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domingo, 25 de março de 2012

VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA (1985)


Nos comentários recebidos sobre a atualização anterior, "A Última Festa de Solteiro", muita gente alegava que aquela era a única comédia decente que Tom Hanks havia feito. Lembrei, então, de um trabalho posterior do ator, e que ficou esquecido na sua trajetória rumo ao sucesso - uma espécie de nota de rodapé em sua filmografia. Trata-se de VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA, uma comédia... digamos... esquisita.

Não sei exatamente o porquê de VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA ter acabado na obscuridade, ainda mais considerando a quantidade de filmes fracos que Hanks protagonizou nessa primeira fase da sua carreira (como "O Homem do Sapato Vermelho", "Um Dia a Casa Cai" e "Dragnet - Desafiando o Perigo"). Mas tenho uma teoria: este talvez seja um dos únicos filmes do astro em que ele interpreta um sujeito REALMENTE mau caráter.


Quem conhece um mínimo da filmografia de Hanks já deve ter percebido que ele geralmente só faz caras bonzinhos, às vezes tão bonzinhos que chega a encher o saco. E mesmo quando faz papel de vilão - como em "Estrada Para a Perdição" e "Matadores de Velhinhas" -, são ou vilões "bonzinhos" e de bom coração, ou caricaturas à beira do desenho animado.

Já o playboy Lawrence Whatley Bourne III, que ele interpreta em VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA, certamente não é um exemplo a ser seguido, e chega a ser até estranho ver Hanks, esse cara sempre tão associado ao bom-mocismo, na pele de um personagem cheio de defeitos e desvios de caráter.


Antes de mais nada, uma observação sobre o título nacional: é fácil um filme cair na obscuridade quando o título não ajuda, e vamos combinar que dá vontade de esganar o sujeito que inventou "Voluntários DA FUZARCA" para um filme que se chama apenas "Voluntários" no original. Lá em Portugal, a tradução foi muito mais inspirada, "Voluntários à Força".

Agora, quando você traduz o título e usa uma expressão do arco-da-velha como "fuzarca" (segundo o dicionário, "farra ruidosa, desordem, confusão"), está pedindo para que o público saia correndo. Afinal, quantas pessoas nascidas depois de 1950 sabem o que diabos é uma "fuzarca"?


Já os "voluntários" em questão são os membros do Peace Corps, criado pelo presidente John F. Kennedy em 1961. Era um programa em que jovens estudantes se voluntariavam (ahá!) para viajar até países estrangeiros com o objetivo de ajudar pessoas necessitadas.

VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA se passa no início da década de 60, conforme anunciam os belíssimos créditos iniciais: uma montagem de imagens de arquivo da época, em que vemos gente como Doris Day, Rock Hudson, Kennedy e Marilyn Monroe, numa sessão de nostalgia regada a "Blue Moon", na voz da banda The Marcels.


Em seguida, vemos nosso "herói" Bourne III e sua namorada (Jude Mussetter) como as únicas pessoas brancas numa mesa de pôquer repleta de negros ameaçadores e estereotipados. Viciado em jogo e blefador nato, Lawrence fatura uma bolada, com a qual paga parte da sua dívida com o dono quase mafioso do local. Como ainda deve dinheiro, o rapaz convence seu credor a apostar toda aquela grana num jogo de basquete.

Após uma noite de sexo selvagem com a namorada no dormitório da faculdade (e essa deve ser uma das únicas vezes em que Tom Hanks aparece transando num filme, embora nada seja mostrado, apenas escutamos a barulheira), nosso herói se lembra que é o dia da sua formatura. Mas está mais interessado no resultado do jogo em que apostou a própria vida. E, claro, seu time perde, deixando-lhe automaticamente com uma exorbitante dívida de milhares de dólares que ele deve pagar antes da meia-noite - ou morrer.


Lawrence até tenta conseguir um empréstimo com o pai milionário, mas ele nega. Resta-lhe, então, uma única alternativa para salvar o pescoço: assumir a identidade de seu colega de quarto, Kent (Xander Berkeley, quando ainda tinha cabelo), e embarcar num avião do Peace Corps, como "voluntário", rumo à Tailândia! Na troca, Kent fica com a namorada e o carrão do colega.

O playboyzinho percebe já no início do voo a fria em que foi se meter, ao conhecer voluntários irritantemente idealistas como "Tom Tuttle from Tacoma, Washington" (John Candy, ainda na sua fase de figurante). Mesmo assim, encontra tempo para tentar seduzir Beth (Rita Wilson), que inicialmente pensa que ele é Kent e por coincidência trocava correspondências com o colega de quarto. Revelada a troca de identidades, Lawrence fica queimado com a moça, mas não desiste de passar o restante do filme tentando seduzi-la.


Pois Lawrence, "Tom Tuttle from Tacoma, Washington" (ele se apresenta assim toda vez, e são diversas ao longo do filme) e Beth são designados para a mesma aldeia pobre da Tailândia.

E enquanto os dois voluntários de verdade tentam ajudar os moradores locais, nosso herói está muito ocupado pervertendo-os: primeiro os ensina a jogar black jack com apostas em galinhas, porcos e frutas; depois, constrói um bar completo na aldeia, o "Lawrence's"! Numa frase genial, ele resume todo o seu mau-caratismo: "Não é que eu não possa ajudar essas pessoas. Eu simplesmente não quero ajudá-las!".


Não demora para ele ser contatado pelo bandidão Chung Mee (Ernest Harada), o maior traficante de ópio do país, que precisa que uma ponte seja construída sobre o rio ao lado da aldeia dos "voluntários" para facilitar o transporte das drogas. Como ele promete dinheiro e uma passagem de volta aos Estados Unidos, Lawrence se dedica a acelerar a construção da estrutura, surpreendendo os colegas com sua súbita mudança de comportamento.

É necessário situar-se no contexto histórico, social e político do mundo nos anos 1960 para entender melhor a trama de VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA. Afinal, não faltam piadas sobre "vilões" comunistas, especialmente quando "Tom Tuttle from Tacoma, Washington" é aprisionado pelo exército local e sofre lavagem cerebral para odiar os "ianques capitalistas". Considerando que tudo isso perdeu o sentido depois do fim da Guerra Fria, as novas gerações provavelmente não vão entender a maior parte do filme sem antes fazer uma pequena pesquisa de história.


Durante a década de 80, Tom Hanks fez algumas comédias bem divertidas, como "Splash", "A Última Festa de Solteiro", "Quero Ser Grande" e "Meus Vizinhos São um Terror". Mas, vamos combinar, as outras comédias que ele estrelou no período eram ruins demais e só rendiam mesmo risos amarelos (ou alguém aqui realmente gosta de "Dragnet" ou "Uma Dupla Quase Perfeita"?).

Por isso, é surpreendente como o ator está bem interpretando um personagem imperfeito e cara-de-pau em VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA. Ele tem tiradas hilárias, e, o que é melhor nesses tempos politicamente corretos, não passa por nenhum processo de "bom-mocismo" no final. Tudo bem, ele até realizará alguns atos de heroísmo (como resgatar Beth, sequestrada pelos vilões). Mas não recebe nenhuma lição de moral, não "aprende" nada e termina o filme tão mau caráter quanto começou, inclusive anunciando seus planos de construir um cassino na pequena aldeia e promover apostas em corridas de elefantes!


Particularmente, gosto muito desse filme e o incluiria tranquilamente numa relação dos meus trabalhos preferidos do Tom Hanks.

Porém, se ele está ótimo, o mesmo não se pode dizer de John Candy. Aliás, nada como o tempo para fazer justiça. Quando eu era moleque, eu adorava as comédias estreladas por Candy, como "As Grandes Férias" e "Quem É Harry Crumb?"; só agora, depois de "velho" e revendo esses filmes todos, percebo como o gorducho (falecido em 1994) era mala-sem-alça e sem graça - uma espécie de Jack Black dos anos 80.

Aqui, Candy felizmente aparece pouco, mas consegue irritar sempre que entra em cena pela sua interpretação caricatural e exagerada (embora a piada envolvendo sua lavagem cerebral quase instantânea seja muito engraçada).


Já Rita Wilson é uma mocinha apagada, mantendo a rotina "garota que odeia o protagonista no começo mas aprende a amá-lo da metade para o final do filme". O mais interessante de sua participação em VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA foi o fato de Hanks ter se apaixonado por ela de verdade: eles começaram a namorar, casaram em 1988 e ainda estão juntinhos, comprovando como Tom Hanks é um bom moço também na vida real!

VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA ainda tem duas participações ilustres e muito engraçadas: a primeira é Gedde Watanabe (à época cumprindo o papel de "rapaz oriental engraçadão" em filmes como "Vamp - A Noite dos Vampiros" e "Gatinhas e Gatões"), no papel do único rapaz da vila que fala inglês, e que logo se transforma em parceiro de Lawrence em suas presepadas; a outra é do astro de "Trancers" Tim Thomerson, que rouba todas as cenas em que aparece.


Thomerson interpreta John Reynolds, o piloto de helicóptero que transporta os voluntários do Peace Corps, e é mostrado como um sujeito legal e simpaticão no começo do filme. À medida que a história progride, porém, ele se revela um louco de pedra que vive conversando com sua faca (a quem chama de "Mike"), e que fica obcecado por Beth.

Outra personagem hilária é Lucille, a sensual e perigosa guarda-costas do traficante Chung Mee. Interpretada pela bela Shakti Chen ("O Rapto do Menino Dourado"), ela tem unhas compridas e letais, com as quais tenta matar o herói numa cena impagável.


O diretor no comando de toda essa "fuzarca" (pffff!) é Nicholas Meyer, um nome praticamente desconhecido para a maioria dos cinéfilos, e provavelmente mais lembrado pelos "trekkers" como o cara que dirigiu dois dos melhores longas baseados no seriado: "Jornada nas Estrelas 2 - A Ira de Khan" e "Jornada nas Estrelas 6 - A Terra Desconhecida" (este seu último filme para o cinema, feito em 1991).

Na verdade, Capitão Kirk e cia. à parte (e eu confesso que nunca vi nenhum "Jornada nas Estrelas"), Meyer tem uma filmografia bem decente que merece ser (re)descoberta: além desse interessante VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA, ele também fez os ótimos "Um Século em 43 Minutos" e "The Day After - O Dia Seguinte", e o eficiente "Companhia de Assassinos".

Considerando que esta é a sua única comédia, até que o sujeito se saiu muito bem - dá até pra lamentar o fato de ele não ter se aventurado mais vezes no gênero. Embora o filme tenha algumas tiradas bem estúpidas, Meyer nunca ofende a inteligência do espectador, e o resultado é uma comédia em que até as piadas mais bestas tem um quê de sofisticação (algo difícil de encontrar, por exemplo, nos filmes recentes de Adam Sandler e Ben Stiller).


Já o roteiro é assinado pela dupla Ken Levine e David Isaacs, conhecidos roteiristas de seriados de TV e que geralmente trabalhavam juntos. Eles escreveram alguns diálogos divertidíssimos, como a conversa de Lawrence com Chung Mee:
- O ópio é o meu negócio. A ponte significa mais tráfico. Mais tráfico significa mais dinheiro. Mais dinheiro significa mais poder.
- Certo, certo. E vai ter espaço nesse esquema para mim?
- A rapidez é importante nos negócios. Tempo é dinheiro.
- Mas você disse que ópio é dinheiro!
- Dinheiro é dinheiro.
- Bem, e o que é o tempo mesmo?



Outro diálogo hilário acontece entre Lawrence e o seu pai, quando o ricaço lamenta as dívidas de jogo do filho:
- Você tem decepcionado a mim e à sua mãe desde o dia em que nós te tiramos do orfanato.
- Pare com isso, papai! Eu sei que não sou adotado!
- Sim, mas por favor, permita-me essa pequena fantasia!



O roteiro também brinca o tempo todo com o próprio cinema, satirizando cenas famosas de filmes famosos. O "Lawrence's", inaugurado pelo herói no centro da aldeia, é uma referência ao "Rick's" de Humphrey Bogart em "Casablanca". Lawrence até tem uma cena romântica com Beth ao som da eterna música de "Casablanca", "As Time Goes By", dedilhada por um nativo na cítara!

Também há brincadeiras explícitas com "A Ponte do Rio Kwai", "O Mágico de Oz" e "Lawrence da Arábia" - piadas estas que perdem todo o sentido para o público de hoje, e que só serão compreendidas por cinéfilos das antigas.


VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA ainda mistura piadas convencionais (diálogos e situações-pastelão típicas do gênero) com umas tiradas nonsense no estilo do que Jim Abrahams, David e Jerry Zucker faziam na época, em produções como "Apertem os Cintos, O Piloto Sumiu!" e "Top Secret".

Há uma cena, por exemplo, em que os personagens assumem que estão num filme ao ler a legenda em inglês para compreender um diálogo em tailandês. Essa piada, por sinal, foi incluída pelo diretor, e enfureceu os roteiristas: Ken Levine chegou a queixar-se dela em seu blog, dizendo que "foi a cena que estragou o filme"!


Em outro momento, um mapa na tela mostra a perseguição de Lawrence pelos gângsters para quem ele deve dinheiro... até que o carro dirigido pelo herói atravessa e rasga o mapa como se ele fosse algo físico!

A própria ponte construída pelos voluntários na aldeia é um absurdo: trata-se de uma réplica, em madeira, da famosa Brooklyn Bridge, em Nova York! E, o que é mais curioso, o negócio foi construído DE VERDADE, inflacionando o orçamento do filme. Se fosse hoje, fariam alguma monstruosidade em CGI e pronto.


VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA não foi exatamente um sucesso de bilheteria (custou 25 milhões e faturou "apenas" 19 milhões). Se o público não comprou a ideia, os críticos se dividiram entre quem gostou e quem odiou totalmente. Mas o relativo fracasso não arranhou nem a carreira de Hanks, nem a de Candy.

Os realizadores também tiveram conflitos com Robert Sargent Shriver Jr. diretor do Peace Corps na época da produção. Ele leu o roteiro e ficou enfurecido, alegando que desrespeitava o trabalho da organização e "cuspia na bandeira americana" (patriotismo realmente não é o forte do filme). Sargent chegou a sugerir várias mudanças e alterações no roteiro, mas elas não foram sequer consideradas; e, quando o filme finalmente estreou, o briguento já não era mais diretor da organização para poder questionar nada.


Hoje, eu diria que VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA é uma comédia a ser conhecida, por todos os pontos positivos que eu já elenquei e por tantos outros que o espaço e o medo de soltar spoilers não me permitem citar. Mas principalmente por ser uma comédia que é inteligente mesmo em suas piadas mais idiotas, como a dos personagens lendo as legendas (piada copiada sem a menor vergonha na cara no terrível "Austin Powers em O Homem do Membro de Ouro").

E ainda mais recomendadíssima por trazer um Tom Hanks bem diferente do que estamos habituados a ver, menos "bom moço" e mais salafrário. Pena que o ator foi gradativamente abandonando esse tipo de personagem até se transformar num sinônimo de "cara legal" - e, consequentemente, cada vez mais chato.

PS: Olho vivo para identificar o gigantesco Professor Toru Tanaka, vilão de um sem-número de filmes de ação (brigou com Chuck Norris em "Ajuste de Contas", por exemplo), no papel de um dos homens de Chung Mee.

Trailer de VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA



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Volunteers (1985, EUA)
Direção: Nicholas Meyer
Elenco: Tom Hanks, Rita Wilson, John Candy, Tim Thomerson,
Gedde Watanabe, George Plimpton, Ernest Harada, Xander
Berkeley, Shakti Chen e Professor Toru Tanaka.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

TRANCERS - O EXTERMINADOR DO SÉCULO 23 (1985)


(Eu tinha essa resenha pronta desde 2008, e estava esperando por uma oportunidade para publicá-la no site Boca do Inferno. Na época, ainda não havia criado o FILMES PARA DOIDOS. Hoje acho que a resenha se encaixa muito mais aqui do que no site. E vai especialmente para o leitor Daniel, que pediu uma análise do filme em comentários passados.)

Ele se chama Deth, Jack Deth, e é um policial durão do século 23. Nesse futuro distante, policiais são chamados de "troopers" e a Califórnia foi devastada por um imenso terremoto ocorrido em 2065, ficando parcialmente submersa. Deth vive em "Lost Angeles", que é o que restou de Los Angeles, e um de seus hobbys é mergulhar nas ruínas da cidade para recuperar artefatos como a placa de trânsito indicando a antiga Sunset Boulevard. Apesar de viver no século 23, ele é um policial à moda antiga, que lembra os detetives dos contos policiais de Raymond Chandler, ou dos filmes noir da década de 1950. Não por acaso, anda sempre com um sobretudo quase arrastando no chão, fuma muito e adora fazer a velha e boa narração em off - quase como um primo pobre de outro detetive futurista, o Richard Deckard interpretado por Harrison Ford "Blade Runner - O Caçador de Andróides".


Sim, amiguinhos, Jack Deth é um personagem tão "cool" quanto o Ash interpretado por Bruce Campbell na série "Evil Dead", ou o Snake Plissken de Kurt Russell nos filmes "Fuga de Nova York" e "Fuga de Los Angeles".

Mas infelizmente, para a maior parte da civilização, o nome "Jack Deth" não significa nada. O que é uma pena, pois o filme em que o personagem fez sua estréia no mundo da cultura pop, TRANCERS, é um clássico e divertidíssimo filme B, daqueles que conseguem ser criativos e originais mesmo chupando ideias de uma infinidade de outras produções.


No Brasil, o filme foi exibido nos cinemas e na TV com um título bizarro, "O Exterminador do Século 23", que será ignorado a partir de agora. E se por aqui a obra é praticamente desconhecida, lá fora tornou-se um verdadeiro sucesso underground - até astros como Sylvester Stallone viram e falaram maravilhas na época - e deu origem a uma franquia atualmente no sexto episódio!

TRANCERS foi produzido e dirigido por Charles Band em 1985. Caso você ainda não tenha ligado o nome à pessoa, Band era o cabeça das extintas produtoras Empire Pictures e Full Moon, e através delas realizou inventivos filmes com orçamento quase zero, mas muita criatividade - entre eles, clássicos como "Reanimator" e "Bonecos da Morte". Quando Empire e Full Moon foram à falência - em parte devido à quantidade enorme de filmes lançados, cada vez mais baratos e ruins -, Band criou a Shadow Entertainment, com a qual atualmente produz obras com uma merreca de orçamento, direto para o mercado de DVD.


Em TRANCERS, encontramos características habituais do trabalho de Band, como o orçamento baixíssimo (400 mil dólares!) e a produção apressada (foi filmado em apenas uma semana). Isso se reflete em efeitos baratos e tempo de duração reduzido (o filme tem apenas 74 minutos).

Entretanto, o diretor-produtor sai-se muito bem ao contornar a falta de recursos com muita criatividade, tendo em mãos um roteiro divertido e cheio de boas ideias assinado por dois jovens, Danny Bilson e Paul DeMeo. A dupla mistura referências alopradas, colocando na mesma trama futuro e presente, viagens no tempo, zumbis, traquitanas estilo James Bond e um policial durão e engraçadinho. E sabe o que é mais curioso? A mistura funciona perfeitamente!


A história começa no século 23, quando nosso herói Jack Deth (interpretado de maneira brilhante por um ranzinza Tim Thomerson) apresenta-se ao espectador na típica narração em off de detetive noir.

Deth explica que é um policial do futuro envolvido numa longa caçada a um supervilão fanático chamado Martin Whistler (Michael Stefani). Whistler, que todos imaginam estar morto, criou uma legião de asseclas chamados "Trancers", que, nas palavras do herói, são um cruzamento entre mutantes e zumbis.


(O curioso é que o espectador jamais fica sabendo o que, exatamente, são os Trancers. Neste primeiro filme, não passam de pessoas de mente fraca subjugadas pelos poderes psíquicos de Whistler; embora tenham a aparência de seres humanos normais, os Trancers são uma espécie de zumbis/demônios/mutantes disfarçados de humanos, que, quando mostram a verdadeira face, ficam com a pele amarelada e o rosto deformado, e se desintegram automaticamente quando mortos. Nas sequências, entretanto, a origem dos Trancers foi sendo frequentemente alterada conforme a vontade do freguês: na Parte 3, por exemplo, ficamos sabendo que eles surgiram de uma experiência militar realizada em 2005; já nas Partes 4 e 5, eles são apresentados como vampiros mutantes!)

Continuando sua narração em off, Deth conta que sua esposa foi morta na luta contra os Trancers, e por isso ele iniciou uma cruzada para exterminar todos os remanescentes da seita de Whistler. Sua primeira parada é em uma cafeteria, onde o herói desconfia que um caminhoneiro bebendo café é um Trancer disfarçado; na verdade, é a velha garçonete negra quem se revela, atacando Deth até ser morta com disparos de sua estilosa arma laser.


Cansado de ser quase morto pelos vilões a todo momento, o policial resolve desistir da caçada e entrega o distintivo (tem clichê maior?) ao seu superior, o xarope tenente McNulty (o engraçado Art La Fleur, que praticamente repetiria o papel no posterior "Stallone Cobra").

Porém, após um mergulho nas ruínas de "Lost Angeles", Deth é procurado por McNulty, que lhe encarrega de uma missão especial: perseguir e prender seu arquiinimigo Whistler, que, ao contrário do que se imaginava, está bem vivo e tem um plano maquiavélico para eliminar o Conselho que governa a Califórnia.


Só que a luta entre Deth e Whistler não será no século 23, mas sim no "passado", no caso, 1985, no século 20 (que era o "presente" na época de produção do filme, vale lembrar). Isso porque, de uma forma nunca totalmente explicada pelo roteiro, Whistler viajou de volta para 1985 e, num plano à la "O Exterminador do Futuro", começou a matar os antepassados dos membros do Conselho. Eram três originalmente, mas um deles já foi desintegrado graças à bagunça que o vilão fez no passado.

Com medo de também desaparecerem da história, os dois governantes que ainda restaram resolvem enviar Jack Deth de volta ao passado para proteger seus antepassados e, ao mesmo tempo, aprisionar o vilão.


O detalhe mais interessante do roteiro é que o pessoal do século 23 pode enviar objetos mecânicos para o passado, mas não tecido vivo. Assim, para voltar no tempo, Whistler e Deth utilizam uma droga que envia a consciência de ambos do futuro ao passado, onde elas irão habitar o corpo de um antepassado que viveu naquele período.

Dessa forma, os corpos futuristas de herói e vilão permanecem no futuro, numa espécie de coma, enquanto suas mentes são transferidas para novos corpos no ano de 1985! Não é uma doideira?


Sim, é. Porém também abre a brecha para discutirmos três furos grosseiros de roteiro:

1-) Se as viagens no tempo têm o poder de alterar o futuro, como é que as pessoas do futuro ainda têm consciência das coisas, considerando que o passado foi alterado? No caso, ao matar o antepassado de um dos membros do Conselho, Whistler faz com que o sujeito seja apagado da história. Mas, se o futuro foi reescrito a partir do crime (cometido três séculos antes), ninguém no novo futuro alternativo deveria se lembrar que assassinado existia e foi desintegrado, já que, na prática, ele nunca existiu. Confuso? Mas não é - e a trilogia "De Volta para o Futuro" abordou melhor estas mudanças passado-presente-futuro.


2-) Por que Whistler viajou dois séculos para o passado ao invés de voltar, tipo, apenas uns 50 ou 100 anos? Imagine a quantidade de alterações na história que o vilão deve ter provocado ao eliminar pessoas com dois séculos de diferença!

3-) Se qualquer pessoa poderia voltar no tempo ocupando o corpo de seus antepassados, por que é que os próprios membros do Conselho não retornaram nos corpos de seus antepassados para poderem fugir e se esconder de Whistler, ou mesmo procurar o vilão para matá-lo, eliminando a necessidade de Jack Deth voltar ao passado e ter todo o trabalho de procurar os tais antepassados dos membros do Conselho, que ele sequer conhecia ou sabia onde moravam?


OK, teorias de viagem no tempo à parte, sempre é bom lembrar de que estamos falando de um filme B produzido e dirigido por Charles Band, então não podemos esperar muita lógica!Prosseguindo...

Como o pessoal do século 23 precisa retornar ao passado "invadindo" o corpo de algum antepassado sanguíneo, Deth volta no tempo e assume o corpo de um jornalista mulherengo chamado Phil (interpretado pelo mesmo Tim Thomerson). Whistler, por sua vez, tem mais sorte: seu antepassado dos anos 80, chamado Weisling, é um respeitado chefe de polícia, o que lhe permite agir com toda a tranquilidade a aprontar o que bem entender.


Esse tipo curioso de viagem no tempo torna a missão do herói ainda mais complicada: ele não pode simplesmente matar Whistler no passado com um tiro, pois não estaria matando o vilão, e sim o inocente Weisling, um cara honesto, que tem esposa e filhos. Por isso, a missão de Deth é injetar no corpo atual de Whistler uma droga que fará a consciência do vilão voltar ao futuro, onde poderá ser julgado e aprisionado. Mas é claro que não será fácil. Até porque Whistler já criou uma legião de Trancers nos anos 80!

E como pepino pouco é bobagem, Deth ainda encarna no seu antepassado Phil na manhã seguinte a uma noite de sexo do cara com uma gatinha chamada Lena (interpretada por Helen Hunt, antes da fama e antes do Oscar de Melhor Atriz por "Melhor é Impossível"). Perdido numa época que não conhece e numa cidade que não conhece (lembre-se: Los Angeles está submersa no futuro em que Deth vive), o herói precisa convencer Lena a ajudá-lo.


E durante sua aventura, entre duelos com os vilões, tiroteios e perseguições em motocicletas, Deth ainda tem a chance de usar um fantástico brinquedinho do futuro: o "relógio de congelar segundos", que dá ao herói o poder de congelar o tempo durante 10 segundos - um artifício simplesmente genial utilizado duas vezes ao longo do filme, com direito a efeito que parece uma versão pré-histórica do "bullet time" de "Matrix"!

TRANCERS é um filme curto e grosso: se o tempo reduzido de duração deixa aquela gostinho de "quero mais", pois não há um número suficiente de situações perigosas entre Deth e Whistler, por outro lado o desenvolvimento é sempre a mil por hora - o filme nunca perde o pique ou fica chato.



Eu só lamento que o roteiro não tenha explorado mais as dificuldades de adaptação do futurístico e brutamontes Jack Deth na Los Angeles dos anos 80, o que certamente renderia boas piadas (ao pedir ajuda para Lena, o herói chega a confidenciar: "Eu sou de outro tempo e outro mundo, nem sei o que vocês comem no almoço!").

Um dos raros momentos em que o filme apresenta a dificuldade de adaptação do herói é engraçadíssimo: Lena leva Jack a um inferninho repleto de punks, onde a banda está detonando uma versão pauleira de "Jingle Bells". Apavorado com a música, com os cabelos espetados e com os figurinos do pessoal do lugar, o herói resmunga: "Parece que estou cercado de Trancers!".


Outro momento impagável é aquele em que Jack assiste na TV a um episódio do seriado "Petter Gunn" (uma produção dos anos 50 sobre policiais e gângsters. Encasquetado, Deth reclama: "Mas que espécie de nome é 'Peter Gunn'?". Lena responde: "E que espécie de nome é 'Jack Deth'?". (Não que alguém chamada "Helen Hunt" possa falar muito...)

Para uma produção de 400 mil dólares, chama a atenção também o número de nomes conhecidos envolvidos na produção: a edição é de Ted Nicolaou, que no ano seguinte se tornaria um cineasta habitual da Empire/Full Moon, realizando filmes como "A Visão do Terror" e a franquia "Subspecies", e um dos produtores executivos é Peter Manoogian, outro que se transformaria em cineasta dentro da própria Full Moon, para quem assinou "Brinquedos Diabólicos". Já os efeitos especiais são assinados por John Carl Buechler, colaborador habitual da Empire/Full Moon, mas que é popularmente reconhecido como diretor de "Sexta-feira 13 Parte 7".


Mas o nome mais conhecido está creditado com um singelo "assistente do departamento de arte": trata-se de Frank Darabont, hoje um nome conhecido em Hollywood, onde dirigiu filmes como "O Nevoeiro" e "Um Sonho de Liberdade"!

Se TRANCERS virou cult, certamente não foi por acaso. Entre os grandes acertos estão a caracterização de Tim Thomerson como Jack Deth (no grande papel da sua carreira; sem ele, o filme perderia metade da graça), o roteiro inspiradíssimo da dupla DeMeo/Bilson (que, também em parceria, escreveriam o ótimo "Rocketeer" alguns anos depois) e a trilha original de Phil Davies e Mark Ryder, que conseguiram uma daquelas raras músicas-temas que fazem você lembrar na hora do filme para a qual ela foi composta.


E com o sucesso do original, não demorou para Band tentar faturar em cima. Durante uma década, a série "Trancers" foi a sua galinha dos ovos de ouro: ele produziu cinco continuações entre 1991 e 2002, progressivamente piores e mais baratas, e até alguns gibis com adaptações dos filmes para os quadrinhos. Inclusive acho que só não há mais porque os orçamentos ficaram tão baixos que Band não conseguia nem pagar mais o cachê de Tim Thomerson ("Trancers 6", de 2002, já não tem mais o astro no elenco!).

O próprio Band fez uma auto-crítica em entrevista recente, alegando que só gosta dos dois primeiros (que ele dirigiu): "Fizemos 'Trancers' demais, e o que era bom nos primeiros nós não conseguimos mais recapturar". Na mesma entrevista, ele lembrou que só se envolveu com TRANCERS porque um dos roteiristas, Danny Bilson, havia trabalhado como assistente de cameraman em "Ghoulies" (outra produção de Band) e lhe entregou uma cópia do roteiro.


Como é comum no Brasil, algumas dessas sequências saíram em vídeo com títulos diferentes, gerando grande confusão. Se o original, que nunca chegou às nossas locadoras, tinha o nome de "O Exterminador do Século 23", o segundo filme saiu como "O Tira do Futuro", o terceiro como "Trancers 3 - A Luta pela Sobrevivência" (e imagine o pobre sujeito locando essa fita e procurando inutilmente pelos dois outros "Trancers" nas prateleiras da locadora!), e o quarto como "Fome de Sangue"!!!

Recentemente, descobriu-se que havia uma continuação direta e não-oficial de TRANCERS, produzida em formato de curta-metragem em 1987: novamente com direção de Band e roteiro da dupla DeMeo/Bilson, esse curta tem Tim Thomerson, Helen Hunt e Art LaFleur, e era uma das atrações de uma coletânea chamada "Pulse Pounders". Com a falência da Empire Pictures, a tal coletânea nunca foi oficialmente lançada, e hoje é considerada perdida. Uma pena, pois "Pulse Pounders" incluía outros dois curtas que muita gente daria um braço para ver: "Dungeonmaster 2" e "The Evil Clergyman", uma adaptação de H.P. Lovecraft de Dennis Paoli ("Reanimator") estrelada por Jeffrey Combs, Barbara Crampton e David Warner!!!


É curioso constatar que hoje, com mais tecnologia e recursos à disposição, é muito difícil topar com um filme barato tão divertido e original quanto TRANCERS, em que as boas ideias ficam acima dos efeitos especiais e do orçamento milionário.

Eu inclusive sugiro uma sessão tripla com as três primeiras aventuras da série, as únicas que valem a pena, e que são um belo testamento do legado das extintas Empire/Full Moon ao universo das produções baratas.

As duas empresas também produziriam outras franquias mais populares, como "Puppet Master" e "Subspecies", antes de falir, mas TRANCERS continua mantendo um charme todo especial e nunca mais igualado - embora Band tenha tentado produzir "pseudo-Trancers" posteriores, como "Dollman", também com Tim Thomerson.

Trailer de TRANCERS



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Trancers (1985, EUA)
Direção: Charles Band
Elenco: Tim Thomerson, Helen Hunt, Michael
Stefani, Art LaFleur, Telma Hopkins, Richard Herd,
Anne Seymour e Biff Manard.