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quinta-feira, 10 de novembro de 2011

NENHUM PASSO EM FALSO (1986)

(Queridos leitores, já faz meses que não resenho um filmaço apenas pelo seu fator trash/diversão - mais precisamente desde "Sonatine", em março. Portanto, resgato este texto antigo do meu aposentado Multiply para a série FILMES PARA DOIDOS POR CINEMA. Se já leu, não se preocupe: a resenha é praticamente toda nova, pois desde que a escrevi originalmente, em 2005, eu li o livro que inspirou o filme, e aqui faço as devidas comparações.)

Harry Mitchell (Roy Scheider) é um rico e bem-sucedido homem de negócios, ligado à indústria da siderurgia, dono de capital considerável graças a uma patente com a Nasa, que lhe garante uma caprichada conta bancária. Tem um carrão conversível que ele mesmo reformou em sua rica garagem e uma bonita mulher, Barbara (Ann Margret), que o ama e pretende investir no futuro político, lançando sua candidatura a vereadora. Pode-se dizer que Harry Mitchell tem tudo. Mas, como nós sabemos, quem tem tudo geralmente está querendo um algo mais.


E é assim que nosso executivo de meia-idade se envolve com Cini, uma jovem "modelo" de apenas 22 anos de idade (interpretada pela atual esposa de John Travolta, Kelly Preston). O caso extraconjugal poderia melhorar ainda mais a vida de Mitchell. Porém, como estamos em um filme de John Frankenheimer, e com roteiro do mestre da literatura policial pop Elmore Leonard, é claro que a coisa vai dar mal.

Estou falando de "52 Pick-Up", filmão baseado em livro de mesmo nome que foi publicado no Brasil na década de 1970 como "Os Chantagistas". Pior sorte teve o filme, que foi inexplicavelmente lançado por aqui com dois títulos diferentes: NENHUM PASSO EM FALSO e A HORA DA BRUTALIDADE (para aproveitar a febre de filmes com "Hora" no título, tipo "A Hora do Espanto", "A Hora do Pesadelo"...).


Depois, quando a América Vídeo lançou-o em VHS, resolveu unir ambos e ficou NENHUM PASSO EM FALSO - A HORA DA BRUTALIDADE!!!

(E caso você esteja se perguntando, o original "52 Pick-Up" refere-se a um jogo de cartas infantil bem popular nos Estados Unidos: um jogador atira um maço de 52 cartas para o alto, de maneira que elas caiam desordenadamente no chão, e o outro jogador precisa "remontá-lo" através de combinações crescente e descrescente, como no jogo tradicional de Paciência.)

Mas voltemos à vida do pobre Harry Mitchell. Logo no início do filme, quando ele se prepara para mais um encontro com Cini, tem a desagradável surpresa de encontrar no quarto de hotel não a sua gatinha loira, mas sim três homens mascarados. Um deles com um revólver na mão.


"Sente e aproveite o show"
, diz um dos desconhecidos, e então o trio mostra a Mitchell um vídeo amador que registra cenas do dia-a-dia do ricaço. Aqueles bandidos o seguiram por um bom tempo, filmando momentos em que ele sai de casa, entra na empresa, sua mulher fazendo cooper e, finalmente, detalhes que comprovam a traição conjugal: Mitchell encontrando-se com Cini, levando-a para uma viagem de férias quando deveria estar numa convenção de empresários e fazendo sexo com a garota.

Os bandidos sabem que aquelas imagens podem destruir o casamento e a vida pacata de Harry Mitchell, além de arruinar as pretensões políticas da sua esposa graças ao escândalo. Por isso, pedem 105 mil dólares pelo silêncio.


O milionário convence o trio de que não pode simplesmente chegar no banco e retirar 105 mil dólares. Fica acertado que ele pagará em "prestações mensais", começando com uma primeira de 10 mil dólares. E, assim, Mitchell fica à mercê dos perigosos chantagistas.

Ao invés de ir direto à polícia, nosso herói resolve contar tudo ao seu advogado, Mark Arveson (o falecido Doug McClure, de "Humanoids from the Deep"). Este sugere que o executivo não ceda às pressões dos chantagistas.

Naquela noite, Mitchell volta para casa e abre o jogo com a esposa, dizendo que a traiu, que aquela foi a primeira vez, que ele estava desconfortável com o casamento, etc etc. Barbara, é claro, fica furiosa. Mas Harry sente-se aliviado, pois teoricamente arruinou o plano dos chantagistas, certo?


Errado!

O que Mitchell não sabe é que não se brinca com três homens perigosos como aqueles com que se envolveu. O trio de chantagistas é formado pela nata da maldade humana, todos ligados ao submundo da pornografia.

O cabeça da quadrilha é o falante e cruel Alan Raimy (o excelente John Glover, um ator que nunca recebeu a merecida atenção e aqui simplesmente rouba o filme). Raimy é diretor de filmes pornô amadores e proprietário de um cinema X-Rated.

Seus comparsas são Leo Franks (Robert Trebor), o cagão do grupo, dono da boate de strip-tease onde Cini trabalha; e Bobby Shy (Clarence Williams III), que é a verdadeira encarnação da violência e da malvadeza, um assassino frio que matou o padrasto com 13 anos e não hesita em puxar o gatilho para resolver situações simples.


Estes três monstros acreditam que terão seus 105 mil dólares e estão até promovendo festas para comemorar o negócio bem-sucedido. O legal é que, na cena da festa, podemos ver muitos astros pornôs dos anos 80, como Tom Byron, Ron Jeremy, Amber Lynn e Sharon Mitchell, divertindo-se com os vilões.

A felicidade dos dois lados logo vai acabar. Na noite combinada para o pagamento da primeira parcela da chantagem, Mitchell passa às mãos de um dos bandidos um envelope que parece estar forrado de grana, mas na verdade só tem jornal cortado e um singelo recado.

Raimy fica puto: "Eu juro que não sei onde o mundo vai parar... Você explica honestamente como as coisas vão ser, e mesmo assim tentam te passar para trás!".


 Logo, Bobby faz uma nova visita a Mitchell e o leva para um passeio. Dessa vez, o trio mostra um novo vídeo - um snuff movie.

As cenas mostram Cini sendo agarrada pelos bandidos e amarrada a uma cadeira. Em seguida, ela tem suas roupas arrancadas e uma tábua de madeira é posicionada na sua frente, sobre o peito. Para finalizar, os bandidos disparam cinco tiros na placa de madeira, direto no peito da moça, que cai morta enquanto os assassinos fazem piada: "A melhor coisa sobre Cini é que ela não apenas vive o seu papel, ela morre também!".

Em seguida, mostram a placa de madeira toda perfurada (para comprovar que não houve "efeitos especiais") e o corpo sem reação nem respiração da moça. Uma cena tétrica, ainda mais pela maneira como os bandidos tratam aquilo como se fosse a coisa mais normal do mundo...


Eles propõem uma nova chantagem: como a arma usada no assassinato era um revólver roubado da casa de Mitchell, com suas impressões digitais e tudo mais, o homem de negócios deverá pagar 105 mil dólares todo ano, até o fim da sua vida, pelo silêncio do grupo.

Caso contrário, eles farão com que o cadáver da moça apareça, bem como o revólver e bem como um casaco também roubado de Mitchell, propositalmente manchado de sangue pelos bandidos.

Sem saída, o executivo só vê uma chance de escapar dessa: não pagar o que os bandidos pedem, mas sim investigar e descobrir quem são aqueles bastardos, aprender mais sobre eles e suas fraquezas. Então, numa estratégia inteligente e bem pensada, Mitchell começa a jogar um contra o outro, com complicações imprevisíveis para todos os envolvidos no caso.


Concordo com o crítico de um site norte-americano, que diz que NENHUM PASSO EM FALSO nunca fez o merecido sucesso.

Claro que, comparado com outros filmaços de Frankenheimer, este não passa de um thriller comum, simplório até.

Entretanto, analisando independentemente da filmografia do cineasta, eu não hesitaria em colocá-lo entre os grandes filmes policiais dos anos 1980. Até porque ele foge do exagero e do absurdo que tornou-se marca registrada da década, principalmente quando lembramos que, no mesmo ano e pela mesma produtora, saiu "Stallone Cobra"!


NENHUM PASSO EM FALSO
tem aquele clima sério e realista do cinema policial dos anos 70, com narrativa lenta que esmiuça as características dos personagens e suas relações/motivações, uma bela trilha sonora, excelentes atores representando excelentes personagens e uma trama que prende a atenção do espectador do início ao fim, complicando cada vez mais a vida do herói – de forma que o espectador fica intrigado para saber como é que ele vai se salvar daquela enrascada.

Vale destacar que a adaptação do livro "Os Chantagistas" foi feita pelo próprio autor Elmore Leonard, em parceria com John Steppling. Seu roteiro é enxuto e sem grandes malabarismos ou absurdos, embora peque na parte final por certos exageros que devem ter sido uma imposição da produtora, a célebre Cannon Films (já chego nesse detalhe).


O mesmo livro havia sido adaptado dois anos antes, em 1984, no filme "O Embaixador", também produzido pela Cannon e com direção de J. Lee Thompson. Esse não teve a participação direta de Leonard, e os roteiristas tomaram amplas "liberdades poéticas" na trama, aproveitando apenas a idéia da chantagem e transformando-a num thriller político.

Leonard, vale lembrar, é um dos mais populares autores de livros policiais dos Estados Unidos, e entre os filmaços baseados em suas obras estão "Jackie Brown", de Quentin Tarantino (baseado no livro "Ponche de Rum") e "O Nome do Jogo", de Barry Sonnenfeld (baseado no livro "Um Golpe de Sorte").


Especialista em criar universos violentos e personagens cafajestes, Leonard escreveu, em "Os Chantagistas" e NENHUM PASSO EM FALSO, uma de suas histórias mais contidas e realistas.

É perfeitamente possível acreditar na reação de todos os personagens do filme, que agem como seres humanos reais – especialmente o protagonista Harry Mitchell. Ao contrário de um Charles Bronson, por exemplo, Mitchell não sai distribuindo tiros nos bandidos assim que descobre a identidade dos três chantagistas; pelo contrário, ele prefere deixar as mãos limpas e jogar um contra o outro.

Os erros cometidos pelos personagens também são perfeitamente verossímeis, ainda mais quando seus planos iniciais não dão certo e as consequências tornam-se cada vez mais tenebrosas. Eles não parecem os típicos herói e vilão do cinema policial tradicional.


As diferenças entre filme e livro são relativamente pequenas.

Em "Os Chantagistas", a esposa demora muito mais tempo a perdoar a traição do marido e aceitá-lo de volta, e também sofre mais nas mãos dos vilões do que na adaptação para o cinema (melhor não dar muitos detalhes para não estragar a surpresa).

No livro, também, Mitchell sofre ainda mais pressão porque há um líder sindical no seu pé, fator determinante para deixar nosso "herói" ainda mais estressado e em ponto de bala.

Mas a mudança mais marcante entre "Os Chantagistas" e NENHUM PASSO EM FALSO é a conclusão: enquanto no livro Mitchell livra-se de Raimy usando a esperteza e um artifício relativamente simples (envolvendo troca de maletas), no filme ele subitamente se transforma numa espécie de McGyver e cria todo um aparato sofisticado para controlar um veículo - uma reviravolta desnecessária que, como eu falei, deve ter sido sugestão dos produtores Golan e Globus para o filme ficar mais "explosivo". Porque, como todos sabemos, os filmes deles "explodem como dinamite"!


Talvez tentando relembrar seus bons tempos, já que andava em fase ruim (no auge do alcoolismo e sem um sucesso comercial há anos), Frankenheimer também filmou uma momento ultra-gratuito que mostra Mitchell dirigindo seu carrão em alta velocidade, mas nada tem a ver com a história (e é uma cena anos-luz aquém daquela maravilhosa perseguição automobilística em alta velocidade vista num de seus últimos filmes, "Ronin", de 1998).

Pelo menos ele demonstra que não está pra brincadeira, e não alivia o tom pesado do livro. O filme tem poucas cenas de violência, mas, quando elas aparecem, são cruéis e marcantes.


E não tem como não se impressionar com o desempenho dos atores que interpretam os malvados, principalmente John Glover, que não precisa apelar para expressões exageradas ou explosões de fúria para mostrar como é perigoso.

Outro destaque é a interpretação nervosa de Clarence Williams III: Bobby, o matador que ele encarna, é um sujeito tão frio que só seu olhar dá medo.

O terceiro bandidão, interpretado por Trebor, é o elo fraco da corrente, um covardão de quem o espectador quase sente pena, em outra atuação monstruosa. Esses caras são VILÕES de verdade, daqueles com quem você espera nunca topar numa rua escura - nem mesmo numa bem iluminada!

Já a modelo e cantora Vanity, uma das musas daquela década, aparece como uma prostituta amante do personagem de Williams III. Vanity talvez seja a única coisa bonita num filme feio, sujo e malvado – como se uma flor das mais coloridas brotasse no meio de um beco imundo e escuro, entre camisinhas usadas e cachimbos de crack descartados.


Talvez você tenha visto NENHUM PASSO EM FALSO nas prateleiras da sua locadora nos velhos tempos do VHS, mas nunca se interessou por causa da capinha feia da América Vídeo (que mostra apenas Scheider com uma arma com Ann Margret fazendo cara de múmia logo embaixo).

Afinal, a julgar pela capinha, era até de se esperar mais um filminho de ação bobo e barato feito pela Cannon.

Só que todos sabemos que não se deve julgar um livro pela capa: dê uma chance a Frankenheimer e Elmore Leonard, e prepare-se para a surpresa de ver um policial de primeira linha, digno de figurar entre outras obras-primas da década de 80, como "O Ano do Dragão", de Cimino, e "Viver e Morrer em Los Angeles", de Friedkin.

Pode até ser um filme "menor" de Frankenheimer, mas esse é o bom de ser um diretor foda: até os seus trabalhos de menor brilho são uns filmaços. Ainda mais quando comparados a muito besteirol de hoje que pretende ser "filme policial".


Trailer de NENHUM PASSO EM FALSO

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52 Pick-Up (1986, EUA)
Direção: John Frankenheimer
Elenco: Roy Scheider, Ann-Margret, Vanity,
 John Glover, Robert Trebor, Kelly Preston,
Doug McClure e Clarence Williams III.

sábado, 13 de dezembro de 2008

99 AND 44/100% DEAD (1974)


99 AND 44/100% DEAD é uma daquelas obras anos à frente do seu tempo. Quando foi lançado, em 1974, o filme foi massacrado pela crítica e ignorado pelo público, tornando-se um fiasco de bilheteria e uma mancha na carreira promissora do diretor John Frankenheimer, que só se recuperou do desastre ao concordar em dirigir a seqüência "Operação França 2", no ano seguinte. E não é difícil de entender o espanto de público e crítica: escrito por Robert Dillon (roteirista do excêntrico "A Marca da Brutalidade", com Lee Marvin), é um filme policial narrado em ritmo de paródia, às vezes sério e sombrio, às vezes cômico e absurdo como uma boa história em quadrinhos.

Seus protagonistas são gângsters durões, porém simpáticos, que pensam que atirar desafetos no rio com blocos de concreto nos pés é um trabalho como qualquer outro, e que adoram falar bobagem entre um tiroteio e outro. Enfim, é a idéia básica de "Pulp Fiction", só que 20 anos antes. Mais ou menos como no premiado filme de Tarantino, aqui também temos uma visão cartunesca, caricatural, sobre o mundo do crime. Visão esta que antecede em pelo menos duas décadas o trabalho de Tarantino, Guy Ritchie, Joe Carnahan e outros cineastas contemporâneos que fazem a mesma coisa. Em outras palavras, é um filme incompreendido, que certamente faria o maior sucesso se fosse lançado hoje.


Frankenheimer não é um dos meus diretores prediletos (embora tenha assinado alguns filmaços), e eu confesso que não conheço boa parte da sua filmografia. No caso específico deste filme, nunca encontrei referências que me deixassem curioso para vê-lo, até ler um breve comentário no blog Viver e Morrer no Cinema, do Leandro Caraça, falando justamente sobre a dificuldade para obter uma cópia. Aí resolvi ir atrás, e quem me conseguiu a cópia VHS-Ripada foi o Zebu, do finado blog Boizeblog, pois até na rede é difícil de encontrar o filme para baixar!!!

Enfim, agora, depois de finalmente conferir o polêmico trabalho de Frankenheimer, fico imaginando como os espectadores lá dos anos 70, acostumados a filmes policiais mais sérios e violentos, encararam 99 AND 44/100% DEAD...

A relação com os quadrinhos começa já pelo pôster de cinema, que traz uma artezinha estilizada e a frase de duplo sentido "Todos estão morrendo para conhecer Harry Crown", e segue pelos créditos de abertura, mostrados através de animações com bonequinhos coloridos (cuja arte lembra o trabalho do brasileiro Ziraldo). Em seguida, o espectador é surpreendido com uma introdução maluca que mostra uma dupla de gângsters jogando um inimigo no rio com os pés presos a um bloco de cimento. O homem afunda feito chumbo e, ao atingir o fundo do rio, a câmera mostra dezenas de outros cadáveres na mesma situação, alguns já transformados em esqueletos, ao som de uma musiquinha em tom cômico composta por Henry Mancini, que transforma aquela visão mórbida em piada!


O filme não demora a situar o espectador no universo fantasioso da sua narrativa: há uma grande cidade (não-identificada) sendo disputada pelos chefões de duas quadrilhas rivais, a do "Uncle" Frank Kelly (Edmond O'Brien) e a do jovem e arrogante Big Eddie (Bradford Dillman). Um anda invadindo os negócios do outro, e o conflito entre ambos está se transformando num banho de sangue, com alta contagem de cadáveres. Até que Kelly resolve contratar os serviços de um famoso pistoleiro, Harry Crown (interpretado por Richard Harris, com um corte de cabelo que lembra Michael Caine em "Carter - O Vingador"), para botar ordem na casa.

Crown chega à cidade, reencontra um velho amor, Buffy (Ann Turkel), e logo descobre que a quadrilha de Big Eddie também contratou reforços; neste caso, o matador Marvin "Claw" Zuckerman (Chuck Connors!!!), que, como o nome já diz, tem um gancho numa das mãos - que foi decepada pelo próprio Crown em outra oportunidade, tornando o duelo entre os dois pistoleiros bastante, digamos, "pessoal".

Feitas as apresentações dos personagens, e de quem joga para o lado de quem, pode esquecer qualquer tentativa de acompanhar um roteiro plausível: 99 AND 44/100% DEAD transforma-se num longo conflito entre os gângsters, sem muita história para contar, até chegar ao barulhento tiroteio final. É quase como uma versão adulta de um desenho tipo o do Tom & Jerry - o que fica ainda mais evidente na cena em que um capanga de Big Eddie surge com uma ridícula banana de dinamite fumegante muito parecida com aquelas produzidas pelas "Indústria Acme".


O que se percebe é que, nesta mistura debochada de gêneros e estilos, todos, do diretor aos atores, parecem estar se divertindo horrores. Nunca me esqueço de que tinha um amigo dono de videolocadora que não sabia em qual prateleira guardar a fita do "Pulp Fiction": comédia, policial, drama ou aventura? Ele enfrentaria o mesmo problema com 99 AND 44/100% DEAD: não tem como chegar a um consenso sobre o gênero do filme, que às vezes é comédia (regada a muito humor negro, claro), às vezes é policial sério (com perseguições de carro, tiroteios, emboscadas), e às vezes, ainda, é simplesmente uma bobagem sem pé nem cabeça.

Claro, o mais importante é não levar o filme a sério, como fizeram os críticos e espectadores lá nos anos 70. Afinal, esta é a história de um pistoleiro chamado Harry Crown que usa uns óculos ridículos que lhe dão um ar constrangedor de CDF, mas, sempre que os tira do rosto, é porque vai fuzilar ou quebrar a cara de alguém - e passa de bobão a durão em questão de segundos, graças à ótima interpretação do falecido Richard Harris.

O mesmo Harry Crown anda sempre com duas pistolas automáticas que têm desenhos de flores gravados nas coronhas (!!!), namora uma garota que de dia é professora, e de noite é stripper (!!!), e adota como ajudante um garoto inexperiente que é capanga de "Uncle" Frank. E se o "mocinho" já é fora do convencional, o que dizer do "vilão de filme do 007" personificado por Chuck Connors, que tem diferentes próteses para encaixar na mão que lhe falta, de tesouras e ganchos a saca-rolhas (!!!) e chicotes?


Novamente, fico imaginando os espectadores lá dos anos 70 vendo esse filme esquisitíssimo, principalmente uma cena que se inscreve nos anais do absurdo: Crown foge em disparada pela rua sendo alvejado pelos disparos de um assassino com um rifle de mira telescópica, posicionado no topo de um prédio; finalmente, o herói busca abrigo atrás do carro blindado do seu contratante, Kelly, e, enquanto as balas do "sniper" ricocheteiam na blindagem do veículo, os dois começam a papear normalmente como se nada estivesse acontecendo!

Por essas e por outras, 99 AND 44/100% DEAD definitivamente é um filme que se passa no universo dos quadrinhos ou desenhos animados, e não no mundo real. É um universo absurdo em que dezenas de cadáveres são afundados por gângsters no rio e nunca localizados pela polícia (que, aliás, nunca dá as caras em momento algum da trama); em que há crocodilos nos esgotos (!!!), e ninguém parece estranhar o fato; enfim, um mundo maluco em que todos os gângsters estão o tempo inteiro vestidos com ternos pretos e chapéus, sempre padronizados, como se fossem inimigos de algum antigo jogo de videogame!

Há um charme em toda esta balbúrdia, mas claro que não é para todos os gostos. Trata-se de um autêntico FILME PARA DOIDOS, com um tom estranho de humor negro e um olhar caricatural do mundo dos gângsters, o que, aliás, levou muitos críticos da época a condenarem o diretor Frankenheimer, taxando-o de "sádico" por brincadeiras como a dos cadáveres no fundo do rio - imagine agora o que esse mesmo pessoal diria após assistir "Pulp Fiction" ou "Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes"!!! E isso que o filme de Frankenheimer nem é exatamente violento: apesar dos diversos tiroteios, não se vê uma única gota de sangue.


É uma pena que o fracasso de público e crítica tenha condenado 99 AND 44/100% DEAD a desaparecer na obscuridade. Até hoje, o filme permanece inédito no Brasil, e nos EUA só foi lançado em VHS (nada de uma segunda chance em DVD por enquanto). Continua, também, como uma mancha no currículo de Frankenheimer, sendo dificilmente citado em biografias e perfis do diretor (que, ironicamente, não deixam de fora os filmes verdadeiramente ruins assinados pelo cineasta, como "A Semente do Diabo" e "Amazônia em Chamas").

Talvez ainda demore um pouco, mas tenho certeza que 99 AND 44/100% DEAD um dia vai receber sua merecida segunda chance como o filme divertido que é, especialmente agora que público e crítica já estão mais acostumados com extravagências como esta. E é óbvio que os "novatos" Tarantino, Ritchie e Carnahan teriam muito a aprender com esta pérola esquecida - embora às vezes já pareçam estar copiando-a descaradamente!

PS: Não tente entender o título, que é tão inexplicável quanto o próprio filme. Trata-se de uma brincadeira intraduzível com uma marca de sabonete da época, que anunciava "99 - 44/100% Puro".

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99 and 44/100% Dead (1974, EUA)
Direção: John Frankenheimer
Elenco: Richard Harris, Chuck Connors, Ann
Turkel, Edmond O'Brien, Bradford Dillman, David
Hall, Constance Ford e Karl Lukas.