscou a carreira e largou tudo para ficar comigo!

FPD: Ele também ajudou você a dirigir, não foi?
DS: Ajudou, tanto no "Suate" quanto no "Mágico de Oróz" (1984).

FPD: Que foram os únicos dois filmes que ele dirigiu...
DS: Não, ele fez... (pensando) É, acho que foram só esses dois mesmo! Mas ele escreveu muitos filmes para a gente, e nesse momento inclusive está escrevendo um roteiro para mim. Eu tenho que levar ele para Santa Catarina, porque a gente trabalha muito rápido eu e ele. É uma coisa incrível, cara! Eu visualizo a cena e conto para ele representando, e ele vai anotando e assimila muito bem. Ele é ótimo! Há pouco tempo ele fez um roteiro para um filme sobre uma mulher muito famosa de Santa Catarina, não lembro o nome, mas é um fato histórico bem conhecido. E o projeto só não foi aprovado porque uns caras passaram na frente e fizeram um documentário sobre o mesmo assunto. Eu ia aparecer no filme, ia fazer um papel lindo, de marinheiro, acho que seria meu primeiro papel sério de verdade no cinema, mas não deu.


FPD: E o que você acha do "Atrapalhando a Suate", Dedé?
DS: Olha... Bom, você sabe que todo filme pertence à sua época, e para aquela época ele foi muito bem feito. A gente não tinha recursos, usamos uma câmera só, e eu cismava em fazer umas cenas difíceis. Dizia pro Victor: "Quero fazer um cara andando num cabo de aço com uma moto!". E ele: "Não dá, não temos trucagens". Aí eu respondia: "Mas tem um número de circo que o cara faz isso, eu vou buscá-lo!". O cara que fazia o macaco também era de circo, todo mundo jura que é um macaco de verdade, mas não é. Fui catar esse cara também. E eu tinha um sonho, quando era pequeno queria ser escoteiro, e o Zacarias parece que até foi escoteiro. Então aproveitei e coloquei isso no filme, aquele final com os escoteiros bombardeando os vilões com farinha, e a minha sorte é que foi tudo aprovado pelo Mussum e pelo Zacarias. Acho que deu muito certo, graças a Deus. A parte musical ficou lindíssima, e teve uma música que, mais tarde, nós gravamos com todos os Trapalhões, e foi a única música do quarteto que tocou no rádio direto. Sabe aquela (cantarolando) "Todo mundo deve entrar na dança...".

FPD: Caso as empresas não tivessem voltado, a Demuza tinha outros projetos em vista? Vocês chegaram a falar sobre futuros filmes sem o Didi, ou não deu tempo?
DS: Na realidade, eu não queria! Eu fui muito contra isso porque esperava... Eu queria voltar. Não adianta... O Boni inclusive me falou naquela época... Minto, foi o Roberto Marinho quem falou, ele nos chamou e disse: "Vocês são a galinha dos ovos de ouro, por que vão matar a galinha? Vocês têm que voltar". E eu provoquei muito essa volta através de um grande amigo, o Beto Carrero, que era meu amigo de infância. Eu o conheci com 17 anos de idade. Ele apareceu no circo do meu pai querendo ser artista, dizia: "Eu quero ser o Cowboy Brasileiro!". E meu pai brincava: "Olha, se for cowboy não é brasileiro! Para ser brasileiro, você precisa ser vaqueiro, boiadeiro...". (risos) Mas não adiantou, ele ficou nessa de "Cowboy Brasileiro" e foi! Anos depois, eu convidei o Beto para fazer um dos meus filmes, aquele com a Xuxa...

Renato Aragão e Xuxa no "Reino da Fantasia"

FPD: "Os Trapalhões no Reino da Fantasia" (1985).
DS: Sim, que foi um filme muito difícil para filmar, porque era difícil de reunir todo mundo naquela época. Então eu tive que fazer muito plano fechado dos atores sozinhos e depois, na montagem, intercalar para parecer que eles estavam todos juntos conversando, quando na verdade foi tudo filmado separado!

FPD: Sei como é, eu faço muito dessas malandragens... (risos) Mas depois do "Atrapalhando a Suate" os Trapalhões voltaram e você virou o diretor oficial dos filmes do quarteto durante alguns anos. Era muito difícil dirigir o Renato?
DS: Na verdade, eu sempre digo que os Trapalhões não são dirigidos, eles são marcados. Como é que você vai dirigir os Trapalhões? Era meio difícil... Então funcionava mais na base de dicas, uma coisa que eu aprendi com o Tanko. Por exemplo, eu tenho esse ambiente aqui. O que eu preciso filmar aqui? (Gesticulando) Bom, o Mussum vem dali, o Didi surge pelo teto e cai aqui, eu venho por baixo e o Zacarias vem de lá... Então eu não dirigia, eu explicava a cena e cada um fazia do seu jeito. Eu não ia mandar em como o Mussum tinha que falar, tipo "Chega aqui e fala 'tranquilis'", ou "Didi, você fala 'psit'". Não, eu apenas indicava a cena. Como na Renato Aragão Produções eu tinha mais recursos, várias vezes trabalhei com duas câmeras: uma ficava no geral e a outra cercando os atores, o que era muito bom. Eu dizia para esse segundo câmera: "Fica na cara do Renato, porque ele é muito imprevisível. Agora fica no Mussum". Inclusive no "Reino da Fantasia" teve cenas que filmei com três câmeras para não precisar refilmar: coloquei uma no plano geral, outra em plano médio e a terceira só em detalhes. O pessoal me dizia: "Mas Dedé, você não vai conseguir montar isso depois". Mas eu consegui fazer! Todas aquelas cenas de teatro do "Reino da Fantasia" foram feitas numa batida só, e depois eu mesmo montei na moviola, olhava as cenas e dizia: "Peraí, eu sei que tem um plano fechado disso que dá para aproveitar". Hoje é tudo no computador, mas naquela época era na moviola, filminho por filminho. (pausa) Dos filmes que eu dirigi, você sabe qual é a minha menina dos olhos?

FPD: "A Filha dos Trapalhões" (1984).
DS: "A Filha dos Trapalhões"! Eu adoro esse filme! Agora, "O Mágico de Oróz" acho que foi um filme que eu fiz muito bem, consegui transmitir bem até na figuração, e isso eu agradeço ao meu compadre Victor, porque ele me ajudou muito a escolher os figurantes. As cenas musicais também são lindas. Bom, você viu que todo filme meu tem musical, né?

FPD: Por falar nisso, Dedé, quais são as suas influências cinematográficas?
DS: Eu via muito filme musical americano. Posso até te dizer: "Sete Noivas para Sete Irmãos" (1954), se contar, acho que vi umas 12 vezes...

FPD: Por isso que depois vocês fizeram "O Casamento dos Trapalhões" (1988)?
DS: Isso mesmo. E "Amor, Sublime Amor" (1961) eu perdi as contas de quantas vezes vi. (começa a cantarolar a música-tema do filme).


E foi justamente nesse momento que a equipe do circo interrompeu a entrevista, dizendo que Dedé precisava se preparar para a apresentação. Após uma rápida sessão de autógrafos - no meu pôster de “Atrapalhando a Suate” e na capa do LP de “Os Trapalhões na Serra Pelada” do meu irmão -, e de um elogio recebido do eterno Trapalhão pela minha curiosidade sobre a sua carreira de diretor, me despeço com a promessa de voltar a incomodá-lo num futuro próximo, para a já anunciada Parte 2 dessa entrevista.

Esperemos, portanto, que o reencontro seja breve, pois Dedé Santana é um artista com muitas histórias para contar, e que infelizmente poucos jornalistas e pesquisadores parecem dispostos a ouvir, já que sempre lhe perguntam as mesmas coisas de novo, de novo, de novo e de novo...

Eu e meu irmão Rodrigo com Dedé no picadeiro do circo!

terça-feira, 22 de outubro de 2013

UMA ESCOLA ATRAPALHADA (1990)


Tenho amigos cinéfilos com ódio mortal por essas comédias modernas para "consumo popular" produzidas/distribuídas pela Globo Filmes, que já foram apelidadas de "Globochanchadas", e que são estreladas pelos nomezinhos de destaque no momento (independente de terem ou não talento). Ok, eu confesso que também passo longe de coisas como "De Pernas Para o Ar" e "Vai que Dá Certo", mas vamos combinar que este fenômeno não é recente.

Afinal, se hoje temos filmes de gosto duvidoso estrelados por pseudo-celebridades de gosto duvidoso como Leandro Hassum, Marcelo Adnet, Freddy Mercury Prateado e a turminha do Porta dos Fundos, no passado produções de gosto tão ou mais duvidoso eram estreladas por pseudo-celebridades de gosto tão ou mais duvidoso, como Faustão, Carla Perez, Sergio Mallandro, Fofão ou, no caso específico da obra aqui em análise, Supla e Angélica! Ou seja: filme ruim com pseudo-celebridades não é de agora, e espaço na mídia sempre foi mais determinante que talento para se estrelar um filme no Brasil!


Na minha modesta opinião, UMA ESCOLA ATRAPALHADA é um dos piores filmes brasileiros DE TODOS OS TEMPOS. E se eu não consegui suportá-lo nem mesmo quando era moleque e vi pela primeira vez, imagine minha cara ao revê-lo hoje. A diferença é que a passagem do tempo transformou essa bomba numa espécie de "túnel do tempo da vergonha alheia".

Sabe quando você encontra um álbum de fotografias da sua juventude nos anos 1980 e morre de vergonha ao se ver usando mullet ou ombreiras? Pois é mais ou menos essa a sensação de assistir UMA ESCOLA ATRAPALHADA hoje, mais de 20 anos depois do seu lançamento, e se deparar com cenas tipo um jovem Supla posando de "bad boy" com camisetas cortadas que deixam seu umbigo à mostra (argh!), ou o (morto e enterrado) Grupo Polegar tocando a música (morta e enterrada) "Sou Como Sou", e depois pegando um avião da (morta e enterrada) Vasp!


Lançado em 1990, UMA ESCOLA ATRAPALHADA representa um marco histórico do cinema popular brasileiro, já que traz a última aparição no cinema do grupo humorístico Os Trapalhões (Didi, Dedé, Mussum e Zacarias) como quarteto. Mauro Gonçalves, o Zacarias, morreu durante a pós-produção do filme, que inclusive é dedicado a ele com uma mensagem dos demais Trapalhões nos créditos iniciais.

Ironicamente, este não é um "filme dos Trapalhões" oficial: o grupo faz apenas uma participação especial, apesar da referência no título ("Atrapalhada" - "Trapalhões", pegou?). Até então, durante duas décadas, Os Trapalhões eram os reis das bilheterias do cinema brasileiro, estrelando praticamente um filme por ano. Em 1989, por exemplo, "Os Trapalhões na Terra dos Monstros" levou 3,2 milhões de espectadores aos cinemas, mas nos bons tempos eles vendiam mais de 5 milhões de ingressos.


UMA ESCOLA ATRAPALHADA representou uma espécie de ponto de virada na trajetória do quarteto, já que suas produções nos últimos anos (notoriamente entre 1987-89) estavam excessivamente infantis, e eles queriam atingir um público um pouquinho mais velho - os adolescentes.

Carinhas jovens da moda até já vinham aparecendo em seus filmes como coadjuvantes (tipo o Grupo Dominó em "Os Fantasmas Trapalhões", "Os Heróis Trapalhões", "O Casamento dos Trapalhões" e "Os Trapalhões na Terra dos Monstros", ou o Trem da Alegria em "A Princesa Xuxa e os Trapalhões"). Mas, pela primeira vez, o quarteto resolveu deixar a molecada em destaque e ficar em segundo plano, só para "sentir o mercado".


Embora não tenha dado muito certo (diversos espectadores sentiram-se enganados, pois o título e a presença dos Trapalhões no pôster indicavam que era justamente um "filme dos Trapalhões" tradicional), UMA ESCOLA ATRAPALHADA rendeu uma bela bilheteria (cerca de 2,5 milhões de espectadores) e umas novecentas reprises na TV. Além, claro, de marcar a despedida do quarteto.

Com a morte de Zacarias, e a experiência um tanto frustrada de atuarem como coadjuvantes para uma nova geração de "estrelas", os Trapalhões reminescentes tentaram retomar o trono de reis da bilheteria. Mas não deu muito certo: as produções seguintes do agora trio ("O Mistério de Robin Hood" e "Os Trapalhões e a Árvore da Juventude") nem chegaram aos dois milhões de ingressos vendidos. Os tempos estavam definitivamente mudando...


Voltando a UMA ESCOLA ATRAPALHADA: a trama escrita por Luis Carlos Góes e Tania Lamarca (a partir de um argumento de Renato Aragão e Paulo Aragão Neto) se passa numa escola particular para filhinhos-de-papai, a Matheus Rosé (que, na vida real, é o Colégio Marista São José, do Rio de Janeiro). Ali, adolescentes riquinhos, brancos e de corpo perfeito agem como adolescentes de cinema enquanto professores e diretores são todos muitos liberais, simpáticos e compreensivos com a garotada.

O ano letivo está começando e novos alunos chegam ao Matheus Rosé, tipo a garota misteriosa e rebelde Tami, interpretada por Angélica (e sabemos que ela é misteriosa e rebelde porque ela entra em cena com ar blasé, óculos escuros e faz mais cara-de-bunda por minuto do que a Kristen Stewart na série "Crepúsculo"!).


A atual Sra. Luciano Huck já havia participado de dois filmes anteriores dos Trapalhões ("Os Heróis Trapalhões" e "...na Terra dos Monstros"), mas ainda era uma apresentadora de programa infantil da TV Manchete. Inclusive no ano seguinte (1991) estrelaria a novela "O Guarani" na extinta emissora, no papel de Ceci.

Sua participação em UMA ESCOLA ATRAPALHADA acabou carimbando-lhe o passaporte para voos mais altos. Angélica logo trocaria a Manchete pelo SBT, onde apresentou um programa infantil de sucesso (Casa da Angélica), além do popular Passa ou Repassa no lugar do apresentador habitual, Gugu Liberato. Mais tarde, em 1996, ela venderia o passe para a Globo, onde também chegou a ter seu próprio programa infantil (Angel Mix), e estrelou mais algumas "Globochanchadas", tipo "Zoando na TV" (1998) e "Um Show de Verão" (2004), ao lado do futuro maridão.


Outros novatos são os quatro garotos vindos do interior (e sabemos que eles vêm do interior porque entram em cena num carro coberto de lama, e todos vestem a mesma camisa quadriculada estilo "Jeca Tatu"). O Dominó, que havia aparecido nos quatro filmes anteriores dos Trapalhões, já tinha perdido sua popularidade e espaço na mídia na época; assim, a solução foi substituí-los pelo Polegar (Alex, Alan, Ricardo e o notório Rafael Ilha, ou "Rafael Pilha").

Tanto Dominó quanto Polegar foram grupos criados e empresariados pelo então apresentador do SBT Gugu Liberato (que também está no elenco do filme), então duvido que alguém tenha realmente percebido a diferença. E Nill, ex-Dominó, faz uma "participação especial" aqui como irmão de Angélica, talvez como agradecimento aos "serviços prestados" pelo seu ex-grupo.


O que os alunos novos não tardarão a descobrir é que a escola é "dominada" por um rapaz encrenqueiro, Carlão (Supla, quem mais?). E se hoje o popular Eduardo Smith de Vasconcelos Suplicy é motivo de piada para a maior parte dos seres humanos, na época ele era uma verdadeira promessa de astro pop: ex-vocalista da banda Tokyo, havia recém gravado seu primeiro disco solo e tinha até pegado a famosa roqueira alemã Nina Hagen, para quem dedicou o hit "Garota de Berlim".

Carlão/Supla é o líder de uma turminha de filhinhos-de-papai mimados e "rebeldes" que inclui ainda o chatíssimo Renan (ninguém menos que Selton Mello, em sua estreia no cinema!), a queridinha Paula (Maria Mariana, que depois alcançaria relativo sucesso com o livro/seriado "Confissões de Adolescente", antes de mergulhar de volta para a obscuridade), e um montão de outros anônimos que não fedem e nem cheiram, tipo uma riquinha metida a bicho-grilo interpretada por Patrícia Perrone.


Aí o loirão platinado se interessa pela "misteriosa" Tami. Só que eles se odeiam, e passarão o restante do filme brigando, discutindo ou competindo um com o outro. Os conflitos amorosos se estendem aos garotos do Polegar, que também encontram suas paixonites dentro da escola. Um deles (não me pergunte qual, pois são todos iguais!) se apaixona pela namorada do Selton Mello, o que renderá ainda um chatíssimo triângulo amoroso.

Em meio a tudo isso, há ainda um sub-plot envolvendo misteriosas sabotagens e ameaças à escola, pois uma imobiliária pretende comprar o terreno. A diretora idealista (Jandira Martini) se recusa a desfazer-se da escola, mas um sabotador infiltrado - Anselmo, o inspetor da escola, interpretado de maneira exagerada e caricatural pelo ótimo Ewerton de Castro - começa a aprontar altas confusões para atrapalhar o ano letivo e forçar a venda do local.


Mas e onde entram os Trapalhões nessa história toda? Bom, como eu já havia alertado, eles fazem apenas pontas bem curtinhas. Mussum aparece como o impagável "Mago Mumu", cuja barraquinha de leitura de tarô fica bem em frente à escola (que conveniente!); já Dedé e Zacarias interpretam "caça-bombas", que entram em cena quando há uma ameaça de bomba no colégio.

Quem tem mais tempo em cena, claro, é Didi, no papel do "serviços gerais" da escola (que se chama, obviamente, Didi). Renato Aragão "interpreta" o mesmo personagem de sempre, o cearense boa-vida e espertalhão (sua entrada em cena é deitado numa rede no bagageiro de um ônibus que chega à cidade!) por quem todo mundo morre de amores.


Como também é clichê na obra dos Trapalhões, ele vive um amor platônico por uma das professoras (Cristina Prochaska), que já está de rolo com o professor de educação física (Marcelo Picchi, que nos velhos tempos apareceu em "Exorcismo Negro", do Zé do Caixão!).

O curioso é que Renato aproveita para interpretar uma versão estereotipada de si mesmo: um cearense humilde cujo sonho é ser astro de cinema! A cena final, em que ele reaparece vestido como mendigo (mas com direito a uma surpresa), é talvez a parte mais bem bolada (e bonita) do filme inteiro.


UMA ESCOLA ATRAPALHADA antecipa a fórmula do seriado global "Malhação" (que estreou em 1995 e já está no ar há inacreditáveis 18 anos!!!), com namoricos, brincadeiras bobas e intriguinhas entre adolescentes, mas sempre num nível cartunesco e infantilóide demais (e o que esperar de roteiros "para adolescentes" escritos por quarentões?).

Embora em certos momentos o filme até acerte em resgatar aquele clima de "adolescência no final dos anos 1980", como quando mostra um bailinho dos jovens com música lenta (e quem é da época vai lembrar que essa era a hora estratégica para dançar de rostinho colado com as meninas!), esses momentos representam, no máximo, 1% da narrativa. O resto é ocupado pelos romances desinteressantes entre Supla e Angélica e entre os "Polegares" e seus casinhos, mais as poucas cenas de trapalhadas com os Trapalhões.


Por sinal, quem diria que os Trapalhões do começo dos anos 1990 (sua fase mais chata e infantilóide) seriam o ponto alto do filme. Como não há graça nenhuma na interação entre os chatíssimos personagens jovens, recai sobre os ombros do famoso quarteto a difícil tarefa de fazer o espectador rir ao invés de pegar no sono. E como os quatro veteranos aparecem muito pouco, suas poucas cenas são realmente engraçadas e não torram o saco.

Didi copia sem a menor vergonha na cara uma piada de "Crocodilo Dundee" (aquela do "That's not a knife. THAT's a knife", quando apresenta uma "peixeira cearense" de tamanho monumental a um ladrão que tenta assaltá-lo com um canivete). E quando uma bomba explode na Kombi dos "caça-bombas", onde por coincidência estão reunidos os quatro Trapalhões, Didi ironiza: "Quem mandou invadir filme dos outros?".


Os "outros", no caso, são Supla, Angélica e cia., que não têm nem talento e nem carisma para segurar um filme sozinhos. Mesmo os fãs mais apaixonados do loirão Suplicy (são poucos, mas eles existem) têm que dar à mão à palmatória e concordar que o rapaz entrega uma performance simplesmente constrangedora, tentando compor um personagem "rebelde" que é apenas chato e insuportável, e está sempre gritando e agindo como um estúpido (chega a dar um soco na cara de Angélica).

Mas, sabe-se lá por que cargas d'água, o filme tenta forçar o espectador a gostar dele, já que Carlão não é o vilão, mas sim O HERÓI DO FILME!!! Lá pelas tantas, ele até aparece treinando boxe com um saco de areia, em cena que deve estar no filme apenas por causa da semelhança física de Supla com Ivan Drago, o personagem de Dolph Lundgren em "Rocky 4" (no cabelo, não nos músculos)!


Bem, se alguém realmente torceu para o Supla se dar bem no filme, eu recomendo que procure ajuda psiquiátrica imediatamente. Porque é duro aguentar o cara com camisa do Superman cortada acima do umbiguinho, fazendo pose de "bad boy" e tentando dar lição de moral e "discurso sociológico" para cima de Tami: "Ser pobre não é o maior problema do mundo não! Qualquer um é o que é!".

Angélica, por sua vez, está apagada como "mocinha" e nunca faz nada digno da posição. A química entre Supla e Angélica é tão inexistente que, no final, quando o casal finalmente resolve assumir seu romance, não há nem sequer a tradicional cena do beijão apaixonado na boca. Pelo contrário, o máximo que vemos de "contato físico" é... Supla chupando o dedo de Angélica?!? Puta merda!


Quando os Trapalhões não estão em cena (e eles raramente estão), as poucas tentativas de se fazer humor são frustradas ou pelas piadas do arco-da-velha do roteiro de Góes e Tania, ou pela falta de timing do diretor Antonio (Del) Rangel, o mesmo responsável por um dos piores filmes do quarteto, "O Trapalhão na Arca de Noé" (estrelado apenas por Renato Aragão, na época em que ele havia brigado com os três parceiros).

Essas "piadas" são coisas como o personagem de Gugu Liberato, um professor de música malucão chamado "Chopin Luiz" (ai, ai...), que usa bermudas e cabelos arrepiados, ou a professora de artes que se chama "Portinara" (ai, ai...), e que protagoniza, pela milésima vez, a gag da senhora surda que entende tudo trocado. O nível é tão baixo que nem o pessoal do Zorra Total faria essas piadas.


Há, também, um momento sem-noção em que o vilanesco inspetor Anselmo leva um dos garotos para um porão escuro e raspa seu cabelo à força por "desrespeito à bandeira nacional".

É óbvio que se trata de uma referência aos torturadores nos porões da Ditadura Militar, mas ô piada de mau gosto para ser feita quando o país recém havia entrado numa democracia plena (Collor foi eleito presidente em 1989), e as feridas da Ditadura ainda estavam bem abertas e doendo.


A verdade é que eu nunca consegui entender a que público exatamente o filme se destina. Porque se o objetivo era vender UMA ESCOLA ATRAPALHADA como comédia para o público adolescente, o tiro passou longe do alvo: a ambientação e alguns personagens até lembram as comédias norte-americanas sobre adolescentes aprontando altas confusões numa escola, mas o tom do filme é tão infantil que dificilmente terá algum interesse para pessoas com mais de oito anos de idade, físicos ou mentais.

Até tem um pouquinho de ousadia por mostrar as meninas mais "à vontade" do que nos filmes dos Trapalhões, nas cenas que se passam no dormitório feminino (onde podemos ver Maria Mariana seminua, além das moças de calcinha e pernocas de fora - menos Angélica, porque ela é a "mocinha").


Mas não passa muito disso: o clima do filme é tão inocente e infantil que irrita. A escola do filme é uma escola de conto-de-fadas, onde nenhum dos jovens aparece usando drogas, fumando ou sequer bebendo uma cerveja.

Para não ser injusto, o personagem de Selton Mello enche a cara lá pelas tantas, mas o filme faz questão de mostrar isso como algo extremamente negativo (e ele ainda toma uma "tortada" na cara do Supla para aprender!).


Apesar do inspetor Anselmo viver reclamando que a diretora é muito liberal, filme e personagens são completamente assexuados, e mal vemos uns beijinhos entre os jovens, quem dirá cenas de sexo. Por isso é até surpreendente que, lá pelas tantas, pinte um clima mais dramático, com a possibilidade de que uma das garotas esteja grávida do seu novo namoradinho (embora eu desconfie que seja coisa do Espírito Santo, já que ninguém trepa nesse filme!).

Só que a gravidez não passa de um alarme falso: logo a menina faz um teste que dá negativo, então foi apenas um "sustinho bobo" e uma tentativa de enganar o espectador com dramalhão de terceira - diferente da coragem de, por exemplo, "O Último Americano Virgem", que tem uma sub-trama bem pesada envolvendo gravidez indesejada.


Curioso é que apesar de todo esse moralismo e inocência, UMA ESCOLA ATRAPALHADA acaba passando diversos maus exemplos sem perceber. Numa cena que hoje seria considerada politicamente incorreta, a vice-diretora interpretada por Fafi Siqueira dá em cima de um aluno com metade da idade dela, passando a mão no peito sem camisa do rapaz (abaixo). Quando ele foge da azaração da coroa, ela reclama aos berros: "Bicha!".

Pior é o caso da personagem de Angélica. Ela sofre bullying dos colegas riquinhos porque eles pensam que a garota é pobre. E se inicialmente o filme tenta mostrar como isso é feio e errado por parte dos coleguinhas, o tiro logo sai pela culatra quando vemos Tami se enturmando com seus "bullies" das formas menos nobres possíveis - tipo passar cola para uma das meninas que a ridicularizava, assim todos podem ver como a mocinha é "legal". Bela mensagem, não?


Gosto de comparar UMA ESCOLA ATRAPALHADA com o clássico da rebeldia juvenil "Rock'n'Roll High School", de Allan Arkush, que foi feito mais de dez anos antes (em 1979). Enquanto no filme norte-americano a mensagem era absolutamente "anti-Sistema" e pró-sexo, drogas e rock-and-roll, aqui tudo é careta e moralista, os alunos adoram seus professores e vice-versa, e até ajudam a proteger a escola da ameaça de demolição.

Para piorar, enquanto a cena final de "Rock'n'Roll High Scholl" trazia a banda punk Ramones ajudando os alunos rebeldes a mandar sua escola para os ares (literalmente!) ao som da música-tema, aqui o filme termina com a escola inteirinha e pronta para um novo ano letivo, e o punk de botique Supla perdendo o festival de bandas do colégio para o Polegar cantando "Sou Como Sou"!!! Sabe como é, cada país tem os "adolescentes rebeldes" que merece...


E há, claro, o jabá. Àquela altura do campeonato, os filmes voltados ao público infanto-juvenil já tinham perdido a vergonha na cara e faziam merchandising de produtos e artistas na maior cara-dura. Vá lá que não é nada tão constrangedor quanto os filmes posteriores da Xuxa (em que a narrativa é interrompida a cada cinco minutos para que uma banda que ninguém lembra mais toque um hit que ninguém lembra mais), mas mesmo assim o jabá está presente em UMA ESCOLA ATRAPALHADA e é de rolar de rir.

Supla, por exemplo, aparece cantando "Pisa em Mim" num videoclipe afetado e bastante deslocado do tom do restante da produção, já que aparece entre cruzes de neon e estátuas religiosas decapitadas, de calça de couro vermelha e sem camisa, rolando besuntado de óleo num colchão enquanto repete o refrão "E só pisa em mim / E me deixa assim!". Queria demonstrar uma "atitude" inexistente, o que deixa tudo ainda mais engraçado.


"E só pisa em mim! E me deixa assim!"



No caso de Angélica, o marketing é duplo: ela canta uma música chamada "Angelical Touch" (nossa, quanta criatividade!), que também era o nome de uma linha de cosméticos que ela lançou logo depois. Por isso, muita gente dizia que a música era, na verdade, um jingle disfarçado. E funcionou: a tal linha de cosméticos foi um sucesso de vendas. Mas o videoclipe é abominável, com Angélica exagerando nas caras e bocas estilo "Quero ser sexy" - e sem conseguir ser sexy, claro.


"O meu Angelical Touch..."



Mesmo sendo uma bela porcaria, UMA ESCOLA ATRAPALHADA foi um relativo sucesso de bilheteria na época, e até hoje está numa honrosa 63ª posição entre os filmes brasileiros mais vistos de todos os tempos (na frente de "Pixote, a Lei do Mais Fraco" e "Tropa de Elite"!!!).

Por isso, outras produções destinadas ao público infanto-juvenil foram filmadas rapidamente para tentar aproveitar o filão, mas sem repetir o sucesso. Entre elas, "Sonho de Verão" (1990), com Sergio Mallandro, Paquitos e Paquitas, e "Gaúcho Negro" (1991). Todas são tão péssimas quanto UMA ESCOLA ATRAPALHADA, e compartilham do mesmo tom infantilóide, excesso de merchandising e aquela cara de "episódio mais longo de Malhação".


Demorou vários anos para que começassem a sair os primeiros filmes realmente interessantes produzidos com e para adolescentes. Entre eles, destaco as comédias românticas "Houve uma Vez Dois Verões" (2002), do gaúcho Jorge Furtado, e "As Melhores Coisas do Mundo" (2010), de Laís Bodanzky. Desnecessário dizer que nenhum deles têm Xuxa, Angélica ou as bandinhas da moda, embora esse último traga Fiuk (argh!) em "papel dramático". Mas sem jabá ou narrativa interrompida por videoclipes, como se fazia antigamente.

E mesmo que eu considere UMA ESCOLA ATRAPALHADA um filme execrável, tanto como "produto de consumo de massa" como enquanto "mensagem", é impossível não parar para pensar que, se fosse feito hoje, ele seria ainda pior. Afinal, no lugar de Supla e Angélica provavelmente teríamos Michel Teló e Anytta (aquela do "Pre-pa-ra..."). Já os garotos do Polegar seriam substituídos pelos sertanejos universitários do momento, enquanto Fábio Porchat e Bruno Mazzeo apareceriam no lugar dos Trapalhões.

Ou seja: nada está tão ruim que não possa piorar!


Veja UMA ESCOLA ATRAPALHADA na íntegra



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Uma Escola Atrapalhada (1990, Brasil)
Direção: Del Rangel
Elenco: Supla, Angélica, Grupo Polegar, Ewerton
de Castro, Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum,
Zacarias, Selton Mello e Maria Mariana.