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quinta-feira, 3 de abril de 2014

LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES (1982)


LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES (nos EUA, "The Mansion of the Living Dead") é uma grande traquinagem de Jess Franco: apesar do título, não existe nenhuma "mansão" (a história se passa num hotel e num velho mosteiro) e nem um único morto-vivo (as criaturas que aparecem lá pelas tantas estão mais para fantasmas do que para zumbis na sua definição clássica, e elas sequer se alimentam de carne humana).

Para compensar, e isso não está no título, tem cinco mulheres gostosas que passam praticamente o filme inteiro peladas e/ou atracadas em inúmeras cenas de sexo lésbico softcore. Ok, Jesus, com essa você está até perdoado pelo título enganoso!


Em seu retorno à Espanha, depois de quase uma década morando na França por causa da ditadura do General Francisco Franco, Jess rodou diversos filmes nas Ilhas Canárias, praticamente um após o outro: "Oásis dos Zumbis", "Macumba Sexual" (uma refilmagem disfarçada do seu clássico "Vampyros Lesbos", com a transexual Ajita Wilson no lugar da musa Soledad Miranda), e este aqui, entre outros que vieram depois.

Segundo o livro "Obsession: The Films of Jess Franco", "Macumba Sexual" e LA MANSIÓN... foram rodados ao mesmo tempo em 1981. O primeiro ficou pronto no mesmo ano, enquanto o outro foi concluído logo depois, em 1982. Já o IMDB data os dois filmes, respectivamente, como sendo de 1983 e 1985. É possível que estas sejam as datas que eles chegaram aos cinemas, mas, na dúvida, fico com a informação do livro "Obsession" (um letreiro de agradecimento que aparece no começo de LA MANSIÓN... também traz a data 1982).


Apesar de ter filmado um horror com mortos-vivos antes ("Oásis dos Zumbis"), Franco já manifestou publicamente sua antipatia pelas criaturas (que considerava "estúpidas") e até pelos clássicos do gênero dirigidos por George A. Romero (que considerava um diretor "primitivo"). Logo, não é surpresa que os mortos-vivos aqui sejam radicalmente diferentes daqueles com os quais o público estava acostumado no começo dos anos 1980.

Ao invés daqueles cadáveres redivivos, apodrecidos e cambaleantes que se multiplicavam às centenas nos filmes da época - graças às cópias italianas dos filmes de Romero -, os zumbis de LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES estão mais para os Cavaleiros Templários ressuscitados da clássica série dos Mortos Cegos, dirigida pelo espanhol Amando de Ossório na década de 70.


Portanto, o que temos aqui não são exatamente mortos-vivos, como o título anuncia, mas monges fantasmagóricos representados em pelo menos três diferentes estilos: alguns são humanos "normais", outros têm usam uma máscara imóvel de caveira, e outros ainda uma maquiagem tão tosca representando "podridão" que mais parece que eles esfregaram pasta de dente no rosto!

Na entrevista que acompanha o DVD do filme, lançado nos EUA pela Severin, Franco inclusive confessou sua inspiração nos Mortos Cegos do compatriota Ossorio: "Gosto bastante do primeiro ("La Noche del Terror Ciego", 1972). As imagens, aquele trem à noite, com os mortos aparecendo, são muito criativas. Não se parece em nada com os outros filmes de mortos-vivos que eu vi".


LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES conta a história de quatro turistas alemãs safadinhas (garçonetes ou strippers, dependendo da fonte pesquisada), que viajam para as Ilhas Canárias em busca de férias inesquecíveis e de homens viris para satisfazerem seus desejos sexuais - embora também joguem no outro time e transem umas com as outras conforme a necessidade. Enfim, as típicas garotas liberais de uma época pré-Aids.

A mocinha Candy é interpretada por Lina Romay, esposa e musa de Jess. Como na época ela já tinha aparecido em dezenas de filmes do maridão, o casal resolveu criar um "disfarce" e um nome falso para a atriz, que, em algumas ocasiões, se fazia passar por "Candice Coster" (o nome foi depois abreviado para Candy), usando uma peruca chanel loira para mudar o visual (abaixo). Em tempos pré-internet e com poucas fontes de pesquisa, ainda mais de produções obscuras como essa, muita gente deve ter acreditado que se tratavam realmente de duas atrizes diferentes.


Já as amigas safadinhas são Mabel (Mabel Escaño), Lea (Mari Carmen Nieto, creditada como "Mamie Kaplan") e Caty (Elisa Vega, creditada como "Jasmina Bell"). Todas as três já haviam trabalhado com Franco antes ou depois, em diversos outros filmes.

Quando as quatro garotas com fogo no rabo chegam ao luxuoso hotel para suas tão sonhadas férias, encontram o local completamente deserto - apesar de o suspeito gerente Carlo Savonarola (Antonio Mayans, outro colaborador habitual de Franco) garantir que todos os quartos estão ocupados e que só restaram dois, um para cada casal de amigas, em lados completamente opostos do edifício.


As inocentes moçoilas não desconfiam de nada. Afinal, imaginam elas, os outros hóspedes estão na praia curtindo suas férias. Entregam-se, então, aos prazeres da carne entre elas mesmas, no momento em que chegam aos seus quartos. Mas quando resolvem descer até a praia, encontram o local tão deserto quanto o hotel. Além do gerente Carlo e de um misterioso jardineiro (Albino Graziani), parece não haver viv'alma nas redondezas!

As confusões começam no momento em que as moças resolvem se separar para zanzar pelas redondezas. Perto do hotel, existe um velho mosteiro abandonado com uma trágica história do passado, que será explicada em determinado momento da trama. E seus habitantes não são exatamente humanos, mas sim fantasmagóricos monges que querem punir os "pecadores" justamente praticando o pecado - nesse caso, estuprando e matando suas vítimas!


Apesar de o título anunciar outro filme comum de zumbis devoradores de carne humana, e da inspiração confessa de Jess na série dos Mortos Cegos, LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES tem muito mais elementos em comum com - pasmem - "O Iluminado", de Stanley Kubrick.

É impossível não lembrar de uma espécie de Overlook tropical nas inúmeras cenas com as garotas perambulando sozinhas pelos corredores escuros e desertos do hotel, assim como as súbitas aparições de Carlo, do jardineiro e até de uma misteriosa mulher acorrentada em um dos quartos (interpretada por Eva León) lembram os fantasmas do clássico de Kubrick baseado em Stephen King!


Pode até ser que esta seja uma leitura muito ambiciosa do filme, já que, ao invés de Jack Nicholson com cara de psicopata, o que temos aqui são quatro garotas seminuas desfilando pelo hotel deserto. Mas é possível que Jess tenha se inspirado inconscientemente em "O Iluminado" na hora de escrever o roteiro - embora o hotel em questão seja menos assombrado que o velho mosteiro vizinho.

Ele consegue até criar um climão depressivo de solidão e isolamento com as imagens daquele hotel "abandonado" à beira mar, numa paradisíaca paisagem ensolarada que torna o "vazio" do local ainda mais melancólico - o extremo oposto do Overloook, de "O Iluminado", que estava isolado por causa do inverno e das tempestades de neve! Nesse aspecto, a aparição das quatro moças espavitadas e cheias de vida, usando roupas coloridas ou nenhuma roupa, cria um curioso contraste com o cenário deserto.


Mas é bom não conjecturar muito nesse sentido, pois é possível que a ambientação no hotel vazio seja uma simples solução improvisada para contornar custos de produção (como a contratação de figurantes para interpretarem os demais hóspedes). Nunca há uma explicação satisfatória para o fato de o local estar deserto, e, no fim, o espectador também nem se preocupa com isso.

Acontece que esta é uma daquelas produções tão baratas que o velho Franco teve que fazer praticamente tudo para economizar. Embora os créditos iniciais apresentem diversos nomes, como se a equipe técnica fosse bem variada, a maioria deles é o próprio Jess usando pseudônimos diferentes: ele assinou a direção de fotografia como "Joan Almirall" e repetiu a velha piadinha do roteiro baseado em livro de "David Kuhne", autor inexistente que aparece nos créditos desde os seus primeiros filmes! Franco assinou ainda o roteiro e a edição, e, se bobear, também serviu a marmita nos intervalos para almoço!

(Algumas fontes informam que ele também fez a trilha sonora com o pseudônimo "Pablo Villa", embora este nome falso também seja usado pelo músico francês Daniel J. White - que, segundo o livro "Obsession", foi o verdadeiro compositor aqui.)


LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES foi produzido num momento interessante, em que a Espanha já vivia um gradual processo de reabertura depois da morte do ditador General Franco (em 1975). Se antes era proibido mostrar um simples peitinho de fora nos filmes espanhóis, agora os diretores já podiam escancarar tudo - e o espectador espanhol inclusive esperava por isso para "tirar o atraso"! Algo não muito diferente da época pós-Ditadura aqui no Brasil, também no começo da década de 1980.

Isso justifica a quantidade de mulher pelada e putaria no filme. Se essas cenas fossem estirpadas por um censor rancoroso, o longa-metragem de 97 minutos seria reduzido a um curta com no máximo 15, pois todo o restante do tempo é ocupado por imagens das garotas peladas ou se comendo (ou sendo comidas)!


Inclusive fica bem claro, desde o começo, que a trama não se passa num universo real e crível, mas sim no mirabolante universo "Franquiano" de história em quadrinhos de sacanagem, em que todo mundo se insinua e transa com todo mundo, e as garotas circulam peladonas sem a menor inibição, mesmo quando é para checar sons estranhos nos corredores do hotel (caso encontrem algum desconhecido, elas conversam normalmente, sem se preocupar em cobrir a nudez!).

Tem até uma cena engraçadíssima em que Candy, a personagem de Lina, sai do seu quarto e fica desfilando pelo hotel completamente nua, "vestindo" apenas um par de sapatos de salto agulha, completamente despreocupada com a possibilidade de alguém aparecer e flagrá-la daquele jeito (imagens abaixo)!

O calçado fetichista, aliás, é de uso obrigatório por todas as garotas do filme (imagino que não tenha sido muito confortável para as atrizes), mesmo quando elas vão à praia de biquíni ou saem para passear com minúsculos shortinhos enfiados na bunda!


As cenas de sexo não são explícitas (embora mostrem mais que o suficiente, sem deixar nadinha para a imaginação do espectador), porém em alguns momentos quase chegam lá. E o roteiro tosco de Franco tem um climão geral de filme pornô, com situações forçadas e diálogos simplesmente inacreditáveis para conduzir às trepadas entre os personagens.

Por exemplo: quando Candy e uma amiga decidem dormir juntas, preocupadas que estão com o desaparecimento das outras duas, não demora muito para esquecerem do medo e caírem de boca uma na outra. "Se eu não transar, não consigo dormir", justifica Candy. Depois de alguns momentos de "lambeção", ela interrompe a sessão de sexo oral para tirar um pêlo pubiano que ficou na sua língua, e a parceira sugere: "Assopre e faça um desejo, pode dar sorte!".


Embora não esteja entre os trabalhos mais memoráveis de Jess, e perca feio na comparação com suas grandes obras dos anos 1960-70, LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES é razoavelmente divertido e eficiente, desde que - e isso deve ser ressaltado - o espectador embarque no espírito da coisa!

Quem espera um filme de zumbis tradicional vai quebrar a cara, já que eles fazem apenas participação especial. Na maior parte do filme, inclusive, parece que a maior ameaça à integridade física das garotas é o misterioso gerente Carlo, que faz as vezes de um Norman Bates mais safadinho.


Quem espera um filme de horror tradicional também vai quebrar a cara, pois Franco está mais preocupado com a putaria do que com a parte "assustadora" da história, que é bem desleixada (tem até refletor aparecendo no quadro!). A narrativa bipolar começa em clima de comédia erótica, tipo uma pornochanchada brasileira, descambando para o "horror" apenas lá pelos 45 ou 50 minutos (mais ou menos como Eli Roth faria, duas décadas depois, em "Hostel", para citar um exemplo contemporâneo).

Mas é claro que, quando falo em "horror", estou sendo bem generoso, pois não há violência nem sustos, e a tensão é mantida num nível mínimo. Os efeitos de maquiagem também são mambembes e improvisados: os monges com cara de caveira são figurantes usando máscaras de plástico das mais vagabundas, daquelas que você compra na 25 de Março em época de Halloween - o completo oposto dos maravilhosos Templários Zumbis dos filmes de Amando de Ossorio!


Tudo considerado, passe longe de LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES principalmente se a sua ideia de diversão não envolve uma overdose de cenas com mulheres nuas e/ou se comendo, pois são mais raros os momentos em que as atrizes estão VESTIDAS.

A personagem de Eva León fica pelada o filme todo, e confesso que eu até estranhava quando Lina Romay aparecia com alguma roupa, de tanto que ela se pela ao longo dos noventa e poucos minutos!


Vendo a entrevista com o diretor no DVD da Severin, percebe-se que os monges fantasmagóricos estão na trama não apenas para justificar minimamente o título enganoso, mas também como um comentário crítico de Franco sobre a Inquisição Espanhola - afinal, os amaldiçoados religiosos buscam a punição dos "pecadores" cometendo atos tão ou mais horríveis do que aqueles que tentam combater!

Mas é uma leitura muito simplória para se tirar da meia dúzia de monges com máscara de carnaval que aparecem estuprando e matando garotas peladonas em LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES. O negócio é deixar de lado qualquer pretensão e entrar no clima de porra-louquice da coisa toda.


Assim, este não é o filme que eu indicaria para quem está começando a conhecer a obra de Jess Franco e quer entender porque o homem é tão cultuado. Fãs e conhecedores do trabalho do diretor já estão vacinados para vários dos elementos que aparecem aqui, como o ritmo lento e a ênfase no sexo e na nudez.

Mas os marinheiros de primeira viagem podem não curtir a proposta. A não ser que você encare de cabeça aberta e sabendo de antemão que não verá apenas mais um filme de zumbis como as outras dezenas (ou centenas) que já viu.

Pense numa mistura de "O Iluminado" com "La Noche del Terror Ciego", estrelada por lésbicas que raramente aparecem com roupas, e divirta-se - se puder.



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La Mansión de los Muertos Vivientes /
The Mansion of the Living Dead (1982, Espanha)

Direção: Jess Franco
Elenco: Lina Romay (aka Candy Coster), Antonio Mayans
(aka Robert Foster), Mabel Escaño, Elisa Vega (aka Jasmina
Bell) e Mari Carmen Nieto (aka Mamie Kaplan).

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

BLACK DEMONS (1991)


Uma reclamação comum sobre o cinema fantástico brasileiro é o fato de geralmente "importarmos" os monstros estrangeiros, como vampiros e mortos-vivos estilo George Romero, ao invés de usar elementos do nosso riquíssimo folclore. Na verdade não é bem assim: já tivemos vários filmes mostrando caras, criaturas e superstições tipicamente nacionais, e alguns diretores contemporâneos estão investindo ainda mais nisso - tipo Dennison Ramalho (em seu curta "Amor Só de Mãe") e Rodrigo Aragão (com seus zumbis do mangue e chupa-cabras).

Mas, claro, ainda há muita coisa a se explorar nesse universo. Imagine, por exemplo, uma história sobre escravos negros que foram torturados e executados pelos seus feitores no século 19, em pleno Brasil Colônia sob o jugo português, e que nos dias atuais voltam à vida como zumbis para se vingar dos colonizadores. A ressurreição acontece através de um ritual de macumba realizado por um pai-de-santo num terreiro. E aí, não daria um belo filme de horror tupiniquim?


Bem, a má notícia é que este filme já existe. Foi feito no Brasil no começo dos anos 1990, misturando atores brasileiros e estrangeiros. A trama envolve justamente escravos-zumbis, uma velha fazenda do interior carioca e macumba. Só que ele não foi dirigido por um brasileiro, e sim por um italiano bem oportunista e cara-de-pau chamado Umberto Lenzi. Sim, aquele mesmo Lenzi que deu início ao ciclo italiano de produções sobre canibalismo, fez um punhado de policiais e filmes giallo bem legais, e foi o responsável por clássicos do cine-podreira como "Nightmare City" e "Cannibal Ferox".

Pois este mesmo Lenzi foi o visionário que enxergou potencial numa história sobre escravos negros zumbis, e não um cineasta, bem, brasileiro! BLACK DEMONS ("Demônios Negros") é o nome do filme em questão, rodado com uma pequena equipe meio italiana, meio brasileira (parece até sabor de pizza...) no interior do Rio de Janeiro, em 1991, quando a produção cinematográfica italiana já estava muito, mas muito mal das pernas. (Na mesma época, Lenzi também filmou no Brasil a tosquíssima aventura "Caçada ao Escorpião Dourado", aquela com Cecil Thiré como vilão!)


BLACK DEMONS sempre foi aquele filme que todo mundo conhece, mas pouca gente viu. Apesar da trama, do cenário e de parte da equipe serem brasileiros, ele nunca chegou a ganhar exibição em nossos cinemas, nem mesmo distribuição em vídeo, DVD, blu-ray ou qualquer formato doméstico existente - embora exista uma velha lenda urbana de que cópias piratas em vídeo tenham circulado pelas locadoras brasileiras lá pela década de 90.

Logo, sem distribução oficial, o filme de zumbis brasileiros de Umberto Lenzi só foi visto pelos próprios brasileiros graças à antiga emissora CNT/Gazeta, que reprisou-o nada mais nada menos de três vezes (!!!) entre outubro de 1993 e setembro de 1994, rebatizando-o com o nome genérico "Noite Maldita". As críticas mal-humoradas do velho Guia de TV do jornal Folha de São Paulo são uma atração por si só, conforme você pode ver abaixo. Anos depois, em 2002, a obra finalmente ganhou um DVD, lançado nos Estados Unidos pela Shriek Show, e assim ficou mais acessível, graças à internet e aos downloads.

Folha detonando o filme de Lenzi 3 vezes!

O caso é que embora a história seja bem interessante - ainda mais para nós, brasileiros, para quem o drama da escravidão ainda é relativamente recente -, o filme é bem ruinzinho e desperdiça qualquer potencial em situações forçadas, clichês e sustos fáceis.

Perdido em algum lugar entre a produção paupérrima e o elenco sem química, com quem confessadamente odiou trabalhar, Lenzi não pôde exercer plenamente o seu talento para cenas de horror e tensão, e o resultado é um "bom filme ruim", daqueles que você vê sem qualquer pretensão de levar a sério, e que pode até render umas boas gargalhadas caso você assista bêbado ou com os amigos - ou ambos. Porque sempre é engraçado ver atores americanos às voltas com ameaças brasileiras, como a macumba.


Lenzi veio filmar aqui no Brasil com as bênçãos do também italiano Michele Massimo Tarantini (creditado como "diretor de arte" de BLACK DEMONS, sob seu tradicional pseudônimo "Michael E. Lemick"). Tarantini chegou ao Brasil nos anos 80 e rodou alguns engraçadíssimos filmes de baixo orçamento por aqui, mesclando mão-de-obra italiana e brasileira. Os mais populares são "Fêmeas em Fuga" e o meu favorito, "Perdidos no Vale dos Dinossauros".

No final desta década, já estabelecido no Rio, o esperto Tarantini começou a fazer o meio-de-campo para que outros colegas italianos viessem filmar no país. No caso de Lenzi, ele também foi um dos responsáveis pelo já citado "Caça ao Escorpião Dourado". Há um milhão de histórias e fofocas sobre as aventuras brasileiras de Tarantini, mas isso renderia um post à parte, então vamos parar por aqui.


BLACK DEMONS já começa sem perder tempo, com os créditos rolando sobre as tradicionais imagens de cartão-postal do Rio de Janeiro, e apresentando o nosso trio de "heróis" estrangeiros: Jessica (a norte-americana Sonia Curtis), Kevin (o inglês Keith Van Hoven) e Dick (o norte-americano Joe Balogh, também dirigido por Lenzi em "A Passageira", e que é um verdadeiro clone do Kevin Bacon!). Os dois primeiros são namorados, e o último é o irmão mimado da moça.

Os gringos estão fazendo turismo de jipe pelo Brasil, mas Dick está aborrecido porque queria ver de perto os rituais de candomblé. Após uma discussão com a irmã e seu namorado, ele sai andando a esmo pelas ruas cariocas até chegar numa vila pobre, onde um grupo de crianças realiza um estranho ritual com tambores e máscaras (!!!).


Atraído pela molecada, Dick encontra um pai-de-santo cego que tem um misterioso amuleto no pescoço. Aí uma mulher (a atriz brasileira Cléa Simões) surge do nada e sai puxando papo com o turista, mas o diálogo não sai em português, e sim num inglês de sotaque carregadíssimo - como se todo mundo no país falasse inglês normalmente no dia-a-dia.

Dick enche o saco da mulher para ver de perto um trabalho de macumba. O diálogo em inglês é hilariante: Balogh, que é americano, fala o idioma fluentemente, mas a atriz que contracena com ele escorrega feio no sotaque. Além disso, palavras em português aparecem nitidamente em meio aos diálogos - e, neste caso, carregadas do sotaque de Balogh.

Ao pedir à mulher se o cego é um pai-de-santo, por exemplo, o ator pronuncia algo como: "He is a péi-de-sénto, right?". Já sua interlocutora enche as frases em inglês com termos brasileiros, e é muito engraçado ouvir sentenças tipo "Let Iemanjá guide you" ou "I will guide you to the terreiro". No fim, só para resumir a história, a mulher concorda em levar Dick até um terreiro escondido na floresta (!!!), para ver de perto um ritual que, supostamente, teria o poder de despertar os mortos!


Sem avisar os amigos, o jovem sai do hotel no meio da noite para ver de perto o tal ritual, que tem de tudo um pouco: o pai-de-santo cego sentado num canto, um mané que fica dançando e esfregando uma tocha bem na frente da câmera, uns mulatos batucando seus tambores, aquela cantoria típica ("Aêêê aêêêêê aêêêê") e uma mulata seminua saracoteando como se fosse abre-alas de alguma escola de samba.

Lenzi aparentemente não esqueceu dos seus tempos de assassino de animais em filmes como "Cannibal Ferox", por isso emenda uma cena real em que uma galinha preta tem a cabeça decepada, só para a dançarina em êxtase beber o sangue que escorre do pescoço da ave. Dick, fascinado, usa um gravador de áudio para registrar todo o ritual. No fim, ganha o amuleto usado pelo pai-de-santo, bebe algo alucinógeno e sai de órbita. Acorda, no dia seguinte, em seu quarto de hotel.


É hora de seguir viagem, e no momento seguinte o trio de turistas aparece a bordo de seu jipe cruzando uma selva (talvez para alimentar aquela ideia equivocada de que, no Brasil, é tudo Floresta Amazônica). O veículo pifa no meio do caminho, mas eles dão sorte de encontrar um casal de brasileiros, José Barros (o ator brasileiro Felipe Murray, usando o pseudônimo "Phillip Murray") e Sonia (a atriz brasileira Juliana Teixeira).

Novamente, apesar de os brasileiros não saberem que o trio em apuros é formado por estrangeiros, eles já aparecem falando inglês carregado de sotaque! José oferece ajuda aos gringos, dizendo que vive em uma casa de fazenda a alguns quilômetros dali, e convida os desafortunados turistas para passarem a noite lá.

Na chegada, eles conhecem a empregada Maria (a atriz brasileira Maria Alves). Como toda doméstica-macumbeira-supersticiosa-cinematográfica brasileira, a moça logo fareja algo demoníaco em um dos visitantes - Dick, que aparentemente foi possuído por algum orixá (!!!) durante a cerimônia no terreiro.


A noite cai e o grupo se retira para seus quartos. Mas enquanto todos dormem - e Maria realiza uns rituais de purificação em seu quarto -, o possuído Dick sai da casa e caminha até um cemitério próximo à fazenda, onde existem algumas covas do século 19, e até um crânio com um dos olhos intactos, sabe-se lá como!

No meio deste cemitério, o gringo liga o gravador e deixa tocar aquela ladainha que gravou no dia da cerimônia de candomblé. Bingo: o encantamento dos macumbeiros incendeia as tumbas e traz os mortos enterrados no cemitério de volta à vida!


No caso, os tais mortos são seis escravos negros que foram enterrados ainda com os grilhões e correntes amarrados aos pulsos e tornozelos (até parece que o feitor não iria tirá-los na hora de sepultar...). E não sei como é que os cadáveres resistiram à decomposição estando sepultados em covas rasas durante um século, mas seus corpos continuam inteirinhos, apresentando apenas sinais de podridão no rosto (claro, senão não seriam zumbis!).

Para completar a balbúrdia, cada um dos mortos-vivos levanta do seu caixão portando uma arma branca: um segura um gancho, outro um machado, outro uma foice, outro um facão, e por aí vai. Quer dizer, os sujeitos foram sepultados com as armas, já pensando numa possível vingança futura! Coisa de louco! Parece até o que faziam com os faraós do Antigo Egito!


A primeira vítima dos "demônio negros" é a pobre Sonia. Ela escuta um barulho vindo do lado de fora da fazenda e vai checar - vestindo apenas blusa e calcinha. É então cercada pelos zumbis, e tem um dos olhos extirpado com o auxílio do gancho metálico - em uma cena bem sangrenta. Mas a reação da atriz é bem engraçada: com o olho para fora da órbita, o que deve doer pra cacete, ela apenas fica repetindo "Please, no!", ao invés de berrar alucinadamente. E claro que ninguém na fazenda escuta os gritos da pobre moça...

A partir de então, a história é aquela de sempre, mas contada de forma bem burocrática. Apesar de serem mortos-vivos, os tais "demônios negros" ficam sumindo entre uma morte e outra, ao invés de já atacar todo mundo de uma vez - preferem pegar cada uma das vítimas de surpresa, tipo o Jason, mas não tem lógica alguma, pois onde seis mortos-vivos se esconderiam nos intervalos entre os assassinatos?


Aí José surge com a tradicional "história do passado para justificar a trama", explicando que, no século 19, quando a fazenda pertencia a um rico proprietário de terras, seis escravos que tentaram fugir passaram por longas torturas antes de ser enforcados, mas juraram voltar para se vingar. Por isso, o sexteto agora voltou para acertar o placar, e precisam matar seis pessoas para fechar a fatura e poder descansar em paz.

Não que a coisa tenha muita lógica, considerando que eles deviam ter voltado para se vingar do fazendeiro que os matou 100 anos atrás, e não dos pobres inocentes que nada têm a ver com a história - incluindo três gringos que só estão ali por pura casualidade. Aliás, é até engraçado que a tal vingança anunciada um século antes só tenha acontecido um século depois porque um bocó ianque fez a burrada de gravar um ritual de macumba e reproduzi-lo no tal cemitério; caso contrário, a vingança dos seis escravos ficaria só na ameaça!


BLACK DEMONS é uma salada de frutas que mistura elementos de vários outros filmes. Por exemplo: assim como os mortos cegos da famosa série espanhola de Amando de Ossorio, os escravos aqui também foram cegados pelo feitor (acima), mas isso acaba não fazendo nenhuma diferença porque não representa qualquer dificuldade para que os desmortos localizem e ataquem suas vítimas!

O título em inglês nunca se justifica (por que chamar os vilões de demônios se eles são, claramente, zumbis?), e nem sei se a obra pode ser classificada rigorosamente como "filme de zumbis", já que é mais uma trama de vingança, com mortos-vivos que têm alvos bem específicos e não matam qualquer ser vivo em busca de comida, como acontece nos filmes de George A. Romero e suas imitações italianas.


Curiosamente, na Itália a obra foi lançada com outro título, "Demoni 3" (como você deve ter visto no pôster no início da postagem), tentando forçar uma conexão inexistente entre uma história independente como esta e os bem-sucedidos "Demons" 1 e 2, dirigidos por Lamberto Bava em 1985 e 1986. (Veja abaixo os créditos da versão internacional e da versão italiana, para comprovar a picaretagem.)

Numa entrevista, o próprio Lenzi queixou-se do uso do título: "'Demoni 3'? Isso é uma estupidez, um absurdo! Eu nunca vi os filmes de Bava! A produção acabou se chamando 'Demoni 3' por causa do produtor [Giuseppe Gargiulo], que queria faturar em cima do título. Mas a história, claramente, não tem nada a ver com os filmes de Lamberto Bava".

Créditos iniciais da versão internacional

Créditos iniciais da versão italiana

No fim, o melhor é encarar BLACK DEMONS como comédia involuntária. O filme tem vários momentos de rolar de rir, como o fato de as vítimas serem mortas mesmo quando é virtualmente impossível ser apanhado pelos zumbis. Nunca vou conseguir entender como é que as criaturas sempre conseguem atacar suas vítimas de surpresa se as correntes em seus tornozelos arrastam pelo chão, fazendo o maior barulhão. Também queria saber qual deles carrega a máquina de gelo-seco, considerando que cada aparição dos mortos-vivos é precedida por uma névoa espessa!

Já o roteiro de Olga Pehar coloca alguns diálogos engraçadíssimos na boca dos seus personagens. Tipo quando Sonia solta um comentário depreciativo ao nosso pobre país: "Não se assustem se a água tiver cara de chá. Aqui é o Brasil, não Nova York!". Ou o duplo sentido involuntário dos diálogos envolvendo o pobre Dick, já que "dick", nos EUA, também é uma famosa gíria para o órgão sexual masculino. Nesse sentido, é engraçadíssimo quando Kevin larga um "I can't find Dick". Bem, se ele não consegue achar, eu é que não vou ajudá-lo a procurar...


Porém o mais engraçado do filme é o fato de o inglês ter se transformado na língua oficial do Brasil - e como dói ouvir a maioria dos atores brasileiros falando um inglês quase ininteligível de tanto sotaque. Por exemplo, o diálogo da empregada Maria, "There isn't enough sheets for them all", sai como "Dérisen enáf shits for demól". Mais adiante, "Now I see it all clearly" vira "Nau ai si étol clirli". Por fim, "What's happened to her?" soa como "Uats répen tchu ãr?".

E mais: que o casal brasileiro José e Sonia fale em inglês com os turistas gringos, tudo bem; mas qual a real necessidade de eles se comunicarem com a empregada da fazenda também em inglês? Pois é...


Apesar de ter sido filmado aqui, e de contar uma história tipicamente brasileira, BLACK DEMONS ironicamente é uma produção bem obscura em nosso país. E não só porque não teve distribuição "oficial", mas também porque faltam fontes sobre a produção (não saiu nada nos jornais e revistas de cinema da época, apesar de um filme de zumbis rodado no Brasil parecer um assuto bem curioso, pelo menos para mim!).

Para tentar saber mais sobre os bastidores, entrei em contato com uma das atrizes principais do elenco brasileiro, a baiana radicada no Rio de Janeiro Juliana Teixeira (é ela na foto abaixo), que há anos abandonou a carreira de vítima em filmes baratos de horror e hoje pode ser vista principalmente em peças de teatro - embora também já tenha feito algumas novelas da Globo.


Pelo telefone, a atriz primeiro estranhou minha curiosidade por uma produção obscura como BLACK DEMONS, mas logo começou a falar animadamente sobre o assunto. Ela lembrou que, na época, participou de várias produções estrangeiras filmadas no Brasil por causa do seu inglês fluente. Além do trashão do Lenzi, ela pode ser vista em obras tão díspares quanto o norte-americano "O Quinto Macaco" (1990, de Éric Rochat) e os italianos "Lambada" (1990, de Giandomenico Curi) e "Butterfly" (uma minissérie de TV filmada no Rio em 1995, e dirigida por Tonino Cervi).

"Me indicaram para um teste, por saber falar inglês, e passei. Mas confesso que, no começo, fiquei com medo por ser um filme de terror e de zumbis, eu realmente não sabia o que esperar. E só fui ver o filme pronto recentemente, faz uns cinco anos. As pessoas falavam muito dele, e soube que passou na televisão, mas eu nunca tinha visto", lembrou ela.


Sobre o filme, Juliana é sincera: "Achei muito tosco, é uma produção bem classe C". As filmagens, contou ela, aconteceram em Vassouras, uma pequena cidade a 120 km e cerca de duas horas do Rio de Janeiro. "Passamos três semanas ali. Tinha uma equipe reduzida formada por alguns italianos e alguns brasileiros. Lembro que o maquiador [de efeitos] era muito bom e veio da Itália".

Ela provavelmente está se referindo ao responsável por arrancar seu olho em cena (abaixo), o italiano Franco Cosagni, que trabalhou em vários filmes de Dario Argento - entre eles, "Terror na Ópera" e "Síndrome Mortal". Mas a equipe de efeitos especiais também contou com um mestre brasileiro na área, Sérgio Farjala, creditado como "Serge Farjala" aqui.


Juliana continua lembrando dos bastidores de BLACK DEMONS: "O chefe de produção se chamava Massimo, e era muito legal [ela se refere a Michele Massimo Tarantini]. Mas os outros produtores italianos eram bem grosseiros, bem difíceis de lidar. A equipe brasileira era a que fazia o trabalho pesado, e os figurantes eram todos daqui, inclusive os zumbis. Foi um trabalho árduo, mas achei bem divertido. E o elenco era ótimo, eu já conhecia o Felipe Murray e adorei a Sonia e os dois atores, o inglês [Keith] e o americano [Joe]".

A atriz brasileira só não guarda boas recordações do diretor Lenzi: "Era um homem difícil, que não falava muito com a gente e não dava muita abertura para que falássemos com ele. O pessoal do elenco brasileiro nunca sugeria nada por causa disso. Era muito mal-humorado, sempre bem seco. E eu fiquei magoada porque ele falou muito mal de nós numa entrevista, como se a culpa pelo resultado do filme fosse apenas dos atores brasileiros".


A entrevista em questão está nos extras do DVD importado de BLACK DEMONS, em que Lenzi declarou o seguinte: "Eu preciso admitir que o filme não ficou muito bom. Não fiquei completamente satisfeito com ele, porque o elenco era bem fraco. Somente o protagonista, Joe Balogh, era um ótimo ator, mas neste filme ele não atuou tão bem porque nós filmamos no Brasil, em condições muito difíceis, nessa fazenda onde só era possível chegar de jipe, onde não havia estradas e passávamos o dia muito longe da cidade. E os outros atores do elenco são todos do Brasil, mas eram atores medíocres, somente a atriz que interpretava a feiticeira era talentosa".

(Eu, particularmente, não acho que os atores brasileiros se saíram tão mal, mas a careta com direito a língua de fora que Felipe Murray faz ao tomar uma punhalada do pescoço é muito engraçada!)


Mas, justiça seja feita, o diretor também sentou as patas na pobre atriz norte-americana Sonia Curtis (foto abaixo) nessa mesma entrevista: "Ela não foi a atriz escolhida para o papel. Eu tinha escolhido uma outra atriz, muito bonita, de Los Angeles. Só que, no último minuto, ela desistiu do projeto, e quando o avião dos Estados Unidos chegou e fui recepcionar minha atriz, encontrei uma outra diferente da que eu esperava!".

Na opinião do italiano, Sonia era uma péssima atriz, e ele só não foi atrás de uma substituta porque não poderia parar a produção por vários dias. "Além de ser uma péssima atriz, ainda era baixinha e nem um pouco atraente", detonou Lenzi, que foi bastante deselegante (como diria a Sandra Annenberg) ao citar um fato ocorrido nos bastidores, quando a americana tomou leite recém-ordenhado na fazenda e ficou doente; nos dias posteriores, segundo o diretor, todos começaram a pensar que ela estava com Aids!!!


O segundo principal ator brasileiro do longa, Felipe Murray, confirmou o clima difícil no set, em contato feito pelo Facebook depois de ler esta resenha: "Não considero que fiz um bom trabalho, mas acho que grande parte foi devido ao péssimo clima com o diretor. Ficamos travados, sem liberdade e criatividade. Aquela minha cara de nojo com a língua para fora - hilária! - ao levar a facada no pescoço reflete o que estávamos sentindo", justificou.

Segundo ele, a coisa foi complicada desde o início: "Fiz o teste e fui informado que eu tinha passado. O cachê já estava combinado desde antes do teste, mas no dia de assinar o contrato chamaram o outro ator que tinha ficado para a final e colocaram na sala de espera comigo. Na hora que entrei, ficaram me pressionando a aceitar um cachê menor ou iriam fechar com o outro ator! Isso é de um profundo mau caráter, e foi tramoia do Massimo, que era o produtor. Acabei fechando porque estava em um intervalo entre um trabalho e uma peça de teatro, e teria este mês disponível, mas ficou aquele clima de tapeação no ar".


Meu xará - esse rapaz prestes a ser pego por trás na foto acima - também confirmou que não foi fácil trabalhar com o diretor: "O que a Juliana falou foi o que aconteceu, mas ela foi gentil ou não quis falar que o Lenzi era mesmo muito grosso! Ele só vivia aos gritos com a sua equipe e com os brasileiros, não dava espaço nenhum para nada, e o clima no set ficou insustentável. Todos se sentiam presos para criar e foi todo mundo se fechando. A Sonia sofreu muito com ele, e eu também. Você já deve ter reparado, pela maneira que ele fala dela ou de várias outras coisas, que ele é muito deselegante".

A situação chegou num ponto tão crítico que, segundo Murray, os atores estrangeiros acabaram tomando as dores da equipe brasileira: "O Joe e o Keith eram bem legais, e teve um dia em que o Lenzi estava atacado, berrando um monte de grosserias, e os dois foram para o Massimo e falaram que não iriam filmar mais nada enquanto o Lenzi não falasse direito comigo e com os outros brasileiros. Foi a gota d'água para mais um dos ataques fenomenais e aos gritos do Lenzi. O clima era péssimo, mas deu a hora do almoço, os ânimos foram se acalmando, o Massimo conversou com ele e ele ficou mais calmo e tentou explicar de uma maneira mais entendível o que queria. Mas era muito perturbado".


Pelo menos a pancadaria no set serviu para fortalecer a amizade entre os brasileiros e os atores gringos. Segundo Felipe, "na mesma noite, depois da 'greve' dos atores americanos, como o dia seguinte era folga, fomos os cinco que falavam inglês bem para passear na cidade. Fomos em alguns bares, jogamos sinuca e acabamos voltando para o hotel todos bêbados. Foi a maior farra, e uma válvula de escape para tanta pressão. Acabei ficando muito amigo do Joe e trocamos correspondências por alguns anos (naquela época não havia internet). Ele morava em Los Angeles, e quando fui morar lá, em 1998, procurei por ele, mas sem sucesso".

A exemplo de Juliana, Felipe Murray também abandonou a vida de vítima em filmes classe C: ele parou de atuar em 1995, passou por diferentes empregos no Brasil e no exterior, e há alguns anos preside uma ONG de voluntariado internacional, que recebe estrangeiros para trabalhar como voluntários em projetos sociais no Brasil. Para finalizar, ele defendeu o seu inglês: "Apesar de você ter criticado a fluência dos brasileiros, vale citar que eu e Juliana falamos bem. Eu aprendi quando criança em casa - meu pai era inglês, meu sobrenome é Murray -, e fiquei totalmente fluente quando fui estudar teatro em NYC com a Juliana, de 1986 a 87".


O mais curioso é que o mesmo Lenzi que disse não gostar do filme (nos extras do DVD importado) mais tarde declarou que considera BLACK DEMONS a sua obra-prima (!!!). Isso aconteceu numa outra entrevista, publicada nas páginas do livro "Spaghetti Nightmares", de Luca Palmerini e Gaetano Mistretta, em atitude digna de transtorno bipolar!

Pior: nas páginas do mesmo livro, o diretor alega que o ritual de macumba visto no filme é "totalmente real", numa daquelas declarações fantasiosas típicas do nosso querido José Mojica Marins. "
Na verdade, esta parte da filmagem foi muito perigosa e coisas esquisitas começaram a acontecer no set", declarou o fanfarrão. (Obrigado pela transcrição desse impagável trecho do livro, Carlos Primati!)


Mágoas, fofocas, críticas e abobrinhas à parte, é preciso destacar que o filme pelo menos captura com fidelidade, em vários momentos, alguns costumes e tradições bem brasileiras. Quando Maria se desespera com vultos fantasmagóricos cercando a fazenda, por exemplo, ela se agarra numa imagem de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil - um detalhe simples, porém eficaz para o espectador brasileiro.

A mesma Maria, mais adiante, faz a popular "figa" com os dedos para tentar afastar os maus espíritos, em outro costume bem tradicional da nossa gente. E as cenas filmadas na favela, no início do filme, mostram um Brasil pobre sem maquiagem, com atores que, segundo Lenzi, foram recrutados na rua mesmo, poucas horas antes das gravações!


O resultado, entretanto, está anos-luz distante do satisfatório, e só pode ser visto ou como comédia involuntária, ou pela nobre tentativa de se fazer um horror com história "100% nacional" - ainda que uma equipe italiana tenha vindo até o Brasil para fazer algo que deveria ter sido uma iniciativa dos nossos realizadores!

Na mesma entrevista dos extras do DVD importado, Lenzi dá uma de suas tradicionais viajadas ao tentar buscar uma "mensagem sociológica" em BLACK DEMONS: "É o conflito entre a chamada civilização dos homens brancos e os nativos, ou os negros que foram capturados na África e trazidos para a América como escravos", delira o cineasta.


Segundo ele, "esse elemento não está claramente inserido no roteiro, mas serve como background. Os escravos fugiram e foram mortos, torturados, pelos donos da fazenda, que eram brancos de origem portuguesa. E então essa vingança, que acontece um ou dois séculos depois, pode ser considerada a vingança do terceiro mundo contra o mundo civilizado dos brancos".

Opa, mas peraí: dos três mortos pelos zumbis, apenas um é legítimo representante do "Primeiro Mundo", os outros são todos pobres cidadãos terceiro-mundistas! Pior: os "opressores" norte-americanos escapam praticamente ilesos do conflito!


Por tudo isso, eu continuo esperando um bom filme de horror envolvendo todas essas superstições brasileiras, seja a macumba, sejam os zumbis de escravos negros voltando para dar o troco nos descendentes dos seus feitores.

Mas não só meia dúzia, como vimos aqui. Afinal, se o cadáver de todo escravo africano que foi explorado, torturado e morto por aqui no Brasil Colônia voltasse à vida, teríamos um apocalipse zumbi tupiniquim digno do "Guerra Mundial Z"!

Quanto a BLACK DEMONS... Bem, esse obviamente não conta, já que de terror tem muito pouco e hoje só serve para tirar onda. O tema certamente merece um outro olhar, quem sabe de um brasileiro desta vez. E de preferência com atores locais falando em português, para ninguém provocar risadas involuntárias ao derrapar no inglês!


Trailer de BLACK DEMONS



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Black Demons (1991, Itália)
Direção: Umberto Lenzi
Elenco: Keith Van Hoven, Joe Balogh, Sonia Curtis,
Felipe Murray, Juliana Teixeira, Maria Alves, 

Cléa Simões e Rita Monteiro.