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quinta-feira, 8 de novembro de 2012

TERROR EM LOVE CITY (1986)

 

Eu nunca fui um grande fã de animes (filmes de animação produzidos ao estilo japonês) ou de mangás (as histórias em quadrinhos japonesas). Mas dois filmes que marcaram a minha juventude são justamente animes adaptados de mangás: "Akira" (1988), de Katsuhiro Otomo, que considero uma obra-prima, e "Ai City" (ou "Ai Shitî", no original), de Kôichi Mashimo, que foi produzido dois anos antes, mas tem muitos elementos em comum com "Akira" - e talvez por isso mesmo eu goste tanto dos dois.

"Akira" é bastante popular aqui no Brasil, e recentemente ganhou uma respeitável edição de colecionador numa caixa metálica com 2 DVDs. Já "Ai City" caiu na obscuridade, e pouquíssimas pessoas que não eram moleques na década de 80 (como era esse que vos escreve) vão lembrar que o desenho foi lançado em vídeo nas nossas locadoras com o título TERROR EM LOVE CITY, lá por meados de 1987.


Peço licença aos leitores para dividir com vocês como redescobri TERROR EM LOVE CITY depois de mais de 20 anos da primeira vez que vi: eu conhecia o título nacional da animação, mas não o original ("Ai City"), então não tinha nem como pesquisar maiores informações sobre ela na internet. Pois eis que ano passado (2011) entrei numa videolocadora em São Paulo que estava se desfazendo das suas últimas fitas VHS, e no meio delas estava TERROR EM LOVE CITY. Emocionado, comprei na mesma hora. Custou apenas um real, mas não me importaria em pagar 50 por esse autêntico pedaço da minha infância.

O incrível é que mais de 20 anos se passaram desde aquela primeira e única vez que eu tinha visto o filme, mas ainda tinha diversas imagens da animação gravadas de maneira bem nítida em minha mente, como as enormes cabeças que surgem no meio de uma estrada e levantam voo, ou os violentos combates entre heróis e vilões com fantásticos poderes telepáticos, ou ainda o vilão que é um anãozinho no controle de um gigantesco corpo robótico, quase como uma versão cyberpunk do Master Blaster de "Mad Max Além da Cúpula do Trovão"!


Outra coisa que me lembrava muito bem é que, quando moleque, eu não tinha entendido patavinas da trama do filme, mas mesmo assim fiquei embasbacado com a ação e com o visual "futurista" do desenho. Pois vejam só: agora, mais de 20 anos depois, continuo sem entender patavinas de TERROR EM LOVE CITY, talvez porque a dublagem nacional tenha sido mal-feita, ou talvez porque o roteiro de Hideki Sonoda simplesmente não faça nenhum sentido, tentando condensar num único filme de 1h20min informação suficiente para uma série inteira com cinco ou seis episódios!

Mas o que importa é que o negócio continua cumprindo seu papel: desde que comprei a fita, eu já revi o desenho umas duas ou três vezes, e, mesmo sem ter certeza se entendi ou não a história, continuo ficando embasbacado com a ação e com o visual! E como tem muito marmanjão igualzinho a mim por aí (descobri que o cineasta capixaba Rodrigo Aragão, diretor de "Mangue Negro" e "A Noite do Chupacabras", é outro grande fã do filme), eis aqui um justo resgate dessa pérola esquecida.


Vamos começar com duas coisas curiosas sobre a fita lançada aqui no Brasil pela WR Filmes. A primeira é um ponto positivo: o filme surpreendentemente chegou ao mercado nacional numa cópia em seu formato original; ou seja, em widescreen, com as famigeradas barras pretas em cima e embaixo da tela, que não eram comuns nos tempos do VHS, e que muita gente simplesmente odiava, autorizando as distribuidoras a cortar as laterais da imagem para chegar ao famigerado formato "tela cheia".

A outra curiosidade é um ponto negativo: os distribuidores nacionais resolveram cortar toda a sequência de créditos iniciais, eliminando assim qualquer informação que permitisse ao espectador pesquisar maiores detalhes sobre a produção (como o título original ou o nome dos realizadores). Sem a abertura, o filme começa bem no meio da ação, e o dublador anuncia o título TERROR EM LOVE CITY sem que nenhum título apareça escrito na tela!


Por sinal, eis uma das grandes qualidades dessa animação: a história já começa a mil por hora, sem apresentar os personagens e sem dar maiores explicações (e buscar explicações é algo inútil, conforme veremos em seguida). Sem nenhum letreiro informativo ou narração que apresente a época e o lugar em que se passa a história, já encontramos nossos personagens principais num carro em alta velocidade, sendo perseguidos por velozes motocicletas pelas ruas desertas e escuras do que parece ser uma cidade futurista não-identificada.

No caso, os personagens principais são Kei (pronúncia gringa da letra "K"), um rapaz que possui destruidores poderes psíquicos; Ai (pronúncia gringa da letra "I"), sua filha pequena dotada de poderes ainda maiores; Reiden Yoshioka, um ex-policial beberrão que agora trabalha como detetive particular, e um esquisito gato com reações humanas que parece ter saído de algum desenho dos Estúdios Disney.


Como eu escrevi dois parágrafos atrás, o roteiro de Sonoda não se preocupa em dar muito "background", então o espectador nunca fica sabendo como diabos esses personagens acabaram dentro daquele carro em movimento, ou como se encontraram. Porque, pelos diálogos, fica evidente que Reiden não faz a menor ideia de quem sejam Kei, Ai e o gato mutante; então como é que eles acabaram todos juntos no meio de uma perseguição, afinal? E como o detetive foi se meter nessa história de super-humanos e poderes psíquicos se é "apenas" um homem normal?

Desista: o roteiro não explica como se deu o encontro nem porquê. É como se você estivesse assistindo uma minissérie a partir do segundo capítulo e o primeiro nunca mais será reprisado, então você precisa pegar a história já andando e tentar entendê-la. No caso, aqui, nossos heróis começam sua aventura fugindo de motoqueiros malvados liderados por outra telepata, a bela K2 (cujo nome foi traduzido simplesmente como "Kate" na versão brasileira). A moça é tão poderosa que pilota sua motocicleta com a força da mente, sem sequer segurar o guidão.


Enquanto transcorre a perseguição, o diálogo entre Kei e Reiden dá as primeiras pistas para que o espectador entenda um mínimo sobre o que está acontecendo: no universo futurista do filme, existe uma organização criminosa chamada "Fraud", que, por meio de experimentos (ilegais?), está criando "super-humanos" ao amplificar seus poderes telepáticos em laboratório.

Kei e Ai eram cobaias da Fraud, mas escaparam dos laboratórios da organização e agora são perseguidos pelos seus soldados, incluindo K2 - que, conforme o nome original evidencia, deve ser uma versão "revista e melhorada" do próprio Kei.


Se parece simples lendo assim, saiba que assistindo o desenho animado pela primeira vez não é tão fácil de entender. Até porque a dublagem nacional traduz o nome da organização criminosa literalmente, como "Fraude", e seus membros como "Fraudulentos" (!!!).

E a primeira vez em que Kei cita Fraude e Fraudulentos numa mesma frase, você precisa se segurar para não rir - aliás, quem foi o engraçadinho que achou que "Fraude" era um bom nome para uma organização criminosa, se sequer é discreto? Isso lembra aquela piada sobre a placa escrita "QG Secreto do Serviço de Inteligência de Portugal" na frente do prédio do QG Secreto do Serviço de Inteligência de Portugal...


Voltando à ação: os motociclistas malvados são explodidos ao bater num caminhão-tanque, e Kei e K2 lutam usando seus poderes psíquicos. Essa cena é brilhante porque já dá o tom da coisa: os guerreiros telepáticos de TERROR EM LOVE CITY, batizados "Headmeters" no original, exibem num mostrador digital luminoso em suas testas (!!!) o nível do seu poder mental. Quanto maior o número na testa, maior a força psíquica do indivíduo - mais ou menos como se os Scanners de David Cronenberg fossem personagens de um videogame 8 bits!

O que K2 não sabe é que Kei, originalmente um "Headmeter" fraquinho que mal atinge o nível 5, tornou-se uma espécie de super-paranormal graças à sua associação com Ai, e agora consegue elevar seu poder ao infinito!!! Ao fazer isso, ele detona K2 e rasga o horizonte da cidade (não tente entender, é preciso ver para crer!), abrindo um portal para outra dimensão que suga a inimiga. Mais tarde, K2 voltará desmemoriada graças à "surra telepática" que levou, e passará a lutar do lado dos bonzinhos.


Tudo isso acontece nos primeiros cinco minutos de TERROR EM LOVE CITY, e deve ter detonado o cérebro de vários moleques inocentes, como este que vos escreve, graças à sua ação desenfreada, violência explícita e nudez (K2 fica completamente nua ao ser atingida pela onda de "poder mental" de Kei!!!). E a coisa só fica mais e mais exagerada e movimentada a partir de então.

Logo descobrimos que a Fraud é liderada por Lee, um vilão que tem o rosto coberto por uma máscara metálica, e que é tão fodão que nem se dá ao trabalho de caminhar: ele levita para lá e para cá usando seus poderes psíquicos! Nunca fica muito claro (hehehe) o que exatamente a Fraud quer com a menina Ai, mas é atrás dela que Lee e seus "Fraudulentos" estão, e azar de quem ficar pelo caminho.


Mas há um outro problema que ameaça ambos os lados do confronto: Lai Lou Chin, um antigo aliado de Lee, e que agora é um dissidente da Fraud e também quer pôr suas mãos em Ai. O sujeito tem aquele visual "Master Blaster" que citei no começo da resenha: ele é um velho anãozinho que fica o tempo inteiro submerso dentro de uma espécie de aquário na "cabeça" de um gigantesco corpo mecânico que controla por telepatia (acima)! Sério, o que será que tem na água que esses japas tomam?

Lee e Lai Lou Chin começam a brigar para ver quem pega Ai primeiro, com direito às tais cabeças gigantes que brotam do asfalto (uma das cenas mais geniais do filme, e que acabou estampada na capinha da fita brasileira), sangrentos duelos entre paranormais, robôs gigantes e o bizarro "romance" entre a desmemoriada K2 e o beberrão Reiden - que, coitado, é o único ser humano "normal" na trama, sem nenhum poder especial além de um revólver de pouquíssima utilidade!


Quando parece que a história não pode ficar mais confusa e complexa, eis que o roteiro apresenta uma nova ameaça à integridade física de heróis e vilões: uma substância identificada (ao menos na dublagem brasileira) como bio-poluição, que se espalha como um câncer pelo corpo dos humanos e os transforma em monstros gosmentos que se alimentam de DNA (!!!).

E depois que você já desistiu de entender o que se passa e espera que pelo menos o final jogue um pouco de luz sobre a história toda, TERROR EM LOVE CITY termina com uma conclusão sem pé nem cabeça, um daqueles "finais circulares" que fazem a trama voltar ao ponto de partida, mas sem nenhuma mínima explicação sobre o que aconteceu e o porquê daquele desfecho! Como já escrevi, muito moleque deve ter ficado com danos permanentes no cérebro graças a essa animação...

O engraçado é que os próprios personagens do filme fazem piada com o fato de a história ser tão confusa. Quando Reiden pede a Kei que "explique direitinho" porque eles estão sendo perseguidos pela Fraud, Ai responde: "Nem explicando o senhor entende!". Mais adiante, no meio de uma pancadaria, Kei fala para um ainda confuso Reiden: "A explicação fica para depois, vamos fugir daqui!". É claro que a tal explicação nunca vem, ao menos para o espectador...


Alguns flashbacks interrompem a narrativa para tentar explicar o mínimo sobre o passado dos personagens. Descobrimos, por exemplo, que Kei e Ai não são pai e filha, mas algo bem mais complicado: Ai é um clone 10 anos mais jovem de Etsuko, grande amor de Kei, que também foi cobaia nas experiências da Fraud, mas morreu no processo. Ao descobrir sobre o clone, o rapaz resolveu adotar Ai como filha e ajudá-la a fugir do laboratório e da perseguição da Fraud.

(Essa cena também explica os nomes dos personagens, já que descobrimos que Kei é o experimento 308-K, por isso o nome "K", e Ai é a cobaia 307-I, por isso se chama "I"!)


Já um outro flashback mais confunde do que explica: nela vemos vários dos personagens, heróis e vilões, como cientistas de cara limpa, sem seus implantes biônicos ou corpos robóticos, e aparentemente todos são amigos, dando a entender que a história inteira pode estar se passando numa dimensão paralela ou num mundo artifícial criado por esses cientistas, estilo "Matrix", onde Ai seria a única pessoa "real"! Quer saber? Nem tente entender!

Há uma possível explicação para o fato de a história de TERROR EM LOVE CITY ser tão confusa: o roteiro foi baseado num mangá criado por Shuho Itabashi, e publicado entre 1983 e 1984 no Japão (capa de uma das revistas ao lado). Não consegui encontrar os gibis para ler, mas um artigo na Wikipedia dá mais detalhes sobre a trama e sobre os personagens originais dos quadrinhos, o que ajuda a encontrar um pouco mais de sentido na adaptação cinematográfica.

Embora o roteiro da animação tenha deixado de fora muita coisa do mangá (como a esposa de Reiden, Akemi, que fica enciumada com a paixão platônica da "ex-vilã" K2), o básico das motivações dos heróis e vilões entrou no filme, ainda que de maneira bem simplificada. O mangá também esclarece porque Lee e a Fraud querem Ai: eles acreditam que a menina é uma criatura lendária conhecida como "Trigger", capaz de amplificar o poder dos paranormais ao seu redor (o que ela realmente faz com Kei). Talvez o mangá também explique melhor a criatura de bio-poluição que aparece na conclusão e o que diabos significa aquele "final circular"...


Mesmo que TERROR EM LOVE CITY me deixe com um nó no cérebro toda vez que revejo, eu continuo gostando muito do filme. Não só pela nostalgia, mas principalmente pelo charme dessa aventura cyberpunk, que parece ter forte influência do cinema de horror classe B dos anos 80, incluindo a violência explícita obrigatória nas produções daquela década.

Há uma cena fantástica em que Lee mostra a extensão dos seus poderes mentais explodindo a cabeça de um criado humanóide e espalhando o cérebro da vítima pelo rosto da sua secretária! O monstro gosmento e cheio de tentáculos que absorve suas vítimas para roubar-lhes o DNA também rende uns momentos bem escabrosos, com imagens dignas de filmes como "Do Além" e "O Enigma do Outro Mundo".


E dá para pescar algumas referências diretas a filmes de ficção científica, como as cabeças gigantes que lembram "Zardoz", de John Boorman, ou um letreiro anunciando a emissora de TV "THX-1138", que também é o nome do primeiro longa-metragem de George Lucas.

Além das referências, existe algo de muito engraçado nos diálogos rebuscados, cheios de baboseiras pseudo-científicas que fazem pouco ou nenhum sentido, e que rendem pérolas do tipo "Aponte essa arma para mim novamente e eu acabo até mesmo com suas células", ou "Tenho 83,5% de certeza". O fator trash rende até um momento impagável quando, durante uma luta de Kei com vários inimigos da Fraud, toca um pop-rock bem fuleiro com letra em inglês, cujo refrão anuncia: "He's our man / He's a special man / He's a psychic fighter"!!!


Enfim, TERROR EM LOVE CITY é muito, mas muito legal! Poucas coisas são tão anos 80 quanto guerreiros psíquicos cujo nível de poder aparece num mostrador digital luminoso em suas testas (no estilo daqueles velhos relógios digitais da Casio)! Poucas coisas, também, são tão anos 80 quando batalhas entre telepatas que soltam raios e rajadas elétricas ao som de pop-rock! Por fim, poucas coisas são tão anos 80 quanto o visual cyberpunk absolutamente caricatural dos personagens e cenários aqui representados, com destaque para o imponente arranha-céu de centenas de andares que é o quartel-general da Fraud, e que se projeta muitos metros acima dos prédios "comuns".

A verdade é que você esquece rapidinho que a história não faz o menor sentido graças à ação, às lutas absurdas e exageradas, à arte "futurista" da animação, e principalmente graças à excentricidade dos personagens - eis que, lá pelas tantas, K2 inexplicavelmente se veste como uma coelhinha da Playboy (!!!), com orelhas de pelúcia e até rabinho!!!


Embora seja relativamente desconhecido, TERROR EM LOVE CITY também tem muito em comum com outras produções mais famosas da mesma época. Por exemplo, o visual dos vilões Lee e Lai Lou Chin é muito parecido com o do Destruidor e de Krang, dois inimigos das Tartarugas Ninja nos quadrinhos e desenhos animados (com a diferença de que Krang foi criado para a série animada em 1987, um ano depois desse anime japonês).

Outros elementos, visuais e narrativos, lembram muito "Akira", da sequência de perseguição com motos velozes na auto-estrada aos duelos entre paranormais, da organização secreta que faz experiências para criar soldados com poderes psíquicos à bizarra criatura gosmenta que aparece no ato final. Embora a adaptação para o cinema seja de 1988, o mangá "Akira" era publicado desde 1982, e deve ter inspirado tanto o mangá "Ai City" quanto TERROR EM LOVE CITY.


Tudo somado, eu recomendo TERROR EM LOVE CITY com louvor, mesmo para aqueles que não morrem de amores por desenhos animados japoneses, seja pelo traço característico ou pela ação estilizada dessas produções.

Mas, descontando o fato de ser uma animação japonesa, o que temos aqui é um autêntico "Filme para Doidos", com um roteiro sem pé nem cabeça que troca explicações por ação, violência explícita e nudez, e com um montão de personagens legais tanto do lado dos heróis quanto dos vilões.


Quando o filme acaba, você pode até estar totalmente perdido e confuso com o que viu, mas dificilmente não ficou fascinado com o universo de "Ai City" a ponto de lamentar que não tenham sido produzidas outras animações ou histórias com os mesmos personagens. Com a devida imaginação, você pode até encarar TERROR EM LOVE CITY como uma espécie de "prequel" para o maravilhoso "Akira".

E, como curiosidade final, tanto o diretor Mashimo quanto o roteirista Sonoda continuam na ativa, principalmente este último, que escreveu episódios do desenho "Pokemón" e alguns dos longas baseados nessa série animada, além de - pasmem! - ter feito uma pequena participação especial como ator em... "The Toxic Avenger 2", da Troma!


Como escrevi, eu não sou muito fã e tampouco um grande conhecedor de animes. Pode ser que hoje existam coisas semelhantes ou bem melhores que TERROR EM LOVE CITY, provavelmente mais sangrentas e complexas também - e já li um montão de resenhas negativas sobre este anime pela internet.

Mas o que importa é que essa obscuridade foi uma das tantas que teve um papel fundamental na minha formação como cinéfilo "alternativo", naqueles saudosos tempos em que você podia entrar numa videolocadora e topar com um tesouro como a fita desse filme. Rever a velha VHS da WR Filmes tem um sabor de nostalgia e ao mesmo tempo de tristeza, porque remete a um tempo bom que não volta mais.

Cena de abertura de TERROR EM LOVE CITY
(cortada do VHS nacional)



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Ai City / Ai Shitî (1986, Japão)
Direção: Kôichi Mashimo
Com as vozes de: Miyuki Ueda, Hirotaka Suzuoki, Yûji Ueda,
Nachi Nozawa, Mami Koyama e Kiyoshi Kobayashi.


* E a quem interessar possa, eis a capinha do VHS brasileiro do filme (clique para ampliar).

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

FRITZ THE CAT (1972)


Foi a grande piada do mês (setembro/2012): o deputado federal Protógenes Queiroz (PC do B/SP), também delegado da Polícia Federal, levou o filho Juan para o cinema para ver a comédia de humor negro "Ted", dirigida por Seth McFarlane. O filme é recomendado para maiores de 16 anos, e o pequeno Juan tem apenas 11, mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso é que Protógenes ficou chocado com o que viu na tela (um ursinho de pelúcia usando drogas e envolvendo-se com prostitutas), e, como todo "bastião da moral e dos bons costumes", julgou que os demais brasileiros não tinham inteligência e discernimento para entender a "mensagem" do filme. Tentou, portanto, proibir sua exibição no país. E só por causa de uma comédia sobre um ursinho tarado e maconheiro...

"Acionarei os meios legais, a fim de impedir q o lixo o filme infanto-juvenil TED seja exibido nacionalmente e apurar responsabilidades"; "Não poderia ser liberado nem para 16 nem para 18 anos. Esse filme não pode ser liberado para idade nenhuma. Não deve ser veiculado em cinemas"; "#foraFilmeTED das telas do cinema brasileiro. Não aceitamos mais esses enlatados culturais americanos no Brasil"; "Fiquei chocado e indignado com esse filme. Ele passa a mensagem de que quem consome drogas, não trabalha e não estuda é feliz". Essas foram apenas algumas das asneiras ditas pelo deputado, esquecendo-se, talvez, que proibir/censurar um filme não é papel do Estado, mas sim lutar para defender toda a liberdade de expressão, e que gosto pessoal não é justificativa para vetar a exibição, apresentação, exposição e publicação de nada. Se bem que isso, no Brasil, é cada vez mais comum, e o lamentável episódio Protógenes x "Ted" é apenas mais um no país que proibiu o lançamento comercial de "A Serbian Film" ano passado (2011), alegando que incitava a pedofilia, e que quer impedir a circulação dos livros clássicos de Monteiro Lobato nas escolas por julgar que são "racistas".


Portanto, nossa postagem de hoje é uma homenagem a todos os censores travestidos de políticos, e também uma sugestão de filme para o deputado Protógenes ver com seu filho numa próxima "Sessão Família". Trata-se de FRITZ THE CAT, escrito e dirigido por Ralph Bakshi em 1972. Afinal, se o nobre político pensou que "Ted" era um filme-família só por ter um ursinho de pelúcia no pôster (sem se informar sobre seu conteúdo ou classificação etária), que mal poderia haver num desenho animado estrelado por um simpático gatinho, não é mesmo?

Bem, a verdade é que FRITZ THE CAT entrou para a história do cinema como o primeiro desenho animado a receber certificação X (proibido para menores de 18 anos, a mesma dos pornôs) nos cinemas norte-americanos. Não exatamente por ser um filme pornográfico - há insinuações de sexo entre os personagens, mas sem mostrar putaria explícita ou penetração -, e sim pela trama repleta de violência explícita, consumo de drogas e uma moral bem duvidosa (para dizer o mínimo), coisas que certamente deixariam nosso famoso deputado censor de cabelos em pé...


FRITZ THE CAT é a versão "live action" de um famoso personagem dos quadrinhos, criado por Robert Crumb. Vale ressaltar que o Gato Fritz não era um personagem infantil, tampouco tinha revista com seu nome nas bancas: o felino malandro estrelava quadrinhos underground, produzidos de maneira independente, e por isso mesmo isentos das restrições impostas aos gibis "comerciais" (em relação ao uso de sexo, violência, palavrões e escatologia).

Em outras palavras, Fritz e seus colegas do underground podiam fazer o que bem entendessem (ou o que seus autores dementes quisessem), e azar do leitor "sensível", já que eram quadrinhos definitivamente para adultos - inclusive pelo seu texto mais rebuscado, que propunha crítica social e conflitos internos dos bichinhos humanizados.


O Gato Fritz foi criado por Crumb em 1959, mas suas primeiras histórias seriam publicadas apenas em 1965, nas páginas da revista norte-americana Help!, que pertencia ao mesmo editor da lendária Mad, Harvey Kurtzman. Fritz the Cat era algo original no cenário da HQ porque juntava o velho (bichinhos fofinhos falando, agindo e se vestindo como gente) com o "novo" (sexo, violência e contracultura nas tramas nada infantis).

Na maioria de suas histórias, Fritz aparece como um universitário e poeta fracassado perdido em meio à cena hippie e rodeado por outros personagens animais que não passam de estereótipos ou caricaturas dos seres humanos - os policiais são porcos, os negros são corvos, uma mulher superficial é representada como uma égua, e por aí vai.


FRITZ THE CAT, o filme, surgiu da associação do animador nova-iorquino Ralph Bakshi com o produtor Steve Krantz. Foi esse último que teve a ideia de fazer a adaptação: em 1969, ele comprou um livro com as histórias de Robert Crumb, ficou maravilhado e resolveu que transformaria o material num desenho animado para adultos.

A negociação com o autor não foi exatamente tranquila, conforme explicarei mais adiante, mas Crumb acabou dando sinal verde e Bakshi ficou responsável pela adaptação. Ao invés de criar uma história original, ele preferiu juntar três velhas HQs de Fritz, formando uma única aventura longa, porém tomando algumas liberdades poéticas aqui e acolá que enfureceram tanto Crumb quanto seus fãs mais radicais.


O filme começa com uma legenda ("The 1960's"), e assume sua localização geográfica como sendo Nova York (algo que não acontecia nos quadrinhos). Fritz e dois amigos vão ao parque com violões na tentativa de faturar umas gatinhas através da música, mas descobrem que outros desocupados estão usando a mesma ideia. O "herói" precisa improvisar e fingir-se de poeta maldito para levar três universitárias desmioladas para a cama - ou melhor, para dentro de uma banheira, já que vai até o apartamento de um amigo e lá está rolando uma festinha cheia de hippies fumando maconha por todos os cantos.

Após uma rápida sessão de sexo grupal com as moças na banheira, Fritz é obrigado a fugir com a chegada de dois policiais atrapalhados (um deles dublado pelo próprio diretor-roteirista Bakshi). Ele então resolve abandonar os estudos, queimando seus livros (e, consequentemente, toda a fraternidade onde morava), e a partir disso pula de uma aventura maluca para a outra, provocando uma revolta popular no Harlem (famoso bairro negro de Nova York), caindo na estrada com a namorada Winston e, finalmente, sendo recrutado por um grupo revolucionário que pretende praticar atos terroristas para derrubar o governo!


O roteiro dividido em esquetes é talvez a maior qualidade e o maior problema de FRITZ THE CAT. Qualidade porque o personagem não teria fôlego para uma única aventura longa, visto que mesmo em sua encarnação dos quadrinhos sempre participou de histórias curtas - seria tipo o que aconteceu com Garfield no cinema décadas depois, quando o gato astro de tiras curtinhas nos quadrinhos demonstrou não ter fôlego para protagonizar uma única história longa.

Por outro lado, a adaptação das histórias de Crumb foi feita por Bakshi de maneira meio caótica (ou "de qualquer jeito", como se diz), deixando de fora alguns elementos e explicações importantes e adicionando certas bobagens que não têm muito a ver com o universo do Gato Fritz - quase todas as contribuições originais de Bakshi à trama são de lascar, o que talvez tenha enfurecido tanto Crumb quanto seus fãs.


Essa meia dúzia de momentos soltos improvisados pelo diretor-roteirista incluem funcionários de uma obra reclamando sobre os jovens daquela época, antes de dar uma mijada do alto do prédio em construção diretamente na cabeça de um hippie, e Fritz fugindo da polícia para dentro de uma sinagoga, onde ao mesmo tempo acontecem as piadas mais fracas do filme e uma das inserções mais engraçadas feitas por Bakshi (ao ver os judeus ortodoxos na sinagoga, um dos policiais burros diz: "Cabelos compridos? Usando batas? É uma festa hippie!").

Bakshi também quintuplicou a violência, que não era exatamente uma característica das historinhas do Gato Fritz. A cena da revolta popular no Harlem inclui um momento em que um amigo de Fritz, o corvo Duke, é morto com um sangrento tiro em câmera lenta. A metáfora para representar a vida do pássaro se esvaindo - bolas de sinuca entrando lentamente na caçapa, já que o personagem gostava de jogar bilhar - rende um dos momentos mais marcantes do filme.


Bakshi também colocou mais violência onde não havia. Na subtrama em que Fritz entra para o grupo revolucionário, por exemplo, há um momento em que Harriet, a égua namorada de um coelho usuário de heroína, é agredida e estuprada pelos terroristas. Na HQ, era um momento até engraçado, que evoluía para um "estupro" coletivo (pense em humor negro). No filme, vira uma cena cruel em que a pobre quadrúpede é espancada com golpes de corrente que lhe tiram um montão de sangue!

Outra liberdade poética do diretor-roteirista foi a absurda cena envolvendo um caipira dirigindo um caminhão de galinhas. Furioso com o cacarejar incessante das penosas, o sujeito simplesmente pega um pedaço de pau e espanca todas as aves até a morte, num daqueles momentos de humor negro em que o espectador acaba rindo de nervoso, mas na verdade se pega questionando o que o criador daquela piada teria na cabeça.


O importante é que, descontando essas poucas inserções de Bakshi, o estilo de desenho e os roteiros de Crumb estão todos em FRITZ THE CAT. A primeira parte do filme, em que o gato tenta seduzir garotinhas com música e depois finge-se de poeta sofredor para levá-las até o banheiro (e à banheira), foi tirada quase na íntegra da história "Fritz the Cat". O momento em que o universitário Fritz queima seus livros, vai para o Harlem, provoca uma revolta popular dos negros contra a polícia e depois cai na estrada com a Winston saíram diretamente de "Fritz Bugs Out" (no Brasil, "Fritz Cai Fora"). Finalmente, o ato final do filme, em que o gato se envolve com os terroristas, vem de "Fritz the No-Good" (no Brasil, "Fritz, O Inútil").

Bakshi faz, sim, algumas alterações aqui e ali, e inclusive os terroristas no último ato do filme foram transformados em vilões assustadores, enquanto na HQ Crumb tinha optado por uma visão mais ingênua e engraçada, com aqueles típicos revolucionários de botequim usando frases-feitas como "A máquina do establishment será arruinada" (esta inclusive é uma das grandes reclamações de Crumb sobre o filme). Mas, em linhas gerais, FRITZ THE CAT é uma adaptação bem decente da HQ, inclusive com o espírito dos quadrinhos de Crumb.


Se como adaptação é relativamente fiel, como filme o buraco é mais embaixo. Afinal, conforme eu escrevi ali em cima, ao unir as três histórias diferentes e escritas em períodos diferentes, Bakshi não conseguiu criar a linearidade que seu filme pretende mostrar. As três histórias adaptadas aconteciam num espaço de muitos anos, em que o próprio Fritz mudou junto com seu autor (durante os acontecimentos de "Fritz the No-Good", por exemplo, o gato já estava casado e com um filho pequeno!), enquanto no filme todas as suas aventuras acontecem no intervalo de alguns dias.

Só que Bakshi cortou coisas necessárias para que os não-iniciados na obra de Crumb entendessem o que se passa. Quando a gata idealista Winston entra em cena procurando pelo "herói", quem leu a HQ sabe que ela é um velho caso romântico de Fritz, mas para quem está vendo o filme esta informação não é passada em momento algum. Ao mesmo tempo, Winston diz que Fritz devia parar de perder tempo com "garotas como Charlene", um outro caso romântico do gato que apareceu no começo da HQ "Fritz Bugs Out". Como Charlene não aparece no filme, nem seu nome sequer é citado anteriormente, o diálogo torna-se completamente desnecessário!


Mas, no geral, confesso que gosto MUITO de FRITZ THE CAT, não tanto pelo conjunto da obra, mas por seus momentos isolados. É preciso levar em consideração que, hoje, é muito fácil rir de coisas como o Movimento Hippie, mas tanto os quadrinhos de Crumb quanto o filme de Bakshi tiraram sarro disso na época em que a coisa estava no auge.

E é curioso ver como muitas piadas do filme (e dos quadrinhos) continuam atualíssimas até hoje. Como quando três patricinhas branquelas ficam se desmanchando em elogios a um corvo (o negro, no universo de Fritz), usando frases como "Black is so much groovier". Na HQ original, havia até um diálogo em que um dos amigos de Fritz dizia: "É sempre assim, é só aparecer um negão!".


Outro momento divertido são as frases revolucionárias-clichê com que Fritz, um gato branco, universitário e de classe média alta, acende uma revolta popular no Harlem, gritando chavões como "São eles que mantêm os poderosos no poder", referindo-se à polícia.

Contribuindo com o lado politicamente incorreto de FRITZ THE CAT, há também o fato do simpático gatinho não ser flor que se cheire. Pelo contrário, Fritz é um universitário vagabundo que não frequenta as aulas porque sonha em viver como poeta, que adora fumar maconha e que quer comer todas as mulheres (fêmeas) que cruzam seu caminho. Em resumo, o Gato Fritz vai de encontro ao que o deputado Protógenes reclamou sobre "Ted" (que passa a mensagem de que quem consome drogas, não trabalha e não estuda é feliz), só que 40 anos antes!!!


FRITZ THE CAT foi um projeto difícil de tirar do papel. Quando Krantz e Bakshi resolveram que iriam adaptar a HQ, foram procurar Crumb em San Francisco, mas o autor não queria ressuscitar um personagem que, para ele, já tinha sido deixado de lado há anos. Crumb alegava que o Gato Fritz era seu personagem mais antigo e fora de moda, e que ele estava fazendo coisas mais atuais naquele momento.

A negociação entre a dupla e Crump foi nebulosa, e cada uma das partes envolvidas tem sua própria versão dos acontecimentos. Segundo o autor, ele nunca aprovou a adaptação para o cinema nem nunca assinou um contrato; por isso, o artista chegou a ameaçar os realizadores com processo judicial para que tirassem seu nome dos créditos do filme, depois que viu e não gostou.


O produtor Krantz, por outro lado, disse que recebeu um contrato assinado por Crumb pelo correio, e que pagou 12.500 dólares pelos direitos do personagem. Claro que, passados 40 anos, é difícil saber quem está certo e quem está errado, mas acho difícil acreditar que Krantz produziria um filme sem ter pelo menos um documento do autor permitindo o uso de sua obra.

(Para quem quiser saber mais sobre o complicado processo de transformar o Gato Fritz em filme, e as brigas entre realizadores e Robert Crumb, recomendo esse gigantesco artigo de Michael Barrier chamado "The Filming of Fritz the Cat", que foi originalmente publicado na revista Funnyworld em 1972 e está disponível na íntegra aqui.)


Um segundo problema foi com o financiamento do filme. Até porque, no começo dos anos 70, quando se falava em desenho animado no cinema todo mundo pensava nas produções inofensivas dos Estúdios Disney. Animações politicamente incorretas e com teor adulto não eram comuns como, hoje, "The Simpsons" e "Uma Família da Pesada".

Portanto, quando Bakshi e Krantz tentaram conseguir grana com a Warner Bros., e exibiram um pequeno trecho concluído de FRITZ THE CAT (justamente a cena do Harlem), os executivos ficaram pasmos. Em uma entrevista recente, o diretor Bakshi disse que vai lembrar para sempre da cara dos sujeitos ao final da exibição. Eles queriam cortar todo o erotismo do filme, fazer mudanças na história e chamar famosos para dublar os personagens. Com a recusa da dupla de realizadores, a Warner pulou fora e FRITZ THE CAT acabou sendo distribuído pela Cinemation Industries, uma pequena distribuidora de filmes exploitation.


Na estreia, mais problemas: a Motion Picture Association of America (MPAA), órgão que regula a classificação etária dos filmes nos Estados Unidos, encasquetou com o conteúdo adulto de FRITZ THE CAT e tascou-lhe um "X-Rated", ou seja, "proibido para menores de 18 anos".

Claro que já existiam desenhos animados pornográficos explícitos na época, coisa que FRITZ THE CAT não era. Um dos meus preferidos, "Eveready Harton in Buried Treasure", é de 1929! A diferença é que esses filmes não eram submetidos à MPAA para receber classificação (já eram produzidos exclusivamente para os cinemas adultos ou para exibições clandestinas). Por isso, oficialmente, o desenho do Gato Fritz foi a primeira animação a ter essa "honra".


O produtor Krantz até brigou com a MPAA para tentar baixar a classificação, pois sabia que a tarja X-Rated significava a morte comercial do seu filme. Ele alegava que sexo entre animais não podia ser considerado pornografia (!!!), mas esse nem era o ponto: as várias cenas de sexo em FRITZ THE CAT não são explícitas, não mostram penetração, portanto não podem ser consideradas "X-Rated".

Demorou algum tempo para que as pessoas percebessem que FRITZ THE CAT não era um filme pornográfico (o que certamente decepcionou parte do público), e até o Festival de Cannes de 1972 se rendeu e exibiu o filme na sua programação. Em entrevista recente, Bakshi declarou: "Hoje eles fazem em 'The Simpsons' tudo aquilo pelo que ganhamos um 'X' com FRITZ THE CAT".


No fim, a controvérsia acabou rendendo frutos: o distribuidor, especialista em exploitation e em publicidade, colocou uma frase gigante no pôster do filme, "We're not rated X for nothin', baby!", tentando atrair a curiosidade dos pervertidos interessados em ver bichinhos fofinhos transando.

Funcionou, e até hoje FRITZ THE CAT é o desenho animado independente mais lucrativo da história: mesmo tendo custado apenas 850 mil dólares, e mesmo com um lançamento bastante limitado por causa da certificação X-Rated, o filme rendeu mais de 100 milhões de dólares nas bilheterias mundiais!


Pode ter sido um sucesso comercial, mas Robert Crumb odiou. Ele assistiu o filme em fevereiro de 1972, quando estava em Los Angeles, acompanhado de outros desenhistas do underground. Seu relato sobre a adaptação (tirado do artigo supracitado de Michael Barrier): "Ele [Bakshi] me perguntou o que eu tinha achado, e eu apenas dei de ombros. Eu não sabia o que dizer. Então disse que não gostei do que ele tinha feito com a cena dos revolucionários, que aquilo me deixou puto, como ele mudou e transformou em algo que não era o que eu queria dizer. É um filme estranho, um reflexo da confusão de Ralph Bakshi. Existe algo de muito reprimido nele, algo muito mais esquisito que o meu material. É apenas esquisito, mas não engraçado".

Enfim, Crumb ficou tão puto com FRITZ THE CAT que, ainda em 1972, resolveu publicar uma nova história em quadrinhos do Gato Fritz, algo que não fazia há anos. E seria a última: o autor preferiu matar o seu personagem, com um picador de gelo cravado na cabeça por uma ex-namorada possessiva, a deixá-lo vivo para aparecer em novos filmes. A história de 15 páginas chama-se "Fritz The Cat Superstar", e tira sarro do mundo do cinema - tem até um momento em que Fritz encontra-se com produtores de cinema inescrupulosos chamados... Steve e Ralph! Qualquer semelhança com a realidade NÃO é mera coincidência...


Depois de FRITZ THE CAT, Ralph Bakshi partiu para outros projetos, mas raramente saiu da área de animação. Escreveu e dirigiu vários longas de animação, sendo que o mais famoso deles é uma ambiciosa adaptação de "O Senhor dos Anéis" produzida em 1978, com 132 minutos de duração e cobrindo a história do primeiro livro e parte do segundo. O filme contava até com vozes famosas (John Hurt dublou Aragorn e Anthony Daniels, o C3PO de "Star Wars", emprestou sua voz a Legolas), e era para ser a primeira parte de uma trilogia, mas não convenceu e ficou só no primeiro filme mesmo, deixando a aventura incompleta até Peter Jackson fazer sua versão "live action" da obra mais de duas décadas depois.

Bakshi também foi o responsável por "American Pop" (1981), desenho animado sobre uma família de músicos, que virou cult por causa da trilha sonora (com Bob Dylan, Jimi Hendrix, Lou Reed, Sex Pistols e outros), e por "Fire and Ice" (1983), animação de espada e magia lançada na esteira do sucesso de "Conan, O Bárbaro". Em 1992, ele tentou fazer uma sensual mistura de filme com desenho animado estilo "Uma Cilada para Roger Rabbit", e o resultado foi o bizarro "Mundo Proibido", com Kim Basinger como a personagem de quadrinhos que seduz seu criador (o ainda desconhecido Brad Pitt também aparece no filme). Bakshi não faz nada novo desde 1997.


De qualquer maneira, a morte de Fritz pelas mãos de Robert Crumb (e da ex-namorada possessiva com o picador de gelo) não poupou o personagem de aparecer em uma continuação. E das ruins! Em 1974, o mesmo produtor Steve Krantz fez "The Nine Lives of Fritz the Cat", em cujo material de divulgação até sacaneava o próprio Crumb: "Fritz may have lost one of his lives in the comics, but in his new movie, he has eight more lives left to go!".

Ralph Bakshi pulou fora do projeto, que desta vez foi dirigido por Robert Taylor, e o roteiro não tem nada a ver com os quadrinhos de Crumb, embora aproveite o início da HQ "Fritz the No-Good" (o gato sendo aporrinhado pela esposa). O resultado é um filme péssimo em que nada se salva, e sem a menor graça - que deve ter feito o próprio Robert Crumb parar de implicar com FRITZ THE CAT ao constatar algo realmente ruim estrelado pelo seu personagem...

PS: Destaque para a "participação especial" da silhueta de três famosos personagens Disney (Pato Donald, Mickey e Minnie), aplaudindo a intervenção do exército norte-americano no Harlem. Não bastassem todos os problemas enfrentados pelos realizadores, um processo de Walt Disney certamente fecharia com chave de ouro a lendária odisséia para realização desta animação. Mas isso milagrosamente não aconteceu.


Trailer de FRITZ THE CAT



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Fritz The Cat (1972, EUA)
Direção: Ralph Bakshi
Com as vozes de Skip Hinnant, Rosetta LeNoire,
John McCurry, Judy Engles, Phil Seuling, Mary Dean,
Charles Spidar e Ralph Bakshi.