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domingo, 22 de dezembro de 2013

Entrevista com Dedé Santana - Parte 1


Há alguns meses, quando eu soube que o ex-Trapalhão Dedé Santana estaria de passagem pela minha cidade-natal como atração principal do Circo Mix, decidi que não perderia a chance de entrevistar o meu segundo preferido do quarteto (depois, claro, do Mussum).

Nascido em 1936, descendente de ciganos e filho de artistas de circo, Dedé sempre viveu nos picadeiros (consta que apareceu em seu primeiro espetáculo circense quando tinha apenas alguns meses de vida!). Não demorou para ele levar esse humor circense para a TV e para o cinema, primeiro com a dupla humorística Maloca e Bonitão (com o falecido irmão Dino Santana), e depois na famosa parceria com Renato Aragão que daria origem aos imortais Trapalhões.

Várias entrevistas com Dedé Santana já foram feitas, mas eu queria abordar um aspecto que geralmente meus colegas jornalistas deixam de fora: o diretor de cinema Dedé Santana. Porque hoje pouca gente lembra, mas ele assinou quatro filmes da fase de ouro do quarteto ("Os Trapalhões e o Mágico de Oróz", "A Filha dos Trapalhões", "Os Trapalhões no Reino da Fantasia" e "Os Trapalhões no Rabo do Cometa"), mais um quinto sem Renato, "Atrapalhando a Suate", dos tempos em que os Trapalhões estavam separados.


Inicialmente, o contato com o pessoal do circo em que ele iria se apresentar foi complicado, já que dias e horários para a entrevista eram marcados e desmarcados (depois descobri que o astro teve queda de pressão num dos dias e precisou passar algumas horas no hospital em observação). Mas não desisti: numa das noites em que o circo se apresentaria, fui acompanhar o show normalmente como espectador, e, ao final, quando Dedé distribuía autógrafos, aproveitei para me infiltrar entre os vários fãs e o abordei:

"Sr. Manfried Sant'Anna?" - este é o nome de batismo do Trapalhão.

Ao ouvir seu nome completo, Dedé fez uma daquelas suas típicas caretas de Trapalhão e respondeu fingindo medo: "Rapaz, para me chamar por este nome, só pode ser encrenca!". Estava quebrado o gelo. Mesmo sendo um dos artistas mais populares do Brasil, que teve sua cara associada a programas de TV, filmes, discos, camisetas, produtos diversos e até revistas em quadrinhos, Dedé Santana é uma pessoa simpaticíssima e humilde!

Ao mestre, com carinho: presenteando Dedé com o DVD de um dos meus filmes, "Canibais & Solidão" (que presente de grego!)

Comentei sobre minha intenção de entrevistá-lo e ele ficou animadíssimo; especialmente quando disse que não iria lhe questionar sobre Renato Aragão ou Os Trapalhões, como já é costume entre os colegas de profissão. Não demorou para Dedé revelar-se um verdadeiro apaixonado pelo trabalho atrás das câmeras, que inclusive ficou feliz por ser entrevistado como cineasta, e não como ex-Trapalhão pela milionésima vez.

Infelizmente, Dedé Santana continua um astro com agenda cheia. Eu só tive direito a uns 40 minutos com ele, no intervalo entre uma apresentação e outra. O resultado o leitor acompanha a seguir. Percebam que usei "Parte 1" no título dessa postagem, justamente porque essa entrevista não foi concluída - ela foi interrompida quando estava mais ou menos na metade!

Mas Dedé percebeu meu interesse e garantiu que no futuro me concederia mais tempo para uma possível segunda parte. Enquanto isso, vejamos o que o carismático Manfried Sant'Anna comentou sobre amazonas alemãs, macacos, as lições que aprendeu com Ary Fernandes, J.B. Tanko e Adriano Stuart, a influência dos musicais de Hollywood nos seus filmes, e muito mais...



FILMES PARA DOIDOS: Dedé, você estreou como diretor no "Atrapalhando a Suate"...
DEDÉ SANTANA (interrompendo): Na realidade, o primeiro filme que eu fiz se chamava "Os Desempregados", em preto-e-branco e tal. Esse foi o primeiro que escrevi e dirigi, e também é conhecido como "Os Irmãos Sem Coragem". Naquela época eu não podia colocar meu nome como diretor porque não tinha carteira.

FPD: Quem assinou a direção foi...?
DS: Foi o [Antonio Bonacin] Thomé, que era só o diretor de fotografia. Mas como eu não podia assinar como diretor, eu falei: "Olha, assina você, Thomé. Eu assino só como roteirista". Isso foi em mil novecentos e antigamente, eu nem lembro o ano mais! [Nota: o filme foi lançado em 1972]

FPD: E era um filme do Maloca e Bonitão.
DS: Isso, e quem fazia o Bonitão era meu irmão. Com esses personagens nós fizemos... Deixa eu ver... Esse "Os Desempregados", "Deu a Louca no Cangaço", "2000 Anos de Confusão" (ambos de 1969)...

FPD: E uma participação no "Se Meu Dólar Falasse" (1970), lembra?
DS: Isso, isso. Eu fazia várias participações nessa época, fiz até para filme estrangeiro.

FPD: O alemão aquele, "Lana, Rainha das Amazonas" (1964)!
DS (arregalando os olhos): Você já viu "Lana, Rainha das Amazonas"?

FPD: Sim pô, eu gosto muito desse filme! (risos)
DS: Por sinal, consegui uma cópia dele só agora, eu não tinha. Aí fui assistir e pensei comigo mesmo: "Belo canastrão esse cara!". (risos)


FPD: Já que estamos falando nele, o que você acha de "Lana, Rainha das Amazonas"?
DS: Rapaz, para a época ele foi muito bem. Na Alemanha, todo filme que tratava de amazonas e essas coisas fazia sucesso, tanto é que esse filme estourou lá fora. Na Alemanha, fiquei sabendo que chegou a ter filas na porta dos cinemas para ver "Lana, Rainha das Amazonas"! (risos) Inclusive aquela menina... A loira... Uns dois anos depois ela trocou de nome e ficou muito famosa. Ela trocou para Maria Schell, e, pode ver, fez até filmes famosos. Mas naquela época ela ainda não era a Maria Schell. (risos)

[Nota: Dedé na verdade fez confusão, já que a atriz de "Lana, Rainha das Amazonas", chamada Catherine Schell, não tem nada a ver com Maria Schell, que é uma outra atriz. Em todo caso, Catherine também apareceu em filmes famosos, como "O Prisioneiro de Zenda" e "007 - A Serviço Secreto de Sua Majestade".]

FPD: Também nesse filme o vilão é o Átila Iorio, que teve presença marcante na sua vida, já que foi seu sogro durante muitos anos e você até batizou um filho com o nome dele (Attila Iorio Santana, mais conhecido como Dedé Santana Jr.).
DS: Isso aí. Pô, o cara sabe tudo de mim! (risos) Eu não vou te dar meu livro! Você já sabe tudo, por que quer o meu livro?

Átila Iorio (esq.) e um jovem Dedé em "Lana, Rainha das Amazonas"

[Nesse momento, Dedé pega uma sacola que estava do lado do sofá e tira dois exemplares do livro "Eu e Meus Amigos Trapalhões", que escreveu sobre sua carreira e vida religiosa, e deu de presente para mim e para meu irmão Rodrigo, que estava presente filmando a entrevista.]

FPD: Eu nem sabia que existia esse livro. É novo?
DS: Na verdade saiu agora, eu fiz ele mais para venda interna. Mas fala de todos os filmes, dos meus grandes amigos, tipo... Olha aqui... (mostra fotografia de Carlos Alberto de Nóbrega) O grande Carlos Alberto... E olha essa aqui... (pára numa foto dele com Renato Aragão, ambos jovens nos anos 1960) Olha só como era Dedé e Didi no começo! O Dedé tinha o corpo que o Didi tem hoje, e o Didi era ainda mais magro!

FPD: E o Didi tinha cabelo...
DS (apontando para a foto): Pô, olha só que cabelão! (passa para outra foto com Renato e Roberto Guilherme, o Sargento Pincel, nos anos 90) Essa aqui é em Portugal. Muita gente não sabe, mas quando pensavam que eu estava fora da televisão, na verdade eu estava em Portugal. O Didi continuou fazendo o Criança Esperança, mas eu saí. Pensavam que eu estava desempregado, mas na verdade estava em Portugal. Ficamos três para quatro anos em primeiro lugar de audiência lá, três anos batendo o primeiro lugar, e depois, lá pelos três anos e meio, caiu um pouco, mas ainda era uma audiência muito alta.


Abertura do programa "Os Trapalhões em Portugal"
 


FPD: Foi boa essa experiência em Portugal?
DS: Olha, foi a primeira vez que eu me senti artista na vida. (abre um sorrisão)

FPD: É mesmo?
DS: Foi. porque o tratamento lá era fora de série. Eu tinha o meu próprio camarim, meu próprio camareiro, meu próprio maquiador. Aí pensei: "Pô, agora sim tou me sentindo um artista!". Mas menos de um ano depois, a Globo já tinha mais estrutura que eles. Hoje a Globo... Rapaz, eu tenho muito orgulho de trabalhar com eles. Você vê, eu moro em Itajaí (Santa Catarina). Quando eles me contrataram, eu falei que queria continuar em Itajaí. Disseram que não tinha problema, e hoje me dão passagem de avião, hotel, carro à disposição e tudo mais quando tem gravação! Mas claro que nunca vou esquecer de outras emissoras que mataram a minha fome, como a Record, onde fiquei dois anos com "A Escolinha do Barulho", e o SBT, onde fiz "Dedé e o Comando Maluco" por quatro anos.

FPD: Voltando ao "Lana, Rainha das Amazonas", acho que foi um dos seus raros papéis sérios, não foi?
DS: Na verdade meu papel era meio comédia, porque o cara batia palmas para uma cobra e ela saía correndo! (risos)

Capanga dos vilões, Dedé atira num montão de índios e acaba levando flechada nas costas em "Lana, Rainha das Amazonas"!

FPD: Ah, mas você é da turma dos bandidos, mata um montão de índios e até toma uma flechada nas costas!
DS: É mesmo, levo uma flechada! (risadas sonoras) Na realidade mesmo, eu me assustei quando fui no cinema na época. Não com a versão alemã, mas com a versão brasileira...

FPD: Por causa da quantidade de mulher pelada? (risos)
DS: Não, porque... Bom, para a época isso aí também foi uma coisa chocante. E o filme deu bilheteria no Brasil, talvez até por causa disso. (risos) Naquela época ainda era muito difícil ver mulher pelada no cinema. Mas o que aconteceu foi o seguinte: estou lá eu olhando o letreiro (créditos iniciais) do filme e aparece Christian Wolff, que era tipo o Kirk Douglas da Alemanha, depois Átila Iorio, depois o nome da menina, e depois Dedé Santana sozinho na tela, bem grande! Eu, no cinema, pensei: "Meu Deus do Céu, o que é isso?". Porque eu esperava meu nome bem pequeno. Já na versão alemã não, lá meu nome aparecia bem pequeno.

FPD: Como foi que você começou a dirigir?
DS: Rapaz, eu sempre tive o sonho de dirigir! Inclusive estudei para isso, fiz um curso com o Ary Fernandes (ao lado), que você sabe que foi o Vigilante Rodoviário. O Ary fazia um verdadeiro milagre naquela época porque se encarregava de tudo: ele escrevia, dirigia, montava... Ele fazia tudo! E o filme, na época, demorava uns dois ou três dias para ver depois que você filmava, mas mesmo assim ele conseguia fazer um episódio do Vigilante Rodoviário a cada 10 dias! E com cachorro! É muito difícil trabalhar com criança e qualquer animal, porque você não consegue dirigir, falar "Vai ali" e fazer ele ir. Enfim, fiz um curso com o Ary e, no primeiro dia, perguntei quanto ele iria me cobrar. Ele respondeu: "Olha Dedé, não vou te cobrar nada, mas você tem que vir lá em casa". Então eu acordava às quatro, cinco horas da manhã e ia para a casa dele. Geralmente, acabava tomando café na casa dele, oito da manhã, porque ele só saía de casa pelas onze. E o Ary se interessou tanto por mim que às vezes passava do horário. Tipo, "Te dou mais uma horinha", mas passávamos duas horas ali discutindo roteiro. Eu aprendi muito com ele, principalmente em matéria de enquadramentos. Outro grande professor meu foi o J.B. Tanko. Ele era um grande diretor, mas o que mais aprendi com ele foi como construir um roteiro. Começou assim: uma vez eu tive uma ideia de fazer um filme baseado em "O Planeta dos Macacos".

FPD: "O Trapalhão no Planalto dos Macacos" (1976)!
DS: Isso, "O Planalto dos Macacos". Eu vi o filme original no cinema e pensei: "Pô, a gente podia fazer uma sátira disso!". Um dia nós estávamos filmando numa gruta, não lembro para qual filme, e eu falei: "Seu Tanko, tive uma ideia para um filme que vai estourar na bilheteria! Vamos fazer uma sátira do Planeta dos Macacos". E ele: "Mas o quê? Pára com isso! Vamos continuar a filmagem!". Depois, na hora do almoço, ele me puxou para o lado e disse: "Dedê, vem aqui almoçar comigo e me fala mais desses macacos". Porque era assim que ele me chamava por causa do sotaque, de “Dedê”. [Nota: Tanko era originário da antiga Iugoslávia]. Aí o Tanko me levou para Muriqui, onde ele tinha uma casa de praia, e falou: "Dedê, te convidei para passar uns dias aqui comigo, mas quero que você faça aquele roteiro sobre o qual me falou". Respondi: "Mas como, Seu Tanko?". E ele repetiu: "Faça o roteiro". Eu insisti: "Mas como assim 'faça o roteiro'?". Aí ele me explicou: "Olha, os diálogos não precisa, você apenas construa o roteiro, faça uma sinopse". Depois disso eu não demorei, fiz praticamente de um dia para o outro, e entreguei. Ele leu, leu, e falou: "Não, não, tudo errado!". (risos)


FPD: Qual era o problema?
DS: O próprio Tanko me explicou: "Você entra num ambiente fechado e não sai mais. Não é assim! O povo precisa respirar! Se você começar fechado, você abre depois, deixa o povo respirar! Acho melhor você fazer outro roteiro". Aí ele me deu mais alguma dicas, eu reescrevi tudo, o Tanko leu e falou: "Tá ótimo!". Tanto é que você vê, em "O Planato dos Macacos", o crédito "Colaboração no roteiro: Dedé Santana". Não só nesse, mas em outros também. E eu aprendi isso com ele. Agora, sobre humor no cinema, eu aprendi muito com o Adriano Stuart.

FPD: Adriano Stuart, grande mestre!
DS: Ele era ligeiro, inteligentíssimo, sabia tudo! Aí de repente ele mudava tudo, falava: "Olha, ao invés de abrir aqui, você abre ali. Aí o Didi vem por ali, você tropeça nele e cai aqui". Ele inventava tudo na hora! E o Adriano era um mestre mesmo, porque o pai dele era um mestre do humor, o Walter Stuart. Ele criou o primeiro circo de televisão, o Cirquinho Bombril. [Nota: Walter Stuart foi o idealizador e apresentador do programa semanal "Circo Bombril", da TV Tupi, em que artistas circenses se apresentavam ao vivo.] Eu aprendi muito com esses dois caras, o Tanko e o Adriano Stuart. Agora, o Tanko era muito corajoso... Eu dava muito palpite, até me chamava de palpiteiro. Teve uma vez que ele me chamou a atenção: "Ô Dedê, deixa eu fazer o meu filme? No dia que você fizer o seu filme pode falar, mas agora eu estou fazendo o meu!". Mas eu realmente dava muito palpite, chegava nele e dizia: "Ô Tanko, você não acha que essa cena devia ser de tal jeito?". Aí tinha uma coisa engraçada... Às vezes eu dizia "E se o senhor fizesse assim, assim e assim", e ele me cortava: "Dedê, faz favor! Me deixa trabalhar!". Aí quando ele começava a gravar, pensava um pouco e perguntava: "Ô Dedê, como você falou mesmo para fazer a cena?". (risos) Aí eu dizia: "Olha, Seu Tanko, eu faria assim, assim e assim". E ele: "Isso! Isso! Vamos fazer assim!". Acabava fazendo muita coisa do jeito que eu sugeria para ele. Na verdade, eu tinha mais prática em circo, em humor, em como cair. Tanto que em todos os filmes do Tanko, todas as lutas que você viu foram marcadas por mim, às vezes eu até dirigia.

Foi Dedé quem sugeriu a aventura no "Planalto dos Macacos"

FPD: E nos primeiros filmes vocês mesmos faziam tudo, sem dublês.
DS: Isso. Hoje ficou fácil, hoje tem dublês e trazem até gente dos Estados Unidos para marcar as lutas. É tudo muito bem feito, claro, mas naquela época não tinha, e aí quem se defendia nesse setor era o "Dedê"! (risos) Mas voltando ao "Planalto dos Macacos": quando eu expliquei minha ideia para o Tanko, ele achou que as máscaras dos macacos seriam um problema. E realmente, na época, isso ficaria muito caro, porque o ator só podia usar uma vez, no fim da cena arrancava tudo e precisava construir outra depois. Então ele disse: "Olha Dedê, a tua ideia é boa, mas é impossível". Eu perguntei: "Mas, Seu Tanko, e se eu fizer a máscara?". Ele respondeu: "Bom, se você fizer a máscara, esse vai ser o nosso próximo filme!". (risos) Então eu comprei uma máscara de macaco, que na época estavam vendendo por causa do sucesso de "O Planeta dos Macacos", recortei ela toda e deixei só a parte do nariz e da boca. Colei ela, fiz uma maquiagem no resto do rosto e filmei com uma câmera Super 8, porque o Tanko queria ver na tela. Quando ele viu, ficou surpreso: "Mas como você consegue isso? Se eu chamar uma maquiadora, você explica tudo?". Aí ele chamou a melhor maquiadora do Rio e compramos uma outra máscara melhor, de borracha. A maquiadora viu e disse: "É possível, mas vamos ter que usar uma maquiagem especial para enrugar o resto do rosto que fica fora da máscara". Aí fizemos o filme, e foi um sucesso de bilheteria!

FPD: Você quase morreu durante as filmagens, né? [Dedé sofreu um acidente grave ao bater a motocicleta que pilotava contra um poste, onde bateu a cabeça. Precisou ficar internado durante um tempo e inclusive se submeter a cirurgia plástica no rosto antes de retornar ao set do filme].
DS: Deus me livre! E não só isso: eu inventei sarna para me coçar com aquela história de me transformar em macaco. Porque eu não gosto de dublê, nunca usei nos meus filmes...

FPD: Coisa de artista de circo.
DS: É... E o Tanko tinha me avisado para usar um dublê quando eu me transformava em macaco, mas eu insisti: "Não, Seu Tanko, quero fazer eu mesmo". E foi a maior mancada que eu dei! (risos) Eu botava a maquiagem às seis da manhã e tinha que ficar daquele jeito até a última cena! Na hora de comer, não tinha comida: era vitamina tomada com canudinho! Me arrependi e hoje acho que devia ter usado dublê mesmo, porque eu sabia que era eu ali, mas o público só vê um macaco!

Dedé como "macaco": era ele mesmo por baixo da máscara!

FPD: Podia ser qualquer um!
DS: Sim! E "O Planalto dos Macacos" foi um filme que me deu muita alegria, mas também muito cansaço. Quando a gente bateu em 30 dias de filmagens eu já estava até meio traumatizado, rapaz! Já estava me dando pânico, não queria mais colocar aquela máscara! Fiquei num mau humor que eu mesmo não me aguentava, só de saber que tinha que colocar a máscara toda hora! Meu Deus do Céu! Mas no final deu tudo certo.

FPD: E por que você não dirigiu mais nada até "Atrapalhando a Suate" (1983)?
DS: Para falar a verdade, eu dirigi todas aquelas cenas de "Os Saltimbancos Trabalhões" (1981) nos Estados Unidos, no Universal Studios, com o tubarão e tal. E dirigi nos Estados Unidos sem falar inglês, eu tinha um intérprete, e acabou que me saí bem. O engraçado é que eu recebi uns três palpites muito bons lá, e me lembrei de quando eu fazia isso com o Tanko. (risos) Acontece que eles lá (se referindo à equipe norte-americana) são muito éticos para falar com o diretor, para eles o diretor é um deus e eles me tratavam como tal. Mas eu era muito popular, brincava com todo mundo, brincava de falar inglês e eles morriam de rir, e tal. E me lembro muito bem que eu fiz uma cena em que o Didi vinha lá de trás, no cenário do "Guerra nas Estrelas", e coloquei a câmera para pegar metade do boneco do "Guerra nas Estrelas" vindo por cima dele. Aí eu senti uma espécie de mal-estar na equipe... Não exatamente um mal-estar, um clima esquisito. Perguntei para o intérprete o que estava acontecendo, e ele disse: "Sabe o que é, aqui eles não dão nenhum palpite, mas o diretor de fotografia tem uma ideia e queria transmitir pra você". Eu pedi para ele contar sua ideia, e o cara me explicou que se eu colocasse a câmera embaixo, nos pés, o Didi apareceria pequeninho no fundo, mas conforme chegasse perto ele ia crescendo cada vez mais, e aí eu abria a câmera e ele apareceria bem no ombro do boneco. Na mesma hora eu disse: "Ótimo, vamos fazer assim!".

Dedé filmou as cenas na Universal de "Os Saltimbancos Trapalhões"

FPD: Mas o pessoal estava com vergonha de sugerir para o diretor. (risos)
DS: Pois é, eles não queriam falar. Mas rapaz, esse diretor de fotografia acabou ficando meu melhor amigo lá, só porque eu aceitei a ideia dele. Outro palpite foi numa cena em que a gente saía correndo de dentro de um foguete. Eu gravei várias cenas e já ia terminar a filmagem, porque era quatro e meia da manhã e estava um frio danado. De novo, ele pediu para falar comigo, me deu uma dica para posicionar a câmera, e aquilo me salvou a sequência inteira!

FPD: A sua volta como diretor, em "Atrapalhando a Suate", foi por causa daquela separação do Renato dos demais Trapalhões...
DS (interrompendo): Na verdade não foram os Trapalhões que brigaram, foram as empresas, a Renato Aragão Produções e a Demuza. O irmão do Renato [Francisco Paulo Aragão] me ligou avisando que eles iam fazer um filme sem a gente, aquele do dinossauro Papangu ["O Trapalhão na Arca de Noé"]. E quando ele falou que iam fazer o filme sem a gente, na verdade eles já estavam até filmando! O Renato não quis se meter muito, era uma briga de empresas, e um dia o Mussum ligou para a minha casa e disse: "Ô compadre, você não falou que era diretor de cinema? Então vamos fazer o nosso filme!". Aí nós nos reunimos e foi quando surgiu a ideia do "Atrapalhando a Suate", porque tinha aquele seriado "SWAT" no ar, na Globo, e fazia muito sucesso.

[Nota: Aqui Dedé tentou suavizar um pouco a história, já que, na época, houve uma briga dos três Trapalhões com Renato Aragão - ou seja, não foi apenas uma separação de "empresas". A reportagem abaixo, publicada pela Folha de São Paulo na época da produção de "Atrapalhando a Suate", traz inclusive declarações magoadas dos três Trapalhões contra seu então ex-líder Renato Aragão.]

Reportagem sobre "Atrapalhando a Suate" na Folha de 09/10/83

FDP: Foi muito difícil escrever um roteiro para os três Trapalhões sem o Didi?
DS: Não, no dia seguinte eu já tinha toda a história do filme. Eu queria fazer uma cena meio trágica, com os heróis sendo expulsos da Suate e agindo por conta própria. [Nota: É bem possível que seja uma referência à "expulsão" do trio do novo filme de Renato Aragão na época.] Aí eu falei: "Mussum, vou precisar de umas músicas específicas para o filme, porque quero fazer várias cenas musicais no meio". E o Mussum disse: "A música pode deixar comigo!". E logo ele veio com aquela letra (cantarolando) "Tã-na-nam que a Suate chegou". Foi ele e alguns sambistas amigos dele, agora não me recordo o nome, mas eram famosos pra caramba! [Nota: Um dos compositores da trilha do filme foi Jorge Aragão.] Ele levou os caras na casa dele e fizeram tudo. Outra coisa sobre a trilha sonora é que o Mussum, certa vez, me contou uma história da infância dele sobre uma babá, e eu pedi para ele fazer uma outra música em homenagem às babás. Também tive a ajuda de um grande amigo meu, o Victor [Lustosa] que fez todos os filmes dos Trapalhões e é meu compadre, sou padrinho da filha dele. A gente era muito amigo e eu o convidei, o Victor arriscou a carreira e largou tudo para ficar comigo!

FPD: Ele também ajudou você a dirigir, não foi?
DS: Ajudou, tanto no "Suate" quanto no "Mágico de Oróz" (1984).

FPD: Que foram os únicos dois filmes que ele dirigiu...
DS: Não, ele fez... (pensando) É, acho que foram só esses dois mesmo! Mas ele escreveu muitos filmes para a gente, e nesse momento inclusive está escrevendo um roteiro para mim. Eu tenho que levar ele para Santa Catarina, porque a gente trabalha muito rápido eu e ele. É uma coisa incrível, cara! Eu visualizo a cena e conto para ele representando, e ele vai anotando e assimila muito bem. Ele é ótimo! Há pouco tempo ele fez um roteiro para um filme sobre uma mulher muito famosa de Santa Catarina, não lembro o nome, mas é um fato histórico bem conhecido. E o projeto só não foi aprovado porque uns caras passaram na frente e fizeram um documentário sobre o mesmo assunto. Eu ia aparecer no filme, ia fazer um papel lindo, de marinheiro, acho que seria meu primeiro papel sério de verdade no cinema, mas não deu.


FPD: E o que você acha do "Atrapalhando a Suate", Dedé?
DS: Olha... Bom, você sabe que todo filme pertence à sua época, e para aquela época ele foi muito bem feito. A gente não tinha recursos, usamos uma câmera só, e eu cismava em fazer umas cenas difíceis. Dizia pro Victor: "Quero fazer um cara andando num cabo de aço com uma moto!". E ele: "Não dá, não temos trucagens". Aí eu respondia: "Mas tem um número de circo que o cara faz isso, eu vou buscá-lo!". O cara que fazia o macaco também era de circo, todo mundo jura que é um macaco de verdade, mas não é. Fui catar esse cara também. E eu tinha um sonho, quando era pequeno queria ser escoteiro, e o Zacarias parece que até foi escoteiro. Então aproveitei e coloquei isso no filme, aquele final com os escoteiros bombardeando os vilões com farinha, e a minha sorte é que foi tudo aprovado pelo Mussum e pelo Zacarias. Acho que deu muito certo, graças a Deus. A parte musical ficou lindíssima, e teve uma música que, mais tarde, nós gravamos com todos os Trapalhões, e foi a única música do quarteto que tocou no rádio direto. Sabe aquela (cantarolando) "Todo mundo deve entrar na dança...".

FPD: Caso as empresas não tivessem voltado, a Demuza tinha outros projetos em vista? Vocês chegaram a falar sobre futuros filmes sem o Didi, ou não deu tempo?
DS: Na realidade, eu não queria! Eu fui muito contra isso porque esperava... Eu queria voltar. Não adianta... O Boni inclusive me falou naquela época... Minto, foi o Roberto Marinho quem falou, ele nos chamou e disse: "Vocês são a galinha dos ovos de ouro, por que vão matar a galinha? Vocês têm que voltar". E eu provoquei muito essa volta através de um grande amigo, o Beto Carrero, que era meu amigo de infância. Eu o conheci com 17 anos de idade. Ele apareceu no circo do meu pai querendo ser artista, dizia: "Eu quero ser o Cowboy Brasileiro!". E meu pai brincava: "Olha, se for cowboy não é brasileiro! Para ser brasileiro, você precisa ser vaqueiro, boiadeiro...". (risos) Mas não adiantou, ele ficou nessa de "Cowboy Brasileiro" e foi! Anos depois, eu convidei o Beto para fazer um dos meus filmes, aquele com a Xuxa...

Renato Aragão e Xuxa no "Reino da Fantasia"

FPD: "Os Trapalhões no Reino da Fantasia" (1985).
DS: Sim, que foi um filme muito difícil para filmar, porque era difícil de reunir todo mundo naquela época. Então eu tive que fazer muito plano fechado dos atores sozinhos e depois, na montagem, intercalar para parecer que eles estavam todos juntos conversando, quando na verdade foi tudo filmado separado!

FPD: Sei como é, eu faço muito dessas malandragens... (risos) Mas depois do "Atrapalhando a Suate" os Trapalhões voltaram e você virou o diretor oficial dos filmes do quarteto durante alguns anos. Era muito difícil dirigir o Renato?
DS: Na verdade, eu sempre digo que os Trapalhões não são dirigidos, eles são marcados. Como é que você vai dirigir os Trapalhões? Era meio difícil... Então funcionava mais na base de dicas, uma coisa que eu aprendi com o Tanko. Por exemplo, eu tenho esse ambiente aqui. O que eu preciso filmar aqui? (Gesticulando) Bom, o Mussum vem dali, o Didi surge pelo teto e cai aqui, eu venho por baixo e o Zacarias vem de lá... Então eu não dirigia, eu explicava a cena e cada um fazia do seu jeito. Eu não ia mandar em como o Mussum tinha que falar, tipo "Chega aqui e fala 'tranquilis'", ou "Didi, você fala 'psit'". Não, eu apenas indicava a cena. Como na Renato Aragão Produções eu tinha mais recursos, várias vezes trabalhei com duas câmeras: uma ficava no geral e a outra cercando os atores, o que era muito bom. Eu dizia para esse segundo câmera: "Fica na cara do Renato, porque ele é muito imprevisível. Agora fica no Mussum". Inclusive no "Reino da Fantasia" teve cenas que filmei com três câmeras para não precisar refilmar: coloquei uma no plano geral, outra em plano médio e a terceira só em detalhes. O pessoal me dizia: "Mas Dedé, você não vai conseguir montar isso depois". Mas eu consegui fazer! Todas aquelas cenas de teatro do "Reino da Fantasia" foram feitas numa batida só, e depois eu mesmo montei na moviola, olhava as cenas e dizia: "Peraí, eu sei que tem um plano fechado disso que dá para aproveitar". Hoje é tudo no computador, mas naquela época era na moviola, filminho por filminho. (pausa) Dos filmes que eu dirigi, você sabe qual é a minha menina dos olhos?

FPD: "A Filha dos Trapalhões" (1984).
DS: "A Filha dos Trapalhões"! Eu adoro esse filme! Agora, "O Mágico de Oróz" acho que foi um filme que eu fiz muito bem, consegui transmitir bem até na figuração, e isso eu agradeço ao meu compadre Victor, porque ele me ajudou muito a escolher os figurantes. As cenas musicais também são lindas. Bom, você viu que todo filme meu tem musical, né?

FPD: Por falar nisso, Dedé, quais são as suas influências cinematográficas?
DS: Eu via muito filme musical americano. Posso até te dizer: "Sete Noivas para Sete Irmãos" (1954), se contar, acho que vi umas 12 vezes...

FPD: Por isso que depois vocês fizeram "O Casamento dos Trapalhões" (1988)?
DS: Isso mesmo. E "Amor, Sublime Amor" (1961) eu perdi as contas de quantas vezes vi. (começa a cantarolar a música-tema do filme).


E foi justamente nesse momento que a equipe do circo interrompeu a entrevista, dizendo que Dedé precisava se preparar para a apresentação. Após uma rápida sessão de autógrafos - no meu pôster de “Atrapalhando a Suate” e na capa do LP de “Os Trapalhões na Serra Pelada” do meu irmão -, e de um elogio recebido do eterno Trapalhão pela minha curiosidade sobre a sua carreira de diretor, me despeço com a promessa de voltar a incomodá-lo num futuro próximo, para a já anunciada Parte 2 dessa entrevista.

Esperemos, portanto, que o reencontro seja breve, pois Dedé Santana é um artista com muitas histórias para contar, e que infelizmente poucos jornalistas e pesquisadores parecem dispostos a ouvir, já que sempre lhe perguntam as mesmas coisas de novo, de novo, de novo e de novo...

Eu e meu irmão Rodrigo com Dedé no picadeiro do circo!

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Felipe M. Guerra entrevista...


A exemplo do que eu já havia feito ano passado, aqui estão quatro entrevistas que fiz com novos diretores participantes da edição 2013 do Fantaspoa - Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre. Trata-se de uma tentativa de valorizar o trabalho desses cineastas iniciantes, muitos deles apresentando seu primeiro longa aqui no Brasil. Quem sabe amanhã estes caras se transformem em grandes e respeitados nomes do cinema fantástico, e nesse caso você já os terá conhecido em primeira mão graças ao FILMES PARA DOIDOS!

Nos vídeos abaixo, o leitor pode conferir minhas entrevistas com os cineastas norte-americanos Mike Mendez ("Big Ass Spider") e Jeremy Gardner ("The Battery"), com o inglês Paul Hyett ("The Seasoning House" aka "A Casa de Tolerância") e com o paraguaio Juan Carlos Maneglia ("7 Cajas" aja "7 Caixas"), esse último dando uma verdadeira aula de humildade para aqueles petulantes cineastas brasileiros dependentes de Leis de Incentivo à Cultura para fazer filmes pretensiosos que ninguém vai ver.

Já falei rapidamente aqui no blog sobre o quanto gostei dos filmes desses caras todos, e nas entrevistas (devidamente legendadas em português) o leitor poderá conhecer mais sobre as obras e sobre os próprios realizadores, que falam sobre suas influências, referências e sobre o cinema fantástico moderno. Para poupá-los do meu inglês horrível e do meu "portunhol", substituí as perguntas que fiz por títulos com os temas discutidos.

Sei que nem todos gostam de ver entrevistas em vídeo, e eu mesmo prefiro as entrevistas transcritas (por escrito). Mas reserve um tempinho para ver e ouvir o que esses caras têm a dizer. Afinal, como eu já falei no Fantaspoa do ano passado, eles podem ser os Stuart Gordons, John Carpenters e David Cronenbergs de amanhã.

E como "plus a mais", deixo também um vídeo que fiz com os melhores momentos da inesquecível apresentação do músico italiano (nascido brasileiro) Claudio Simonetti, o ex-Banda Goblin responsável por temas imortais dos clássicos de Dario Argento, George A. Romero, Lamberto Bava e outros, que em Porto Alegre fez o seu PRIMEIRO SHOW EM TERRITÓRIO BRASILEIRO DE TODOS OS TEMPOS! Simplesmente imperdível e emocionante para qualquer fã de boa música e/ou cinema fantástico.


Entrevista com Paul Hyett



Entrevista com Juan Carlos Maneglia



Entrevista com Mike Mendez



Entrevista com Jeremy Gardner & co.



Claudio Simonetti Live in Porto Alegre


terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Entrevista com Anselmo Vasconcellos

 
O ator carioca Anselmo Vasconcellos tem uma extensa biografia composta por trabalhos dos mais diversos gêneros em cinema, teatro e TV. Ficando apenas no campo do cinema, o homem aparece em dois dos meus filmes brasileiros preferidos de todos os tempos: "O Segredo da Múmia", de Ivan Cardoso, e "Eu Matei Lúcio Flávio", de Antônio Calmon. Portanto, eu mal podia acreditar quando fiquei cara a cara com ele no Festival de Cinema de Gramado, em 2010. Lá também estava um outro ícone, Paulo Cesar Pereio, mas foi com Anselmo que fiz questão de tirar uma fotografia, depois de dizer alguma bobagem do tipo "É uma honra apertar a mão do grande Faraó Runamb!".

É óbvio que eu estava me referindo ao personagem que ele fez em "O Segredo da Múmia", filme que lhe deu a distinção de interpretar o único Faraó e a única Múmia do cinema brasileiro. E eu provavelmente teria bombardeado o pobre ator com perguntas mil sobre sua carreira se ele não estivesse com a maior cara de pressa. Assim, meu único encontro com meu ídolo Anselmo Vasconcellos durou apenas esses marcantes 10 segundos...

Fade-in, um pequeno salto no tempo e, no começo de novembro de 2012, descubro que o ator tem perfil no Facebook - e daquele tipo bem participativo, que revela quando um perfil pertence à pessoa mesmo. Meio sem jeito, mandei uma mensagem particular pedindo se ele se importaria em responder a todas aquelas perguntas que eu queria fazer pessoalmente no Festival de Gramado mas não fiz para não passar por chato. Para a minha surpresa, eis que Anselmo Vasconcellos em pessoa respondeu: "Sinto-me honrado e agradeço a generosidade".

Eu tietando Anselmo Vasconcellos no Festival de Gramado

O timing não poderia ter sido melhor: primeiro, "O Segredo da Múmia" completou 30 anos (sua estreia nos cinemas foi em 21 de outubro de 1982), e a data passou em brancas nuvens na nossa imprensa (se bobear, nem o próprio Ivan Cardoso lembrou); depois, descobri que o próprio Anselmo estava para completar 60 anos (o que aconteceu há poucos dias, em 1º de dezembro), e que ele considerava a publicação dessa entrevista como parte das comemorações do seu aniversário!

Após uma rápida troca de e-mails, que resultou em duas baterias de perguntas (sempre prontamente respondidas pelo ator), duas coisas me chamaram a atenção em Anselmo Vasconcellos. A primeira foi a sua marcante humildade, pois ele comenta com a mesma intensidade sobre seus filmes mais famosos e outros trabalhos menores ou menos conhecidos. A segunda foi o seu amor incondicional pelo cinema e pelas artes em geral: do programa humorístico "Zorra Total" à sua interpretação de Ricardo III nos palcos, Anselmo considera tudo arte e tudo válido, e tem tantos projetos em andamento que torna-se até difícil acompanhar o que ele está fazendo.

Já existe uma ótima entrevista com o ator feita pela Andrea Ormond em 2006 para seu blog Estranho Encontro. Com esta minha, eu tentei não repetir as mesmas perguntas e nem tocar nos mesmos temas, apenas ampliar para outros campos aquela que considero uma entrevista obrigatória: enquanto a Andrea fez um trabalho fantástico resgatando histórias dos trabalhos mais respeitados do ator, como "República de Assassinos" e "Eles Não Usam Black-Tie", eu tentei ir para o outro lado, perguntando primeiro sobre os meus filmes preferidos ("O Segredo da Múmia" e "Eu Matei Lúcio Flávio"), e depois sobre outros menos comentados ("O Torturador" e "A Rota do Brilho").

O resultado o leitor pode conferir a partir de agora...



FILMES PARA DOIDOS: Como você se envolveu com "O Segredo da Múmia"? Em algum momento estranhou o fato de um ator carioca interpretar um Faraó/Múmia?
ANSELMO VASCONCELLOS: Fui convidado pelo Ivan Cardoso. Conhecia o Ivan e seu trabalho com aquela turma fantástica - Hélio Oiticica, Júlio Bressane, José Mojica Marins, Rogério Sganzerla -, e me entusiasmei com a ideia de um filme cheio de referências ao cinema de terror produzido pela Hammer, RKO, etc. O roteiro do [Rubens Francisco] Lucchetti, um autor de historinhas em quadrinhos, ja vinha com esse sabor, e Ivan reunia atores e equipe que perceberam a possibilidade da realização. Não preciso ser egípcio para representar Runamb, o Faraó. Não preciso ser inglês para representar Ricardo III. A concepção da palavra "representar" já me dá esse passaporte legítimo e vermelho.

FPD: Li em uma reportagem da época do lançamento que você foi inicialmente convidado pelo Ivan para interpretar o herói do filme (o papel ficou com Evandro Mesquita), mas preferiu fazer a Múmia. Por quê?
AV: Ivan me convidou para fazer o personagem do Repórter, brilhante na atuação do Evandro Mesquita. Eu pedi para fazer a Múmia pois era uma oportunidade de brincar de Boris Karloff, Lon Chaney, Mojica... Enfim, do cinema B que eu curtia e assistia em cineclubes e sessões de meia-noite daquela época. Queria me juntar a esses colegas que deram ação a estas personagens extraordinárias e incomuns.

FPD: Quais suas principais inspirações para interpretar a Múmia? O clássico com Boris Karloff da década de 30, ou as produções da Hammer?
AV: Conhecia estas produções e atuações, mas trabalho com a tentativa de conexão, com o que acontece no set, no coletivo da filmagem. Não há vestígios de outras "encarnações" no que realizamos.

Anselmo em dose dupla: enfaixado, no papel da Múmia...
...e de cara limpa, interpretando o Faraó Runamb

FPD: É realmente você por baixo das bandagens da Múmia?
AV: Sim, sou eu. Porque a ideia era essa: representar um personagem que é uma máscara de corpo inteiro, sem olhos, sem expressão facial. O [diretor de arte] Oscar Ramos me desafiou me tirando tudo, enfaixando tudo. Karloff tem sua própria máscara facial [em "A Múmia", de 1932], e mesmo imobilizando seu olhar ele tem essa expressão. Eu não tinha nada, este foi o desafio, a brincadeira - o "to play".

FPD: E como foi interpretar debaixo daquela máscara fechada e de todas aquelas faixas? Quais eram as principais dificuldades?
AV: Oscar Ramos e Nina de Pádua [atriz e assistente de direção] me mumificavam literalmente com ataduras e gesso. Levava horas. Quando ficava pronto, eram dificuldades de toda ordem. Filmamos no verão e em lugares difíceis. Não houve nenhum sofrimento, a roupa era uma engenharia bem bolada pelo Oscar, e a máscara permitia alívios entre cada set. O gesso funcionava para ter textura quebradiça, sugerindo envelhecimento. Nos divertimos muito. Fomos felizes e sabíamos. Só usei dublê na cena final do lago, quando a Múmia submerge. Ali foi o grande dublê [Amauri] Guarilha quem atuou - lindamente, por sinal. Conversamos sobre como seria e combinamos da mão ficar por último, como um adeus. Ficou muito bonita e bem feita a cena. Sabíamos que haveria uma bela trilha sonora [composta por Júlio Medaglia e Gilberto Santeiro] e desenhamos a cena. A trilha sonora deste filme é espetacular, um show de referencias e citações, e foi premiada em Gramado.

FPD: Você lembra como foi feita aquela cena em que a Múmia ergue as rodas traseiras do carro do Cláudio Marzo? Aquilo ficou muito bom na tela!
AV: Sim, lembro que eu sugeri ao Ivan erguer aquele MP Lafer com um macaco comum. Então a Múmia se posicionava segurando o carro já no alto, e bastava soltar a trava do macaco e o carro descia. Ivan decupou a cena e a edição ficou perfeita.

Esqueceu o macaco? Chame a Múmia!

FPD: O filme de Ivan tem um elenco fantástico, e algumas celebridades aparecem durante poucos segundos. Como era o set de filmagem com tanta gente famosa junta? Esse pessoal todo interagia, ou filmavam suas pontas e depois iam embora?
AV: O filme teve várias fases de realização. Todo este grande elenco se dividiu nestas etapas e nos encontramos mesmo foi na edição final, brilhante na minha opinião. Atores não usam esse conceito de "pontas", isso me parece jargão de imprensa que inventa coisas mensuráveis para poder situar seus conceitos, críticas e avaliações. Atores fazem seus trabalhos e o tempo é mera ilusão, de ótica inclusive. Tive mais contato com o Wilson Grey, a Regina Casé, o Felipe Falcão e a Tania Boscoli, pelas sucessivas sequências que tínhamos em comum. E as participações de convidadas para a Múmia atacar, que foram maravilhosas. Havia um clima muito gostoso de cumplicidade em brincar com este gênero. Algum material foi filmado em época diferente e se juntou na edição. Ivan e equipe de finalização foram muito espertos e inspirados. Acho fantástico o filme que resultou dessas variadas experimentações.

FPD: Como foi contracenar com Wilson Grey e testemunhar aquela interpretação única e brilhante dele como cientista louco?
AV: Wilson Grey é um ator extraordinário. Uso o verbo no presente porque podemos ver suas atuações memoráveis, elas estão vivas nos rolos dos filmes, nos frames de DVDs e na luz do projetor. Grey é uma assinatura, uma grife de cinema. Sua sabedoria cênica mesclava intuição e desenhos corpográficos. Ele usa seu rosto como máscaras, e mexe as expressões como se as trocasse, mudando significados. Sua qualidade atravessou as diversas faces do cinema brasileiro. Ivan prestou a ele a devida homenagem permitindo estes grandes momentos de atuação livre. Grey brinca com o trágico como ninguém. Sua atuação é uma navalha afiada, eu acho. Foi ele quem deu o tom do filme, eu acho.

FPD: Você lembra onde foram filmadas as cenas que se passam no "Egito"? É verdade que inicialmente consideraram filmar cenas no Egito "de verdade"?
AV: Sim, havia a ideia de se filmar em locações no Egito. Mas descobrimos o Areal da Barra, uma terra nua na época, e filmamos onde hoje é o Condomínio Novo Leblon. Os atores sobem uma duna e olham para o horizonte, e na edição monta com cenas reais das Pirâmides Egípcias, ao som da música-tema de "Os Dez Mandamentos". Eu apareço subindo uma duna montado num puro-sangue árabe que a produção conseguiu. Genial! A apresentação do Cairo é um stock-shot sobre um cartão-postal antigo da cidade. Achados maravilhosos, criativos, e que resultam numa invenção saborosa.

Anselmo montando o cavalo árabe fujão

FPD: Você poderia contar algumas anedotas dos bastidores de "O Segredo da Múmia"?
AV: O que há de interessante para contar de bastidores são situações muito engraçadas que aconteceram, como um mosquito que entrou pelo buraco das narinas da máscara da Múmia. Eu me debatia querendo aliviar no meio de um set, a equipe olhava a cena e achava que eu estava interpretando, e não me acudia. Foi um desespero! Outra: quando montei o cavalo árabe, do campeão Alfinete [José Roberto Reynoso Fernandez, um dos maiores cavaleiros da história do hipismo brasileiro], que nos emprestou e participava como ator, vestido de egípcio com capa, o cavalo se assustou e, no que toquei para correr, ele disparou pela Avenida das Américas e perdi o controle. Alfinete, montado em outro cavalo, correu para me ajudar, mas o meu cavalo, um campeão, não se deixava alcançar. Eu me agarrei na crina dele, colei as pernas na barriga do colosso árabe e esperei ele resolver parar. Sufoco!

FPD: Sabe-se que a produção parou várias vezes e enfrentou inúmeras dificuldades, inclusive problemas de falta de dinheiro. Como foi trabalhar sob essas condições?
AV: É sempre difícil lidar com a falta de recursos e condições adversas, e os riscos que tudo isso envolve. Aprendi tanto que hoje sou consultor da empresa Cofargo S.A., que avalia e administra riscos e seguranças na área de entretenimento. Filmes hoje são feitos com esta noção de organização e cuidados. Queremos cada vez mais organização, competência e segurança. Um negócio como outro qualquer, que visa o bem-estar e a geração de empregos e trabalho.

FPD: Quanto tempo faz desde a última vez em que reviu "O Segredo da Múmia", e o que você acha do filme? Sobreviveu à passagem do tempo?
AV: Vi há pouco tempo, numa sessão promovida pelo cineasta Cristiano Requião em seu Cineclube Doméstico. Gosto da realização, de rever figuras fantásticas como o genial Wilson Grey. O trabalho dele é uma reliquia dos seus anos no cinema brasileiro. Uma atuação antológica, original e engraçadíssima. O Felipe [Falcão], Jardel Filho, Colé, Clarice Piovesan, Dora Pellegrino, Maria Zilda, Hélio Oiticica de ator, Cláudio Marzo, Patrícia Travassos, Joel [Barcellos], [Paulo Cesar] Pereio, Mojica, Regina Casé, Evandro Mesquita falando pela primeira vez "OK, você venceu: batata-frita", Tania Boscoli deslumbrante, e a musa do filme, Nina de Pádua. É tudo um colírio na saudade. Como diz bem a Regina Casé: "Parece que é uma outra encarnação".

Terá Clarice Piovesan descoberto o Segredo da Múmia?

FPD: Alguma vez o papel de Múmia foi motivo de piada na sua carreira?
AV: A Múmia é um personagem clássico do imaginário do cinema de terror, risível em nossa concepção. Oscar Ramos tingia as faixas que cobriam a personagem de verde. Ivan filmou um ponto de vista da múmia com gaze na lente. O inesquecível clown e comediante Colé com Maria Zilda no motel, em cena antológica, exclamava, ao ver a invasão da Múmia no seu quarto: "Uma múmia? Que porra de motel é esse?". Uma gag típica de Teatro de Revista. A intenção, portanto, era fazer rir.

FPD: Existe um boato de que você teria brigado com o Ivan depois da estreia de "O Segredo da Múmia".
AV: Não me lembro o que foi, mas certamente a culpa foi minha e deve ter sido uma bobeira qualquer, que não resultou em nenhuma mágoa da minha parte. Admiro o Ivan neste trabalho.

FPD: Você assistiu "O Sarcófago Macabro", que ele dirigiu em 2006? É um curta e piloto de série que usa trechos de "O Segredo da Múmia" editados com algumas cenas novas estreladas pelo Carlo Mossy. Ele interpreta um agente da CIA investigando nazistas que vêm para o Brasil disfarçados como múmias. Nesse curta, o Ivan explica que Runamb seria o próprio Adolf Hitler mumificado! O que acha disso, e da oportunidade de "contracenar" com o grande Carlo Mossy mesmo sem jamais encontrá-lo no mesmo set?
AV: Conversei com o Ivan quando ele estava retomando as filmagens deste piloto. Mas não sei considerar estas ideias, não vi ainda no que resultou. Fiz um longa com o Mossy em Gramado e curtimos muito juntos fazer cinema, pensar cinema e superar dificuldades.



FPD: Você participou de dois filmes sobre o Esquadrão da Morte ("Eu Matei Lúcio Flávio" e "República dos Assassinos"). Por isso, queria saber como você vê a polêmica em relação a um filme recente, "Tropa de Elite", que também enfocou o tema da brutalidade policial.
AV: Não vi "Tropa de Elite" até hoje. Lamento. Tenho muitos filmes para ver. Muitos ainda não consegui ver. Acompanho produções independentes que nem chegam ao cinema e que vejo na internet, em sites fantásticos que nos dão acesso a jóias autorais de toda parte do mundo. Tenho meu cineclube, uma pequena e significativa coleção de clássicos, e a ida à sala do cinema é bem criteriosa e selecionada pelo que me proporciona de enriquecimento. Não acompanho a moda ou a mídia. Tenho meu faro e a minha fome. Busco satisfazê-la.

FPD: Você se considera um cinéfilo? Ainda vai muito ao cinema?
AV: O cinema é meu abrigo! Sempre foi. Venho da Geração Paissandu, Cinema I, Cineclubes. Nada como ir a uma sala de cinema. Meu favorito é o Cine Bardot, de Búzios.

FPD: Você poderia falar um pouco sobre Antônio Calmon? Sou fã do seu cinema cheio de referências, inclusive costumo escrever que ele tem um estilo semelhante ao do Quentin Tarantino antes mesmo de o Tarantino existir.
AV: Calmon é um criador inteligentíssimo, culto em tudo. Antecipou, com seus filmes, tendências que se consagraram depois dele, como as jogadas estilísticas do Tarantino. Calmon gosta de atores com assinatura, e ele os segue com sua câmera devassa. Recentemente nos reencontramos numa mostra em sua homenagem no Rio. Sua lucidez sobre esta época e outras é uma aula. Ele falou sobre os atores e me honrou com uma análise do meu trabalho que me encheu de lágrimas. Falou sobre a profundidade do meu alcance como intérprete. Ele continua criando.

FPD: E o que disse o Calmon para lhe emocionar tanto?
AV: Por ocasião da Mostra "Calmon em 3 Atos" no Rio, recentemente, pude reencontrá-lo e ele me chamou à mesa que liderava para o debate. Sentei ao seu lado. Ele analisou meu trabalho em seus filmes e apontou a minha entrega, invenção e comprometimento com o fazer como sendo uma qualidade de aprofundamento da interpretação. Somou a isso a observação da minha coragem em interpretar outsiders e borderlines, e de entrar e sair deles com habilidade no espetáculo.

Como policial executor em "Eu Matei Lúcio Flávio"

FPD: "Eu Matei Lúcio Flávio" é outro dos meus filmes brasileiros preferidos. Acredito que deve ter provocado muita polêmica na época, pela maneira como representa o Esquadrão da Morte e por ter recebido a "bênção" do próprio Mariel Mariscot [interpretado por Jece Valadão no filme].
AV: Esses anos que produziram estas obras eram obscuros nas questões dos debates. Essas obras anteciparam a barbárie que se avizinha. Essa São Paulo dos últimos dias parece com o quê? Somos um pais com 55.000 homicídios por ano! Se você ver esses filmes hoje, vai entender muita coisa e refletir sobre o papel da polícia, dos bandidos e sua submissão a um sistema cruel e desumano. Esta pergunta merece um livro, uma análise, debates que hoje teriam mais alarde. Hoje temos a internet, e ela poderia ter um papel relevante na elaboração de pensamentos e considerações. Estou aqui te respondendo, na internet, e pensando nisso, no que posso dizer de tudo isso. Gustavo Dahl, saudoso pensador do cinema, dizia que "Eu Matei Lúcio Flávio" é um filme cult. Merece ser estudado, debatido sobretudo.

FPD: Você chegou a conhecer o verdadeiro Mariel Mariscot? Ele participou do processo de realização do filme?
AV: Não conheci. Ele já estava preso quando fizemos estes filmes. Mas aquele medalhão da Caveira - Scuderie Le Cocq, que o Jece Valadão usa no filme, foi emprestado pelo próprio Mariel.

FPD: Como foi sua preparação para viver o policial assassino em "Eu Matei Lúcio Flávio"? Aquela cena dele torturando um suspeito ao som de "Lady Laura", do Roberto Carlos, é genial!
AV: Eu acompanhei muitos desses crimes pelos jornais da época. Morei em Vila Isabel, e ali ouvia e lia sobre esses lendários psicopatas. Não é dificil representá-los: são óbvios, banais em sua insanidade. Difícil é interpretar um artista, um pensador, um iluminado, ou simplesmente o homem comum.

FPD: Graças a essa parceria com o Calmon, você trabalhou com uma lenda do cinema brasileiro, Jece Valadão. Como era o velho Jece?
AV: Conheci o Jece na fase da Magnus Filmes, seu estúdio e produtora. Fiz vários filmes ali, não só os do Jece. Neste período, ele se cercava de mistérios, ficava recluso em sua sala e camarim. Não tive acesso a ele e nem fui seu amigo.

Um padre ligeiramente suspeito em "O Torturador"

FPD: Acho "O Torturador", outra parceria sua com o Calmon, uma divertida maluquice. Eu sempre lamento que filmes doidos e divertidos como esse e "O Segredo da Múmia" não sejam mais produzidos no Brasil. Qual sua opinião sobre isso? Será que há espaço para filmes como "O Torturador" nesse nosso cinema pós-Retomada?

AV: Também me divirto com esses filmes irreverentes, engraçados e falsamente escapistas. São surpresas que o tempo vai revelando e fazendo justiça aos seus méritos, muitos deles negados na sua época de lançamento. A atualidade vem marcada pelo escaldante deserto que o Governo Collor nos impôs. Perdemos alegrias, humor. Ganhamos vontade de expressar outros matizes, outras cores, outros olhares. Eu canto baixinho neste momento o samba plataforma de João Bosco, da trilha sonora do filme "Se Segura Malandro", do [Hugo] Carvana:
"Não põe corda no meu bloco
Nem vem com teu carro-chefe
Não dá ordem ao pessoal
Não traz lema nem divisa
Que a gente não precisa
Que organizem nosso carnaval
Não sou candidato a nada
Meu negócio é madrugada
Mas meu coração não se conforma
O meu peito é do contra
E por isso mete bronca
Neste samba plataforma
Por um bloco
Que derrube esse coreto
Por passistas à vontade
Que não dancem o minueto
Por um bloco
Sem bandeira ou fingimento
Que balance e abagunce
O desfile e o julgamento
Por um bloco que aumente
O movimento
Que sacuda e arrebente
o cordão de isolamento."

FPD: Como você se meteu naquela tralha chamada "A Rota do Brilho", de Deni Cavalcanti? Sei que o filme devia ser um policial sério, mas hoje só pode ser visto como comédia involuntária.
AV: Eu não fazia cinema há um tempo, não havia cinema sendo produzido. Estava em Sampa e aproveitava para frequentar a Boca do Lixo, os cinemas underground, a Praça Roosevelt. Fiquei sabendo desta produção e fui lá pedir para fazer. Queria filmar, não julguei méritos e nem currículos. Queria o set, a câmera. Fiz. Faltava isso.

Tomando leite no bar em "A Rota do Brilho"

FPD: Um detalhe divertido sobre "A Rota do Brilho" é que ali tem o Deni, que estava ligado ao cinema erótico, o José Miziara, que dirigiu filmes pornôs, o Marcos Manzano, que era dançarino do Clube das Mulheres. Você não ficou com medo de ficar marcado por aparecer numa produção classe C da Boca do Lixo?
AV: Medo? Eu estava vivendo em Sampa pela primeira vez, conhecendo o que ainda havia de Boca de Lixo, underground, Praça Roosevelt. Trabalhava na Band e conheci outros profissionais, com outras posturas. Adriano Stuart foi um cara que me ensinou a conhecer São Paulo, suas estórias, suas possibilidades. [Ronald] Golias, Miziara, Agnaldo Rayol, Felipe Levy, Moacyr Franco... Era outro mundo. Com ele conheci Toninho Meliande, fotógrafo deste filme, atores que sobreviviam das mais variadas formas e sem glamour. Uma escalada tortuosa e cheia de obstáculos. Mas me treinou.

FPD: Mas acredito que deve ter sido um trabalho curioso para um grande ator estar lado a lado com vários "não-atores", incluindo um integrante do Clube das Mulheres promovido a astro. Como foi a experiência?
AV: O cinema permite que você trabalhe e reúna diversidades e conhecimentos diferenciados. Há experiências bem-sucedidas neste âmbito, como o Neorrealismo Italiano, para ficar num único exemplo. O resultado de um filme sempre sofrerá críticas e reflexões, e para isso são feitos e exibidos. Guardo e comento o que é positivo, o que aprendi, e outros aspectos eu esqueço e/ou deleto. Acredito no panfleto do Luiz Severiano Ribeiro: "Cinema é a maior diversão".

FPD: Fale sobre sua relação com Hugo Carvana como diretor, já que você aparece em quatro filmes dele.
AV: Carvana mantém viva a tradição do cinema popular brasileiro que começou na Atlântida Cinematográfica. Para ele e para mim, Atlântida não é um continente desaparecido. Vamos sempre lá.



FPD: Na sua filmografia dos anos 90 aparecem pelo menos duas co-produções internacionais que hoje são muito difíceis de encontrar: "Boca" (1994), que teria sido produzido pelo norte-americano Zalman King, e "Filhas de Iemanjá" (1995), da finlandesa Pia Tikka. O que pode dizer sobre esses filmes?
AV: Fiz também um filme canadense pretensamente humanitário, "Comme Les Oiseaux Dans Rio", de François Labontè. Em "Boca" eu peguei um diretor americano que não era o Zalman. Ele me curtia e filmamos bem. Tinha a Rae Dawn Chong e um elenco grande nacional, Tarcísio [Meira], [Carlos Eduardo] Dollabella, [José] Lewgoy. Fiz teste para fazer o filme e a filmagem era bem organizada. Ele passa no cardápio dos Telecines. Pude vê-lo duas vezes e me escapa uma consideração substantiva para o que vi, o resultado. É confuso, nunca entendi com clareza para poder determinar coisas aqui e agora. Com a Pia, era um filme de formatura dela lá na Academia Finlandesa, e feito aqui com poucos recursos. Tinha uma poesia inalcançável para nós, brasileiros. Recentemente, participei de "Suriname Gold", um filme americano produzido pela New York University e dirigido pelo brasileiro Paulo H. Tostelines. Muito interessante e muito bem realizado, está em finalização nos EUA.

FPD: O estilo de direção dos estrangeiros era muito diferente do adotado pelos cineastas brasileiros?
AV: É bastante curiosa a relação. Lembro que eles comentavam muito sobre meu trabalho, mas não consegui muita comunicação com eles. Os canadenses eram muito frios, esquemáticos; Pia, um doce e uma mulher linda, glamourosa.

FPD: É bom lembrar que, nessa época negra do nosso cinema (entre 1990-94), era muito difícil até para atores renomados conseguir trabalho em filmes brasileiros, até porque "filmes brasileiros" quase nem existiam. Quais suas lembranças desse triste capítulo da história do nosso cinema?
AV: Atravessamos um deserto escaldante. Eu sofria vendo os colegas buscando sobrevivência em outras frentes e profissões. Parecia que tínhamos sido expulsos de casa. Um triste exílio. Acho estranhíssimo que não se fale mais nisso, não se cobre os valores que sumiram do nosso patrimônio artístico.

FPD: Você sempre teve uma presença muito forte em cena, e é um ator excelente, mas nunca chegou a estrelar uma longa. Você se ressente disso?
AV: Tenho um filme inédito feito recentemente em Gramado como protagonista, "Réquiem para Laura Martin", de Paulo Duarte e Luiz Rangel. Sou protagonista de curtas bem interessantes e premiados: "República dos Ratos", de Beto Mattos (pelo qual recebi o prêmio de Melhor Ator no Festival de Santa Maria/RS), "Madrugada de Inverno", de Carlos Alberto Sozza (prêmio de Melhor Ator no Festival de Mogiguaçu/SP), "O Coração de Dom Quixote", de Nina Tedesco, onde faço Dom Quixote, "Brilho da Noite", de Emiliano Ribeiro, "Copa Mixta", de José Joffily, "Herois", de Miguel Oniga...


Veja o curta "Madrugada de Inverno"



FPD: Poderia falar mais sobre "Réquiem para Laura Martin"?
AV: Sou apaixonado pelo roteiro do Paulo Duarte. "Réquiem para Laura Martin" narra um pacto sinistro e afetivo entre um Maestro e sua musa. Um criador complexo, um artista que dirige sua vida como uma orquestra. Dá ritmos a fatos e conduz intenções subversivas no cotidiano de suas relações com as pessoas que o cercam, como se fossem instrumentos que ele domina. Um filme de respiração, de fôlego autoral. Filmamos tudo na europeia Gramado, num clima frio e em paisagens deslumbrantes. Fomos capturados pelo filme que resulta desses dias e de uma finalização que o Paulo Duarte orquestrou em sua produtora em São Paulo. Gosto demais deste espetáculo. O produtor Fernando Muniz está trabalhando seu lançamento e distribuição. Em festivais distintos, no Brasil e em Madrid, ganhamos prêmios de trilha sonora, direção e melhor atriz (Cláudia Alencar, em atuação inspiradíssima).

FPD: Você parece ter uma bela relação com o Rio Grande do Sul.
AV: Amo o Rio Grande do Sul. É a "Europa" que vou sempre. Adoro a cultura e aquela gente gaúcha. Já percorri muitas cidades, conheço a serra, o interior, o centro e algumas fronteiras. Me surpreendo sempre por lá. Fiz um filme ["O Carteiro"] com Reginaldo Farias em Vale Vêneto - uma Xangri-Lá Italiana, fica na Quarta Colônia, um lugar extraordinário! As ruas não têm nomes e as casas não têm números. Fomos felizes nesta terra. Tenho parcerias lindas por lá com gente de cinema, cultura, teatro, grandes amigos e amores eternos. Filmei "República dos Ratos" em Porto Alegre com Beto Mattos, fui homenageado nacional do FLO - Festival do Livre Olhar, da Biah Werther e equipe. Fui premiado em Santa Maria com o Troféu Vento Forte de Melhor Ator, e dou workshops patrocinados pelos SESC do Rio Grande do Sul. Montei "O Último Carro de João das Neves" em São Leopoldo, no Festival SESC Aldeia Capilé. Fui diversas vezes ao Festival de Gramado, e tenho projetos naquela área bem significativos para breve.

FPD: Em quase 40 anos de carreira, você interpretou inúmeros vilões, uma múmia, um travesti, policiais corruptos e bonzinhos... Qual desses papeis foi o mais difícil, e que personagem você ainda não fez no cinema, mas adoraria fazer?
AV: Gosto muito do personagem "O Maestro", do longa "Réquiem para Laura Martin". Um artista, um criador complexo, delicado, que exigiu extrema verdade para fazê-lo. Gostaria de fazer o João do Rio, personagem que interpretei na peça de Aguinaldo Silva "Isadora Duncan - É Dançando que a Gente se Aprende". João é um figura extraordinária, um autor, um dândi.

FPD: Em sua opinião, qual foi o ponto alto da sua carreira, e por quê?
AV: Fazer Ricardo III no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, na íntegra, os cinco atos. Que texto, que personagem, que privilégio que o Antonio Pedro Borges me concedeu!


Veja o curta "O Coração de Dom Quixote"



FPD: Qual o seu trabalho preferido no cinema?
AV: Gosto muito de "O Coração de Dom Quixote". Viver este mitológico personagem é uma vibração fortíssima. Ele é um tesouro da humanidade, um brilho eterno de um autor fantástico.

FPD: E qual filme você gostaria de apagar da sua filmografia?
AV: Nenhum.

FPD: Com qual diretor brasileiro você gostaria de trabalhar ou de ter trabalhado?
AV: Muitos. Todos. Cada filme bem dirigido me desperta este desejo. Gosto muito de trabalhar com jovens diretores que estão despontando. Vou filmar com alguns em breve. Júlia Cruz está na mira!

FPD: Lembra qual foi o último bom filme que viu da recente safra?
AV: Eu sou apaixonado pelo "Réquiem para Laura Martin", esse filme não me sai da retina!

Durante as filmagens de "Réquiem para Laura Martin"

FPD: O que você está fazendo hoje e quais são os seus projetos futuros?
AV: Vou dirigir, a convite do Núcleo de Cinema da Bahia, o curta "Alô Boys" em Maracangalha, Bahia. Estou filmando com Carvana "A Casa da Mãe Joana 2". Tenho convite para "Lampião - O Filme", de Bruno Azevedo, e "Um Longo Inverno", de Marco Schiavon. O livro "Comédia, A Arte da Irreverência" [capa abaixo], em parceria com a jornalista Raquel Villela, é um projeto de cinco anos de estudos e pesquisas que complementam um overview sobre a comédia, os fatos e os tempos, teoria e prática da engenhosidade da comédia - um compêndio sobre a comédia. Estamos lançando pelo país, e parte dele integrou um livro russo de vários autores. Continuo no "Zorra Total", defendendo essas ideias todas. Desenvolvo uma parceria com o Maestro Mateus Bruno, regente da OSB Jovem [Orquestra Sinfônica Brasileira], e vamos trabalhar unindo teatro e sinfonias. Dirijo o show da [cantora e atriz] Bia Sion e promovo encontros criativos num curso livre na Escola de Teatro Martins Pena, onde estou há 24 anos. Viajo em parceria com o SESC do Rio Grande do Sul, desenvolvendo trocas culturais. E, quando posso, vou pescar na praia.


FPD: Qual sua relação com o programa humorístico "Zorra Total"? Muita gente lamenta ver um grande ator como você no cast de um programa tão popular, mas você parece gostar muito do que faz ali.
AV: O "Zorra" é um humor que vem da tradição do circo. Uma audiência incrível, une "Brasis" nas noites de sábado! Minha infância foi aprender a amar o circo, eu ia sempre e meus pais amavam também. Cresci com o perfume do picadeiro, internalizei a irreverência dos clowns. Trabalhei cinco anos com um clown genial, um dos maiores do mundo, Ronald Golias, e com ele e por ele com um grande elenco de artistas populares. Na adolescência, via os filmes da Atlântida e Herbert Richers. Conheço muito, com grande intimidade, os trabalhos de Oscarito, Ankito, Grande Otelo, Wilson Grey, Anselmo Duarte, Violeta Ferraz, Zé Trindade, José Lewgoy e também o grande Mazzaropi e seu inesquecível Jeca. Trabalhei com Adriano Stuart e Walter Stuart, de origem circense, e com eles aprendi muito. Trabalhei com Vic Militello, também de família de circo, e com ela, somados a Antonio Pedro, Alexandre Regis, Luca de Castro, Claudia Borionni, Lafayete Galvão e tantos outros, aprendi a trabalhar os dramalhões do circo-teatro. Criamos uma escola de circo-teatro que fez grande sucesso no Rio, o "Terror na Praia". Anos em cartaz com teatro de repertório e shows de variedades. Cheguei ao "Zorra" por aí e me sinto em casa lá. Estou desde o início do programa, há 13 anos. Estudei muito, anos e anos, o trabalho dessa gente e de nossos colegas antepassados. Por isso tive o intento de escrever um livro, com a Raquel Villela, para dar respostas a este incrível preconceito contra o humor popular, a comédia. O papel da comédia é altamente relevante para o desenvolvimento humano, social e político. É a maior arma contra o autoritarismo e pedantismo intelectual. Tenho e sinto o maior orgulho de ter feito dupla cômica com meu ídolo de infância, adolescência, maturidade e da velhice que virá: Ronald Golias!

FPD: Para terminar, sei que são mídias completamente diferentes, mas hoje você prefere trabalhar com cinema ou TV?
AV: Gosto muito de trabalhar, atuar, dirigir... tudo e em todas! Sou um fominha de bola, como se diz nas peladas. Tenho muitas recordações do futuro, meus filhos lindos, minha amada Cristiana, meus amores todos. Muita vontade de aprender sobre a vida e a arte. Espero conseguir.


PS: Por último, mas não menos importante, gostaria de deixar os meus sinceros agradecimentos à lenda viva Anselmo Vasconcellos pelas respostas e pela atenção. Parabéns pelos 60 anos de vida e também pelos quase 40 de carreira (que serão oficialmente contabilizados em 2013). E que continue nos surpreendendo com suas interpretações únicas e personagens exóticos e imortais!