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sexta-feira, 9 de março de 2012

Glauber, o mau perdedor


É muito fácil odiar Glauber Rocha, considerando os filmes chatos e super-estimadíssimos que ele dirigiu, mas principalmente a quantidade de asneiras que falou durante sua curta vida. Como todo gênio de araque, o cineasta baiano teve uma trajetória meteórica: da ascensão ainda jovem (graças ao sucesso de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de 1964, dirigido quando ele tinha apenas 24 anos) à queda com o retumbante fracasso de "A Idade da Terra" (1980), foram apenas 16 anos.

Antes da queda definitiva, sua carreira já vinha capenga há alguns anos, mais precisamente desde que ganhou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes com "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", em 1969. Depois desse filme, Glauber faria uma série de produções desconexas e insuportáveis que ninguém quis ver, como "O Leão de Sete Cabeças", "Câncer" e "Cabeças Cortadas".

Mas "A Idade da Terra" era o seu projeto dos sonhos. Glauber pensava nele como uma superprodução a ser filmada em quatro continentes (África, Ásia, América e Europa), ao custo de muitos milhões de dólares e com Jack Nicholson no elenco. Muitos problemas e brigas depois, acabou rodando seu épico no Brasil mesmo, em diversos Estados, com grana da Embrafilme e um elenco de caras conhecidas (Jece Valadão, Norma Bengell, Tarcísio Meira...).

O resultado é um escalafobético e insuportável "épico" com intermináveis 140 minutos (o diretor sonhava com uma versão final de cinco horas, então ainda precisamos comemorar essas malditas 2h20min!). É inútil tentar seguir ou sequer entender a história, pois não há narrativa, apenas uma colagem de imagens. Glauber até sugeria que os rolos fossem exibidos em ordem aleatória!

"A Idade da Terra" foi um merecido fiasco de bilheteria e público, com uns poucos puxa-sacos ficando do lado de Glauber e defendendo essa bomba. O baiano morreria anos depois sem dirigir mais nada.

Quando seu sonhado épico estreou no Festival de Veneza, em 1980, e não ganhou nenhum prêmio, o chato metido a gênio subiu nas tamancas e fez um protesto contra os jurados do evento, esbravejando pérolas da idiotice como "Aqui, privilegiada é gente como Anghelopulos, um convencional que não chega aos pés de Cacoyannis, e Fassbinder, que faz um cinema neonazista. Esses filmes que ganharam o Leão de Ouro merecem um Leão de m...", ou ainda "Este júri foi pago pela Colúmbia, pela Gaumont e pela RAI para premiar diretores de segunda classe como (Louis) Malle e (John) Cassavetes. Esta premiação é uma vergonha. Vergonha para a Bienal de Veneza, vergonha para o Partido Comunista, o Partido Socialista e a intelectualidade italiana!".

Ou seja: além de mala, além de chato, além de arrogante, além de fanfarrão a quem chamaram de gênio e infelizmente ele acreditou, Glauber Rocha também era um mau perdedor! O que segue é um texto escrito pelo próprio pós-Festival de Veneza e enviado aos jornais brasileiros. É de rolar de rir com a petulância do infeliz.


"UM AVISO AOS INTELECTUAIS
'A Idade da Terra', que estreará no Rio e em São Paulo brevemente, entrará em choque com várias camadas de público, despertando seguramente contundentes polêmicas, dando curso ao escândalo do Festival de Veneza, quando enfrentei 1.600 telejornalistas mundiais e platéias corrompidas pelo cinema comercial de Hollywood, da Gaumont e de outras multinacionais do 'audyo vyzual'. Antes da 'batalha', quero solicitar, sobretudo aos yntelektuais que serão implacáveis, condições para que o combate se desenrole democraticamente, alimentando mesmo com vômitos e diarréias o fértil deserto de nossas 'aberturas fygueyrediztas'.

Condições:
1) Que o público e críticos, assim como os funcionários da Embrafylme, fiscalizem a projeção nos cinemas Caruso (Rio) e Top-Center. 'A Idade da Terra' possui ymagem e som de excepcional qualidade técnyka – já estados nos projetores de Veneza. Acontece que no Brazyl, forças 'ocultas' (?) sabotam freqüentemente projeções de filmes nacionais. Lentes dos projetores são desfocadas. O som é deformado para alto ou baixo. Bobinas são projetadas fora de ordem. Para que o públiko veja e ouça bem, é necessário que as projeções sejam perfeitas na medida do possível. Somente assim o públiko poderá curtir o extazextetyko (polytyko) de 'A Idade da Terra'. Espero que mesmo o eleytorado inimigo exerça esta patrulhagem junto a todos os cinemas do Brazyl, onde 'A Idade' e outros filmes brasileiros sejam exibidos: exigir qualidade na projeção da Ymagem e do som, procurando identificar as 'forças ocultas' interessadas em impedir o curso ascendente do cinema Nacyonal popular.

2) Espero que o filme seja criticado pelos intelectuais com o mínimo de preconceitos que existem em torno, sub e sobre 'Glauber Rocha'. São legendas alimentadas por Deus e pelo Diabo que proclamam aos 4 ventos minhas virtudes e males. Aos 41 anos me vejo mytyfykado – o que é tragipoetyko – porque o myto sofre do mal de ser odiado ou amado não pelo cerne vital (ou medula sexual) mas pelas várias e diferentes versões que a sociedade constrói e divulga a seu respeito. Lamento que apenas uma centena de yntelektuais brasileiros tenham consciência da importância revolucionária de minha obrakynematographyka.

A imprensa, via artigos de jornalistas teleguiados, procura me pintar como louko, marginal, fracassado, corrupto fascista e todos estes adjetivos tentam esconder a criatividade de meus filmes. A minoria de jornalistas que revela a realidade sobre Glauber Rocha é acusada de escrever sob pressão dos 'meus ferrões', expressão usada por meu dileto Alberto Dines em Pasquim, malhando a cobertura de Pedro Del Picchia nesta Folha e Albino Castro ('O Globo') que presenciaram a 'Batalha de Veneza' e elogiando a cobertura de Veja e outros jornais que não enviaram correspondentes. Com este gesto paranóico, porque travestido de 'honesto', o doce Alberto Dines, ataca o certo e defende o errado, estabelecendo condições subjetivas para condenar o réu.

E assim por diante: Pasquim, Movimento, Istoé e outros publicam calúnias a meu respeito – não hesitando em pedir minha cabeça no prato de Salomé. Para os redatores de Istoé – numa reportagem sobre os 'Idolos do Brazyl' – 'A Idade da Terra' é um ponto baixo na minha vida. Inédito no Brazyl, transforma-se no filme mais discutido do mundo, projetando-se como a superstar de Veneza, e os intelectuais de Mino Carta resolvem queimar 'A Idade da Terra' ainda no Berço. Além do mais, o gráfico desconhece a metade de minha obra, subverte declarações, tudo num estilo constrangedor para uma revista que se quer de primeira classe. A estes exemplos recentes poderia juntar outros passados e prever futuros 'golpes baixos' que pretendem me destruir.

Para ver e ouvir 'A Idade da Terra' são necessários 'olhos abertos e ouvidos purificados'.

Estabelecidas estas 2 condições – uma teknyka (a qualidade da projeção) e outra polytyka (despi-vos dos preconceitos) – adianto algumas informações sobre 'A Idade da Terra' e seu explosivo lançamento internacional em Veneza.

Este é o meu décimo-quinto filme e foi co-produzido por minha 'Glauber Rocha Comunicações Artísticas' e a Embrafilme. Custou 20 milhões de cruzeiros, mais ou menos 300 mil dólares, que é o preço de 'Bye Bye Brazyl', 'Gaijin' ou 'Pixote'. Assim, os patrulheiros não poderão dizer que gastei fortunas da Embrafilme. Trabalhei como qualquer proletário da Kynobraz, recebendo salário inferior ao de Lula que, espero, encontre tempo para ir ao Cine Top Center ver e ouvir 'A Idade da Terra'.

A superprodução que aparece nas telas foi tecida com unhas e dentes durante 2 anos e meio de obsessiva luta contra o subdesenvolvimento. Contei com a colaboração do diretor geral da Embrafilme, Celso Amorim, que participou da finalização do filme com o máximo de interesse criativo, desmentindo recentes declarações do meu querido Zé Celso Martinez, segundo as quais 'a Embrafilme tinha se convertido no substituto da censura'. Afirmo que nenhuma empresa do mundo, estadual ou privada, produziria um filme como 'A Idade da Terra', concedendo ao diretor absolutas liberdades autorais dentro dos limites financeiros e técnicos do atual estágio da indústria cinematográfica latinamerikana.

Também não fui motivado pela censura governamental, nem pela autocensura, e muito menos pela tendência 'populista-comercial' de 'atingir o público'. Isto são desculpas de artistas inseguros ou corrompidos. 'A Idade da Terra' é o resultado fílmico de Glauber Rocha aos 41 anos. Encerra o Ciclo do Jovem Glauber, expressão cara àqueles que curtem 'o jovem Marx'. Este ciclo começa com 'Pátio' (58) e se desenvolve revolucionariamente em 'Barravento' (62), 'Deus e o Diabo na Terra do Sol' (64), 'Amazonas, Amazonas' (65), 'Maranhã 66' (66), 'Terra em Transe' (67), 'Câncer' (68), 'O Leão de 7 Cabeças' (Áfrika, 70), 'Cabeças Cortadas' (Espanha, 70), 'História do Brazyl' (Cuba, 72, com Marcos Medeiros), 'Claro' (Itália, 75), 'Di Cavalcanti' (77) para, à maneira das cúpulas barrokas, concluir a kathedral com 'A Idade da Terra'.

Kathedral, monumento, paynel cineterceyromundista que, modesta e humildemente (como o Aleyjadinho) significam a luta de um brasyleyro de 41 anos pela criação de uma sociedade redimida da nossa tragédya kolonyal.

Para quem conhece minha trajetória ficcional, resumo que, em 'A Idade da Terra', 'o cangaceiro mata Antonyo das Mortes (o ymperialysmo polyvalente) e o povo triunfa na utopya'.

Intelectuais me acusam de 'alegórico' e 'metafórico'. Ignorantes do significado poétyko das 'alegorias' e das 'metáforas' – simbólicos signos gerados exclusivamente por grandes artistas como Maiakovzky, Meyerhold, Eisensteyn, Joyce, Pound, Proust, Jorge de Lima, Portinari, Di, Villa Lobos ou Jorge Amado – estes defensores do 'realismo comercial' contribuem com a censura e com o ymperyalyzmo cultural que castra as elites brasileiras as reduzindo ao estado de impotência que as impede de lutar pela libertação econômica do Brazyl e do Terceiro Mundo. O cinema teatral e romanesco é o que se vê em todas telas do mundo. Histórias mentirosas contadas segundo as regrinhas dramáticas das multinacionais. A recuperação estética dos anos 70, consagrou cine-astas restauradores e neo-acadêmicos como Bernardo Bertolucci, Nagisa Oshima, Louis Malle ou este telenoveleiro revisionista que é o polaco Zanussi, literatos investidos de um poder cinematográfico defendido por críticos submetidos ao processo de destruição do discurso poético revolucionário. A exceção de Godard, do argentino Fernando Solanas ('A Hora dos Fornos' e 'Os Filhos de Ferro'), de outro argentino Fernando Birri, do yank Robert Kramer ('Milestones', 'Guns'), dos alemães Werner Schroeter e H. Sylberberg ('Hitler'), do cinema novo Brazyleyro, do soviético Andrey Tarkovsky ('Solaris', 'Stalker'), do cubano Thomaz Gutierrez Alea ('Memórias Del Subdesarollo'), do espanhol Carlos Saura, do italiano Carmelo Bene e pouquíssimos outros cineastas – tudo que se produz hoje no cinema é lixo teatral romanesco.

Isto denunciei em Veneza. O escândalo repercutiu. A crítica revolucionária mundial consagrou 'A Idade da Terra'. A crítica conformista, desinformada e policial o atacou. Foi o mesmo com 'Terra em Transe', 1967, quando os mais famosos críticos deram bola-preta ao filme que os converteria anos depois.

Estou aberto ao debate mas venham preparados. Agradeço à equipe técnica e aos atores que me ajudaram a fazer 'A Idade da Terra'. FYM."



Agora, diz aí: será que alguém REALMENTE tem saudade do Glauber Rocha?

terça-feira, 16 de março de 2010

Tudo que você sempre quis ler sobre GLAUBER ROCHA, mas tinha preguiça de procurar


Uma das coisas mais chatas para quem estuda/estudou Comunicação ou Cinema é que os professores tentarão desesperadamente te vender a idéia de que Glauber Rocha é um gênio, um deus, o intelectual dos intelectuais, uma criatura abençoada vários degraus acima de nós, pobres mortais. Isso é sagrado, e se você não concordar com eles é porque a sua ignorância lhe cega, o seu preconceito lhe oprime, e não lhe permite enxergar a beleza e a genialidade do "maior cineasta brasileiro de todos os tempos"!

Pessoalmente, Glauber Rocha para mim sempre foi um chato de galocha e um caso clássico de "Não vi, não gostei", como escrevi nas minhas breves linhas sobre "Deus e o Diabo na Terra do Sol" alguns posts abaixo. Sim, eu conhecia algumas cenas dos seus filmes mais famosos, li muito sobre o homem e a obra, mas sempre que tentei ver algum dos seus filmes, não consegui ir muito além dos primeiros minutos. Vai ver a genialidade do Glauber é demais para a minha pobre cabecinha ignorante e acostumada ao "lixo cinematográfico" mais tradicional, mas juro que não consigo entender a grande contribuição glauberiana para o cinema brasileiro, quem dirá para o cinema mundial!

Enfim, neste ano eu resolvi que ia dar uma chance ao "gênio", forçando-me a agüentar bravamente uma revisão da sua obra. Acabei chegando à conclusão de que o culpado não sou eu. O cinema glauberiano pode até ter seus méritos (imagens e planos belíssimos, algumas ótimas idéias, o aproveitamento da cultura regional, do misticismo do Nordeste...), mas no fim seus filmes não me descem nem à força. EU NÃO CONSIGO GOSTAR DE GLAUBER ROCHA, e sempre me pareceu que a obra de Glauber é exageradamente super-estimada - "suportar" seus filmes até o fim só me confirmou esta suspeita.


É comum se sentir um alienígena por pensar assim, já que a maioria absoluta dos pensadores/pesquisadores/professores/críticos de cinema do Brasil (e alguns do exterior também) acha Glauber um Deus. Tente discutir a obra do cara com um daqueles metidinhos a cinéfilo-cult para ver o que acontece – só não vá armado! E foi justamente por me sentir um alienígena que vibrei de satisfação ao encontrar, por acaso, esta velha crítica de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", escrita à ocasião do lançamento do filme, em 1964.

Pois vejam só: a crítica traz tudo aquilo que eu sempre quis ler sobre Glauber Rocha! Podia muito bem ser usada como contraponto, nas universidades, àqueles textos do Ismail Xavier que tratam tudo que vem do Glauber como pura genialidade.

O autor é B.J. Duarte, crítico de cinema que, à época, era inimigo declarado de Glauber por causa das bobagens que o baiano disse e escreveu sobre o cinema paulista. Em alguns de seus artigos, Duarte referiu-se a Glauber e seus colegas cinema-novistas como "cabeludos sem asseio, desmazelados críticos e realizadores, praticantes de um cinema incerto e inculto, pasticheiros incorrigíveis", e outras maravilhas com as quais eu concordo quase 100%. Melhor ainda: escreveu que Glauber e sua turma praticavam "um cinema confuso, mosaico feito com cacos da nouvelle vague, os cacos de muito aparvalhado e a cacologia dos servis imitadores de Godard e Antonioni, de Zavattini e do japonês Oshima". Alguém realmente não concorda com isso?

Segue, na íntegra, os escritos do sujeito sobre "Deus e o Diabo...", e não é preciso concordar 100% com ele, mas reparem que o autor faz observações pertinentes que muitos "entendidos" relevam frente à sua cega paixão (ou seria idolatria?) glauberiana. Muitas vezes, simplesmente por puro medo de fazer feio diante de seu círculo de amiguinhos cinéfilos! Portanto, abram a cabeça e deleitem-se:


"Ao afirmar, desde logo, que não me agradou o filme de Glauber Rocha – Deus e o Diabo na Terra do Sol – não quero, com essa apreciação preliminar e radical, negar a inteligência de seu realizador, nem menosprezar seu entusiasmo de jovem, no manuseio dessa história de cangaço e misticismo, na sua ambição de realizar algo definitivo nesse indefinido 'Cinema Novo', de que é ele o campeão insuperável e o guarda-costas mais fiel.

Uma longa conversa com Glauber Rocha antes de assistir ao filme foi-me muito benéfica, na antecipação da análise da obra, e as declarações prestadas por seu realizador a respeito de suas idéias, gerais e particulares, sobre Deus e o Diabo, a abarcar o panorama do cinema brasileiro atual, firmaram posições, definiram pontos de vista e esclareceram satisfatoriamente algumas contradições e incoerências de atitudes encampadas no livro de Glauber 'Revisão Crítica do Cinema Brasileiro', sobre o qual eu escrevera exaustivamente neste jornal. E, como após a leitura desse livro, a impressão que fica, ao acender das luzes de Deus e o Diabo na Terra do Sol, é a de que Glauber Rocha deu um passo maior do que as pernas, claudicando grosseiramente ao fim desse esforço no campo áspero do cinema.

Seu filme é algo de deplorável em matéria de linguagem cinematográfica, apenas a demonstrar por parte do autor o desejo de colocar o cinema do Brasil na órbita de um movimento 'artístico' surgido na Europa ultimamente (embora as idéias que o configuram sejam antiquadas e superadas), chamado na França de 'cinema-verité', aqui caricaturado a expensas do nosso 'Cinema Novo', também esse, como é sabido, sem ostentar nenhuma novidade digna de atenção e de respeito. De fato até agora, tudo quanto apregoa o 'Cinema Novo' brasileiro ou é algo de muito velho, ou algo de muito ruim.
(Nota do Felipe: Este parágrafo merecia ser emoldurado e pendurado nas salas de aula de cursos de Cinema ao redor do país!)


Suas derivações mais recentes, Glauber Rocha as contou, em prosa inflamada, na sua 'Revisão Crítica', nesse livro tentando a árdua empresa de ordenar e expor o 'modus faciendi' da técnica de suster uma câmara na mão, sem apoio de tripé, sem os óculos dos filtros, sem a reverberação compensatória dos rebatedores, coisa de adolescentes que, pela primeira vez, conseguiram ter à mão uma câmara de amador e que, através do visor restrito, descobrem um mundo novo, configurado por uma técnica que desconheciam. Acontece que o mundo, para eles novo, continua a ser o mundo velho sem as porteiras de sempre e o que o aparelho consegue captar são imagens capengas e canhestras, só formativas da obra característica de aprendizes. Aprendizes de feiticeiros, que ao final, ou ao meio da produção, não sabem como situar-se no tumulto que criaram, nem como terminar a empreitada que a princípio lhes parecia tão fácil.

Deus e o Diabo na Terra do Sol é bem um exemplo disso. Projeção trêmula, quadros trepidantes, incríveis vaivéns de panorâmica sem função, desrespeito absoluto pelas regras mais elementares da técnica cinematográfica, iluminação precária da fotografia (não raro fora de foco) totalmente apartada da dramaturgia cinematográfica, desintegração total da unidade dramática, ausência de qualquer elemento criador na montagem narrativa fragmentada, descosida, tantas vezes incompreensível, eis o espetáculo de Deus e o Diabo na Terra do Sol, algo a que se assiste com enfadonha e fadiga, cujo final se recebe com alegria e desafogo.

'Uma ópera popular primitiva, brasileira e sem rebuscamentos', eis como define sua obra o próprio Glauber Rocha, ao referir-se a Deus e o Diabo na Terra do Sol, em entrevista concedida a este jornal. Primitivo, sem dúvida, seu filme o é; mas, primário seria melhor qualificação. Primário na exposição do tema, primaríssimo em sua feitura e em seu acabamento, uma negação total de seu próprio título. Não há Deus, nem Diabo, nem Sol, nessa terra em que Glauber Rocha erigiu o cenário de sua ópera. O seu Deus é um pobre diabo negro, enfático e declamador, incapaz de convencer o mais bronco dos sertanejos. O seu Diabo é um deus caricato, cabeludo, metido a filósofo do sertão e bailarino das caatingas. E o Sol brilha por sua ausência, nessa terra que deverá estar crestada por ele, nesse chão sofrido que os cantadores populares descrevem como algo ressequido e morto. Pois a paisagem de Deus e o Diabo, ainda que árida, se apresenta sob o foco (ou fora de foco) da 'câmara na mão' de Glauber Rocha, sempre sob um céu nublado, nunca sapecado pelo sol abrasador.


Nesse pano de fundo não raro neutro e sem características maiores, movem-se os personagens da 'ópera': Manuel e Rosa, Sebastião e Corisco, os camponeses do Nordeste, os escravos da gleba, o cego Julio, os minguados cabras de Corisco, o Antônio das Mortes, chapelão texano, capa preta a envolver esse 'Zorro' do sertão. Tudo isso pode ter sido concebido de modo metafórico, alegórico, simbólico, aceito de bom grado essa possibilidade na expressão de Deus e o Diabo. Tais recursos, entretanto, sempre foram utilizados pelo homem, desde que, antes de ter uma câmara na mão, pôde segurar um estilete, ou uma pena para pôr na pedra, no papiro, ou no papel suas idéias, sua sensibilidade, e assim descrever os abismos de sua alma, ou figurar os anseios da sua condição humana.

Mas é preciso que tais recursos - metáforas, alegorias, símbolos - sejam propostos no momento exato, conforme as circunstâncias e de modo funcional. Um homem vestido de capa preta, chapéu de aba larga, lenço ao pescoço, espingarda à mão, a andar de lá pra cá, a correr ou a saltar no campo cinematográfico, sem integrar-se na linha, no cenário, no âmago da ação dramática e na compreensão da história, só continuará a ser um homem de capa preta, simbolizando talvez um tenório em Caxias, ou um 'zorro' ao tempo das missões na Califórnia, nunca a expressar um 'coro', ou um 'prólogo' das tragédias antigas, ou mais simplesmente o 'Antônio das Mortes', matador de cangaceiros, no sertão de Cacorobó...

Não sinto nenhum prazer, senão apenas um sentimento de melancólica decepção ao ter de comentar o filme de Glauber Rocha, não de modo metafórico, mas às claras e sem preconceitos. Admiro a inteligência do jovem cineasta baiano e tenho-o na conta de alguém capaz de muitas coisas no cinema brasileiro. Falta-lhe contudo a maturidade dos velhos, a experiência dos que envelheceram sob a luz dos refletores, desse instrumental cinematográfico que Glauber tanto condena. Mas, isso não é irremediável. O passar do tempo lhe dará tudo e mais alguma humanidade, que é coisa de muita importância na realização do cinema legítimo, desse cinema que tanto ele quanto eu próprio almejamos para o Brasil. Vamos esperar, por isso." (04 e 05/09/1964)



CLAP, CLAP, CLAP, CLAP, CLAP, CLAP!!!