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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

KERUAK - O EXTERMINADOR DE AÇO (1986)


(Esta foi uma das primeiras postagens do FILMES PARA DOIDOS, publicada originalmente há cinco anos, em 11/10/2008. Como ela ainda estava no formato antigo - muito texto e alguns vídeos, sem fotos -, e pensando em quem está chegando agora e não conhece as postagens antigas, resolvi republicá-la em versão revisada e ilustrada. Dedico esta republicação ao amigo Osvaldo Neto, do blog Vá e Veja, já que eu fui o culpado por convertê-lo em fã de Paco Queruak!)

Quando eu era mais novo (não que hoje seja TÃO velho, é claro), KERUAK - O EXTERMINADOR DE AÇO era uma espécie de "clássico de infância", que eu adorava ver e rever toda vez que o SBT reprisava na Sessão das Dez ou no Cinema em Casa. Todo mundo tem esses clássicos só seus, às vezes filmes horrorosos, mas que para nós têm certo charme especial. E eu gostava tanto deste que me ressentia de não ter um espaço para escrever um texto sobre ele, que todo mundo pudesse ler - à época, quem poderia imaginar que um dia teríamos a Internet para poder expressar as ideias ao mundo inteiro?


De tão viciado na fita, comecei a usar o pseudônimo do diretor italiano Sergio Martino - que assina este e vários outros filmes como "Martin Dolman" - como se fosse o meu próprio pseudônimo, para escrever contos e postar em fóruns e chats. Até hoje tenho contas de e-mail com este nome, e até hoje continuo fã declarado desta tralha trash.

Assim como eu, muita gente viu o filme nas intermináveis reprises proporcionadas pelo SBT. E, assim como eu, muitos viraram fã desta aventura pobre e divertida. É claro que, revendo hoje, todos temos um olhar mais crítico, e algumas coisas não são mais tão legais quanto eram na infância (quando até cenas de queda-de-braço eram o máximo!). Mas, surpreendentemente, KERUAK - O EXTERMINADOR DE AÇO continua uma ótima diversão, na linha "guilty pleasure" (aqueles filmes ruins que adoramos).


Com um excelente elenco de figurinhas carimbadas das produções italianas da época, a participação de John Saxon como o malvadão e muita ação e tiros, além dos tradicionais exageros do cinema italiano, trata-se de um programa obrigatório para quem gosta desse estilo muito peculiar de "arte".

O roteiro, escrito a dez mãos (!!!) por Martino/Dolman, Elisa Briganti, Lewis E. Ciannelli, Ernesto Gastaldi e Dardano Sacchetti, é praticamente uma mistura no liquificador de tudo que se fazia no cinema americano de ação da época (anos 1980), conforme veremos ao longo dessa resenha.


Lançado em 1986, o filme se chama "Mani di Pietra" (Mãos de Pedra) na Itália e "Hands of Steel" (Mãos de Aço) nos EUA - ou seja: muda o país, muda o material das mãos do cara! No Brasil, o título envolvendo a palavra "Exterminador" é uma mera referência ao sucesso de "O Exterminador do Futuro", com Schwarzenegger, dirigido em 1984 pelo americano James Cameron. Entretanto, se fosse seguir a lógica de materiais duros (pedra, aço...) usados nos títulos italiano e americano, KERUAK deveria ser rebatizado como "Mãos de Diamante", "Mãos de Granito" ou "Mãos de Adamantium" por aqui...

Depois, nos sucessivos lançamentos e relançamentos ao redor do mundo, a obra foi ganhando outros nomes cada vez mais estrambólicos, como "Vendetta dal Futuro" (Vingança do Futuro), "Atomic Cyborg" (O Cyborg... pfffff! Atômico!!!) e até "Return of the Terminator", para forçar mesmo uma relação com "O Exterminador do Futuro"!!! Mas vamos à trama.


O forçudo Paco Queruak (e não "Keruak", como foi utilizado no título nacional, talvez porque o tradutor era fã do escritor Jack Kerouac) é um cyborg que um dia foi humano, mas sofreu um acidente e teve que ser reconstruído ciberneticamente. Restou-lhe apenas 30% de humanidade no corpo; os outros 70% foram reconstruídos mecanicamente.

Paco é "interpretado" pelo americano Daniel Greene, basicamente numa imitação do Exterminador de Schwarzenegger, e a trama se passa num "futuro" não muito distante e nunca identificado (1997, segundo algumas fontes), quando a natureza e o meio ambiente foram arruinados pela poluição - isso é apresentado principalmente nos créditos iniciais, com imagens de fábricas despejando fumaça no ambiente e mendigos dormindo na rua, e numa cena posterior em que o herói atravessa uma zona de chuva ácida como se fosse a coisa mais comum do mundo.


Condicionado para ser um "exterminador" (desculpem o trocadilho), Paco foi contratado por uma ambiciosa organização, chefiada pelo maléfico Francis Turner (John Saxon, em pequena participação onde quase sempre aparece ao telefone). A missão: eliminar (ou "exterminar") o líder de um grupo de chatíssimos ecologistas, o reverendo Arthur Mosely (Franco Fantasia, um veterano do western spaghetti).

Pouco antes de cumprir sua missão, o cyborg verifica o horário para ver se está "dentro do cronograma" e o diretor Martino nos brinda com um plano de detalhe do seu fantástico "relógio-futurista" - que, na verdade, é apenas um daqueles velhos relógios digitais de camelô que vinha com calculadora junto (abaixo), que era o máximo de tecnologia lá na década de 80!


Quando está para exterminar (hehehe) o alvo, algo no cérebro do robô assassino (lembranças de quando era humano, talvez?) faz com que ele não atinja o Reverendo mortalmente, apenas apunhale-o no peito com a própria mão (ele é um cyborg com mãos de pedra/aço, esqueceu?). Depois, Paco escapa do edifício cheio de seguranças e policiais, passando por um túnel de alta tensão, até chegar a um também estiloso "carrão futurista", que é basicamente um calhambeque qualquer com um cano prateado colado em cima. Usando este possante carrão, o cyborg foge enfrentando até a tal tempestade de chuva ácida (!!!), que corrói o veículo.

A polícia e o FBI imediatamente iniciam a perseguição ao assassino, mas não estarão sozinhos na jornada. Acontece que a organização que programou o cyborg sabe que se ele cair nas mãos da lei, pode acabar revelando alguma coisa sobre os podres de Turner. Por isso, o figurão envia alguns de seus homens em busca de Queruak no lugar onde ele nasceu - a pequena cidadezinha de Page, no desértico Arizona.


Neste momento, o cyborg vai parar em um bar/motel de beira de estrada chefiado por Linda (Janet Agren, de "Pânico"). Ele decide ficar por lá trabalhando para Linda e protegendo-a dos valentões que aparecem, mais ou menos como uma versão anabolizada do Shane, o pistoleiro do clássico "Os Brutos Também Amam". E olha que valentões não faltam! O pior deles é o caminhoneiro Raul Morales, interpretado pelo "Antropophagous" em pessoa, George Eastman, dublado com um ridículo sotaque mexicano de dar dó (o dublador parece estar imitando o Tony Montana de Al Pacino em "Scarface"!).

O grandalhão Morales se enfurece com a presença de Queruak desde o começo. Bêbado, insiste para que o herói repita a frase "Raul Morales is the strongest", ou "Raul Morales é o mais forte" (e não tem como não rolar de rir com a dublagem desta cena; eu, pelo menos, me divirto até hoje). Com seu olhar intimidador de cyborg (aliás, o único olhar que demonstra o filme inteiro), Paco responde: "You're a looser!" ("Você é um perdedor!"). Pronto, cutucou a onça com vara curta!


Eis que o bar de Linda promove competições de queda de braço (no que eu até pensei que fosse uma referência a "Falcão - O Campeão dos Campeões", aquela bomba estrelada por Stallone, mas este foi feito no ano posterior, em 1987). Raul se acha o mais fortão da região e desafia Paco para uma queda-de-braço. Mas, claro, acaba perdendo uma fortuna quando o cyborg torce seu braço, e aí também entra no time que quer dar o troco no herói.

E como nada está tão ruim que não possa piorar, um assassino profissional europeu infalível chamado Peter Hallo (Claudio Cassinelli, um dos atores preferidos de Martino, que havia estrelado "A Ilha dos Homens-Peixe") é contratado por Turner para dar cabo do robô com mãos de pedra/aço. Será o fim do nosso herói cibernético?


A partir de então, KERUAK - O EXTERMINADOR DE AÇO se desenvolve com ação incessante, deixando pouco tempo para o espectador pensar na imbecilidade e na pobreza da coisa toda. Há perseguições de carro, de caminhão, de helicóptero, muitos tiroteios, lutas e mortes. Lá pelas tantas aparece até uma segunda cyborg usada pela organização de Turner, uma loirinha histérica e furiosa que sai na porrada com Queruak mais ou menos como a Pris de "Blade Runner", naquela que definitivamente é a melhor cena do filme (acima).

O final traz um grande duelo como convém a um filme do gênero, numa fábrica abandonada, onde Queruak é cercado por diversos homens de Turner, todos eles vestidos de preto e usando capacetes de motoqueiro (lembrando os vilões de "Fuga do Bronx", de Enzo G. Castellari). Claro que eles não são páreo para o cyborg e acabam sendo exterminados violentamente, em cenas que mostram os efeitos especiais do especialista Sergio Stivaletti - com direito a soco que arrebenta o visor do capacete e o rosto de um dos homens.


KERUAK - O EXTERMINADOR DE AÇO é um filme muito divertido e engraçado - desde que se entre no espírito da coisa, claro. Daniel Greene é um péssimo ator (o que ajuda na sua interpretação de cyborg), que parece ter sido escolhido apenas por ser uma montanha de músculos igual a Schwarzenegger (Lou Ferrigno provavelmente era a segunda opção). E a mão do cara é enorme mesmo, o que ajuda o espectador a acreditar no fato de que o cyborg tem as tais "mãos de aço".

Até hoje lembro de cor da frase na capinha da fita lançada no Brasil pela América Vídeo: "Sou o resultado do projeto HOS 1. 70% do meu corpo foi reconstruído. Nível de eficiência: máximo. Características negativas: nenhuma. Poder: MÃOS DE AÇO". E o desenho da capa mostra o musculoso Paco com uma espécie de "Raio-X" de seus braços, mostrando que são cibernéticos - algo que nunca é plenamente exibido em nenhuma cena, talvez devido ao baixíssimo orçamento.

A propósito: como "ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão", a indústria de brinquedos Gulliver roubou a arte da capinha do filme para ilustrar as cartelas da sua coleção de bonecos "S.O.S. Commandos", no final dos anos 1980 (veja abaixo a prova do crime).

Participação especial de Keruak nos S.O.S. Commandos!

Embora seja mais conhecido pelos clássicos filmes "giallo" que dirigiu na década de 70, como "Torso" ou "A Cauda do Escorpião", Sergio Martino também é um bom diretor de filmes de aventura feitos com pouca grana (quem viu "A Montanha dos Canibais" e "A Ilha dos Homens-Peixe" sabe disso). Mas um filme como KERUAK realmente precisaria de um cineasta como Enzo G. Castellari para ficar ainda mais divertido e histérico.

Embora Martino até encene alguns momentos em slow motion, à la Castellari, ele na verdade fica completamente perdido ao filmar as cenas de luta. Com uma coreografia pobre (em pelo menos um momento fica evidente que Daniel Greene erra um dos socos cenográficos e seu golpe fica "no vácuo", talvez porque ele e o outro ator não tenham ensaiado o suficiente), e a câmera muito próxima dos atores, as cenas de pauleira são qualquer-nota e pouco memoráveis.


A investigação policial sobre o atentado ao Reverendo lá no começo do filme, comandada por um policial negro e por uma técnica forense chamada Dra. Peckinpah (?!?), também é completamente dispensável e apenas deixa o filme em ponto-morto, atrasando as cenas de ação. E rende um momento simplesmente ridículo, quando o ferimento no peito da vítima é "escaneado" por computador e a máquina revela as possíveis armas utilizadas na agressão: "escultura" (?), "barra de ferro", "peso de papel" (?) e... "MÃO"!

Para compensar estes pontos baixos, o diretor recheia o filme com momentos divertidos pela sua total insanidade, como quando o cyborg disputa uma queda-de-braço com um forçudão chamado Blanco (Darwyn Swalve) em estilo "roleta-russa": o competidor que perder terá sua mão picada por uma cobra cascavel!


A própria pobreza de recursos, dos carros "futuristas" e dos cenários conspira para transformar KERUAK - O EXTERMINADOR DE AÇO numa divertida comédia involuntária. É difícil segurar o riso quando John Saxon tenta enfrentar seu cyborg usando um "canhão-laser" que não passa de um tubo preto de plástico com um velho flash de câmera fotográfica colado em cima!

Outros momentos de pobreza constrangedora envolvem o patético laboratório do cientista que criou Queruak (interpretado por Donald O'Brien), e que se resume a meia dúzia de canos prateados e umas luzes coloridas, e a "tecnologia de Atari" (abaixo) do "detector de calor" usado pelo matador Hallo para identificar quantas pessoas estão no interior de um local.


Felizmente, a pobreza não se estende à belíssima trilha sonora do músico nascido no Brasil Claudio Simonetti (aquele mesmo da banda Goblin, que fez as trilhas de "Dawn of the Dead", "Suspiria" e tantos outros clássicos). Pelo contrário, sua trilha poderia muito bem estar num filme melhorzinho, sublinha perfeitamente os momentos de ação e suspense, e é puro anos 80 (ou seja, sintetizadores na potência máxima).

Tanto que na edição 2013 do Fantaspoa (Festival de Cinema Fantástico realizado em Porto Alegre), um dos convidados de honra era o simpaticíssimo Simonetti, que fez seu primeiro concerto no Brasil tocando as trilhas mais famosas do seu repertório. Acompanhando-o na passagem de som, falei do meu apreço pelo seu trabalho em KERUAK e ele improvisou um trechinho da música-tema no teclado (como você pode ver aos 1min40s deste vídeo).


Infelizmente, KERUAK - O EXTERMINADOR DE AÇO também marca a despedida definitiva do ator Claudio Cassinelli. Durante as filmagens, ele estava a bordo de um helicóptero que perdeu o controle, chocando-se contra uma ponte e explodindo ao atingir o chão. O ator, que estava com 47 anos, morreu junto com o piloto, antes de concluir sua participação no filme.

E como não havia nenhuma maneira de filmar as cenas restantes de Cassinelli como Peter Hallo, a solução foi matá-lo também no filme! Assim, na versão final improvisada, Turner acusa Hallo de ser fraco por ter falhado em sua missão de matar Queruak, e manda outro de seus capangas atirar num vulto que se aproxima do seu helicóptero - e que, obviamente, não é Cassinelli. Ouvem-se alguns tiros e um grito off-screen, fazendo-nos acreditar que o Hallo foi baleado e morto para poder ser retirado da narrativa (sequência de fotos abaixo).


Claro que o acidente marcou Martino para sempre. Na faixa de comentário do DVD importado de "A Montanha dos Canibais", o diretor comenta o caso: "Um crítico da época escreveu que o filme era tão ruim que não valia a vida de Claudio. Ora, nenhum filme vale a vida de um ator!".

Quem deve respirar aliviado até hoje é John Saxon, já que ele se recusou a filmar qualquer cena nos Estados Unidos e gravou toda a sua participação na Itália. Caso contrário, seguindo o roteiro original, ele estaria junto com Cassinelli no helicóptero naquele dia fatídico!


No fim, em meio à ação, o roteiro de KERUAK - O EXTERMINADOR DE AÇO acaba não desenvolvendo sua melhor ideia, e que o posterior "Robocop" (1987) trabalhou de forma muito mais eficiente: quem é Paco Queruak? Será ele uma pessoa reconstruída mecanicamente, ou apenas um cyborg 100% mecânico que foi criado para pensar que é humano?

Durante todo o filme, o espectador é levado a acreditar que apenas os membros do cyborg são biônicos, mas o restante é humano e tem "alma". Só que o final é mais frio e pessimista (e bem interessante, também), embora a história encerre sem explicar o que acontece com o personagem - apenas entra um letreiro absurdo dizendo: "Em algum lugar do nosso futuro próximo, a Era do Cyborg começará". Bleargh!!!


Uma última curiosidade: numa cena (acima), Queruak dá uma conferida nos mecanismos cibernéticos do seu braço, e vemos um plano do ator Daniel Greene olhando para baixo e então um outro plano mostrando um braço parcialmente aberto, exibindo a estrutura mecânica que movimenta a mão e os dedos.

Bem, há quem jure que este último plano não foi filmado pelos italianos: os produtores simplesmente teriam comprado alguns takes filmados por James Cameron para a cena em que Schwarzenegger se "auto-conserta" no banheiro de um motel vagabundo em "O Exterminador do Futuro", e que não foram aproveitados na edição final! Nunca consegui confirmar a informação, mas o nível dos efeitos de maquiagem neste take do braço aberto é realmente muito superior a qualquer outra coisa da produção italiana. Portanto...

PS: Depois de uma curta e fracassada trajetória como herói de ação, o brucutu Daniel Greene acabou se rendendo à comédia. Ele fez uma inesperada parceria com os Irmãos Farrelly (aqueles que dirigiram "Debi & Lóide"!!!), e já apareceu em sete comédias da dupla, incluindo uma participação maior como vilão em "Eu, Eu Mesmo e Irene". Quem diria que Paco Queruak acabaria virando piada MESMO?


Trailer de KERUAK - O EXTERMINADOR DE AÇO



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Mani di Pietra / Hands of Steel (1986, Itália)
Direção: Martin Dolman (aka Sergio Martino)
Elenco: Daniel Greene, Janet Agren, John Saxon,
Claudio Cassinelli, Donald O'Brien, Amy Werba,
Robert Ben e Pat Monti.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

A ILHA DOS HOMENS-PEIXE (1979)


Em 1979, os irmãos Luciano Martino (produtor) e Sergio Martino (diretor) lançaram um famoso filme misturando aventura, terror e trash não-intencional, A ILHA DOS HOMENS-PEIXE - que se transformou no clássico de toda uma geração aqui no Brasil graças ao Silvio Santos e sua extinta Sessão das Dez do SBT. Pois eis que um tal de H.G. Wells, inglês safado, cara-de-pau e oportunista, plagiou praticamente todo o argumento da produção italiana num livro sem-vergonha chamado "A Ilha do Dr. Moreau"!

Tanto no filme como no livro que o copiou, um cientista isolado numa ilha misteriosa dá vida a criaturas híbridas de homens e animais; a única diferença é que enquanto A ILHA DOS HOMENS-PEIXE tem criaturas aquáticas, a cópia "A Ilha do Dr. Moreau" envolve misturas de humanos com diferentes animais, inclusive felinos, numa artimanha ardilosa do picareta Wells para que ninguém percebesse que ele estava plagiando o filme italiano. E é um verdadeiro milagre que os produtores italianos não tenham processado este inglês sem-vergonha para que ele aprendesse a ter suas próprias ideias ao invés de copiar as dos outros!


Bom, qualquer pessoa com um mínimo de informação (e noção) já deve ter entendido que os dois primeiros parágrafos deste texto não passam de uma brincadeira. H.G. Wells já estava morto, enterrado e transformado em pó há muito tempo quando a italianada lançou A ILHA DOS HOMENS-PEIXE, que é, ela sim, uma cópia bagaceira da obra de Wells "A Ilha do Dr. Moreau", que foi lançada bem antes, em 1896.

As aventuras do Dr. Moreau e sua ilha de criaturas mutantes renderam três versões cinematográficas oficiais (por enquanto): a primeira, "Island of Lost Souls" (“A Ilha das Almas Perdidas”), em 1933, com Charles Naughton no papel-título; a segunda em 1977, com Burt Lancaster interpretando o cientista louco (foi esta que inspirou os irmãos Martino a realizarem sua própria produção “não-oficial” baseada "livremente" na mesma história); e a terceira e última em 1996, com Marlon Brando. Já A ILHA DOS HOMENS-PEIXE não teve a mesma repercussão e rendeu, quando muito, uma sequência improvisada que o próprio Sergio Martino dirigiu em 1995.


Mas, verdade seja dita, taxar A ILHA DOS HOMENS-PEIXE de uma mera cópia carbono - e pobre, ou trash - do livro de H.G. Wells, ou mesmo da versão cinematográfica "rica" de 1977, é uma grande injustiça. Isso porque o filme de Martino tem vida própria. É uma história maluca como convém às aventuras classe B daquele período, e com uma excelente produção, que destoa da média de pobreza dos filmes italianos feitos na cola de sucessos do cinema americano.

Tem, por exemplo, uma belíssima e bem cudada fotografia de Giancarlo Ferrando, um ótimo trabalho de direção e um elenco bastante acima da média, que inclui Claudio Cassinelli, Barbara Bach (ex-Bond Girl e atual sra. Ringo Starr), Richard Johnson (um respeitado ator shakesperiano que não tinha vergonha de aparecer nos filmes de horror italianos) e até o norte-americano Joseph Cotten (abaixo), que nos bons tempos foi coadjuvante em clássicos como "Cidadão Kane", mas, depois de velho, decadente e esquecido, tinha que pagar mico em produções italianas baratas para pagar as contas.


O roteiro foi assinado em conjunto pelos irmãos Martino, com a ajuda de Sergio Donati e Cesare Frugoni. A história começa com uma legenda informando que estamos no Mar do Caribe em maio de 1891, onde um bote à deriva em algum lugar do oceano leva diversos homens vestindo farrapos. São prisioneiros que estavam sendo transportados até uma colônia penal quando sua embarcação afundou - mas, para economizar os trocados da produção, o naufrágio não é mostrado.

O único homem do lado da lei entre os sobreviventes é o tenente Claude de Ross (Cassinelli, muito bem no papel), médico-militar que conquistou o respeito de alguns dos bandidos ao soltá-los do cárcere enquanto o navio afundava, e o ódio de outros por garantir que irá levá-los de volta à prisão caso sobrevivam e consigam chegar a terra firme.


Não demora para misteriosas criaturas aparecerem nadando ao lado do bote, impulsionando-o até um monte de rochedos, onde o barquinho se arrebenta como uma casca de ovo; diversos dos sobreviventes são atacados pelas criaturas e desaparecem submergindo nas águas turvas. E como o dinheiro da produção foi aparentemente todo gasto em outro departamento, as cenas dos ataques dos monstros são confusas, escuras, feitas em closes e com cortes rápidos, sem permitir que o espectador veja muita coisa!

Claude e cinco prisioneiros acordam já em terra firme, numa ilha com um vulcão que ninguém imaginava existir naquele ponto do oceano. Ali, uma série de infortúnios trata de matar quase todos os personagens secundários, desde uma fonte com água sulfurosa envenenada (e é de se espantar que Skip, o mané que morre envenenado, não tenha desconfiado daquela água embranquecida e esfumaçante...), até uma daquelas clássicas armadilhas no meio da selva (no caso, um buraco repleto de estacas de madeira coberto com galhos de árvore para enganar os incautos).


Outro dos prisioneiros, François (Francesco Mazzieri), vai caçar para que o grupo possa comer e acaba sendo dilacerado pela garra de um dos homens-peixe, numa cena pra lá de tosca que me dava pesadelos quando eu era criança. Ao encontrarem o cadáver mutilado de François, seus amigos discorrem sobre o fato: “Deve ter sido devorado por um crocodilo”, diz José (Franco Iavarone), um prisioneiro enorme que parece um clone careca e estrábico do Bud Spencer. Mas Claude, do alto de sua posição de especialista em crocodilos, declara convicto: “Crocodilos não despedaçam uma pessoa assim!”.

Após todos estes contratempos (passaram somente uns 10 minutos e já morreu quase todo mundo!), o grupo acaba reduzido a um modesto trio: Claude, José e o maldoso Peter (Roberto Posse), sendo que este último quer ver o tenente morto a qualquer custo, algo a se esperar de um assassino e estuprador condenado, não é mesmo? E eis que surge Amanda (Barbara Bach, quem mais?), toda bela e formosa montada num cavalo, sugerindo aos três que partam imediatamente - claro, se fosse assim tão fácil...


Os homens preferem seguir a moça e chegam até uma mansão construída na beira da praia, onde Amanda vive com Edmund Rackham (Richard Johnson, quem mais?). O cara é o bam-bam-bam da ilha: domina os nativos que praticam vodu, domina Amanda mesmo não sendo casado com a moça, e ainda parece saber muita coisa sobre os segredos do lugar. Rackham convida o trio para uma temporada em sua casa. Sem muitas opções, já que a ilha não tem hotéis, pousadas ou albergues, os homens aceitam a hospitalidade do “simpático” Rackham. Ah, se eles soubessem...

Logo o espectador vai descobrir que Rackham domina os nativos através da sua fiel ajudante Shakirah (Beryl Cunningham), uma sacerdotisa vodu. Apesar do nome, Shakirah não canta e nem dança como sua genérica latina; infelizmente, também não é gostosa como a contraparte que canta e dança! Aliás, sua presença no filme é completamente gratuita, já que a moçoila se limita a fazer vodu e balbuciar bobagens proféticas com os olhos arregalados, tipo “Eu vejo a morte!”, e coisas do gênero.


Mas e os homens-peixe do título? Ah, estes reaparecem numa cena que pode ser considerada ao mesmo tempo poética e sensual ou ridícula e apelativa, quando Amanda caminha até a beira da praia e entra no mar (uma mera desculpa para mostrar Barbara Bach com a roupa molhada e colada ao corpo escultural), sendo logo cercada por um montão de homens-peixe.

Esta é a primeira vez, no filme inteiro, que os bichos aparecem sem ser de relance, e aí finalmente podemos dar uma boa olhada no figurino de carnaval de quinta categoria dos monstrengos! Amanda é a responsável por alimentar os bichos com uma poção que os coloca sob o controle do maléfico Rackham. Mas de onde vieram os homens-peixe? Quem os criou? E para quê?


Acontece que, como boa cópia de "A Ilha do Dr. Moreau", A ILHA DOS HOMENS-PEIXE precisa do seu próprio cientista maluco. Aqui, ele é o Dr. Ernest Marvin (Joseph Cotten), o pai da doce Amanda, e um famoso biólogo mantido em cárcere privado por Rackham.

E como o roteiro ainda não estava maluco o suficiente com sua mistura de Dr. Moreau, ilha com vulcão, vodu e homens-peixe, os irmãos Martino adicionam mais um elemento fantástico à trama: o continente perdido de Atlântida! Sim, amiguinhos, a assim chamada "Ilha dos Homens-Peixe" fica exatamente sobre as ruínas submersas do continente perdido de Atlântida!!!


Como os templos e palácios do antigo povo não podem ser alcançados por homens comuns, já que estão muitos mil metros abaixo da superfície do mar, o diabólico Rackham planejou obrigou o professor Marvin a criar homens-peixe a partir de seres humanos, para depois utilizar os monstruosos cabeças-de-bagre (literalmente) como escravos para mergulhar até as ruínas do continente perdido e resgatar o ouro lá existente!

O heroi Claude descobre a trama nefasta da pior forma possível quando ele e Amanda encontram o pobre José (um dos prisioneiros que se salvou do naufrágio, lembra?) dentro de um tanque, numa espécie de etapa intermediária da transformação em peixe. Quem viu essa cena quando criança provavelmente teve pesadelos. Brrrr!!!


Trabalhando com o orçamento merreca típico das produções-italianas-xerox-de-filmes-americanos da época, mas com um roteiro mais interessante que a média das cópias bagaceiras carcamanas, o diretor Martino utiliza sabiamente os efeitos especiais apenas razoáveis, os cenários criativos e até cenas de documentários para baratear a produção (quando o vulcão da ilha entra em erupção, por exemplo, vemos cenas reais de um vulcão cuspindo lava, mescladas a cenas até razoáveis da miniatura de uma mansão pegando fogo).

Vale um elogio, também, para o diretor de arte Giacomo Calò Carducci e sua belíssima e inspirada cenografia, principalmente no laboratório do Professor Marvin, repleto de equipamentos “modernos” para a época e até desenhos que lembram os esboços do italiano Leonardo DaVinci! Tem uma cena em que Claude e Rackham entram num submarino rudimentar, na verdade uma cápsula metálica com janelinhas de vidro presa a um cabo de aço, que também remete aos estudos de DaVinci. Muito bem bolado!


O que pode frustrar o espectador são os monstros do título, que aparecem poucos e são pobres de dar dó, resumindo-se a figurantes vestindo umas fantasias pobres e imóveis projetadas por Massimo Antonello Geleng (que já trabalhou com Fulci, Argento, Bava e outros mestres italianos). As máscaras são inexpressivas e só os olhos se mexem, mas pelo menos o diretor foi esperto para mostrar as criaturas ou muito de longe ou muito de perto (com closes dos olhos, das bocas e das garras), mantendo o nível dentro do suportável.

Agora, um pouco mais de violência explícita faria bem ao filme, já que os homens-peixe atacam usando suas afiadas garras, mas sempre arranhando as vítimas muito superficialmente, e mesmo assim elas morrem com a maior facilidade - menos quando o arranhão em questão é feito no herói Claude, é claro!


A ILHA DOS HOMENS-PEIXE ganhou duas versões diferentes. Os brasileiros conhecem a italiana/européia, que estreou nos cinemas da Itália em 18 de janeiro de 1979. A outra versão é a americana, uma picaretagem da grossa; não por acaso, o nome do famoso produtor classe B Roger Corman está associado a ela. A história começa em 1981, quando Corman, através da sua distribuidora de então (New World Pictures), comprou os direitos para exibição do filme de Sergio Martino em território americano.

Ele rebatizou a película com o título “Something Waits in the Dark” (Algo Espera na Escuridão), para lançá-la nos cinemas barateiros que exibiam esse tipo de produção. O problema é que, ao contrário de outros exploitation movies produzidos na Itália, A ILHA DOS HOMENS-PEIXE não tem violência nem nudez suficientes para atrair a atenção do público que frequentava esses cinemas na época! Para resolver o problema, Corman tirou o filme de cartaz e mandou alguns colaboradores habituais filmarem cenas alternativas (!!!), que foram inseridas à montagem original sem a menor cerimônia. Esta versão "anabolizada" foi rebatizada "Screamers".


O hoje famoso Joe Dante, que na época trabalhava com Corman, foi um dos responsáveis pela edição dos enxertos (e sua participação foi creditada em italiano, como "Giuseppe Dantini"!). As cenas adicionais foram escritas e filmadas por Miller Drake, que posteriormente faria uma renomada carreira como técnico de efeitos especiais. Assim, o filme ganhou um prólogo diferente do original, mostrando um grupo de piratas que vai parar na Ilha dos Homens-Peixe, apenas para serem esquartejados violentamente pelas criaturas (afinal, nenhum deles poderia aparecer no restante da trama "normal").

Corman nem mesmo mandou construir uma roupa de monstro igual à da versão europeia: simplesmente mandou seus subalternos NÃO mostrarem os homens-peixe, filmando apenas closes de uma garra qualquer dilacerando as vítimas!  Com quase 12 minutos de duração, o "prólogo americano" foi exibido antes das cenas com os prisioneiros na jangada (o início “oficial” da versão européia), e cinco atores americanos participaram - dois deles Cameron Mitchell e Mel Ferrer, nomes conhecidos daquela época!


Os homens-peixe de Roger Corman




A cena em que Cassinelli encontra José parcialmente transformado em homem-peixe também ganhou novos takes que evidenciavam a dolorosa mutação. O responsável por esses efeitos adicionais foi outro famosão: ninguém menos que Chris Wallas, então um iniciante em seus primeiros trabalhos, mas que em seguida ganharia até Oscar pelos seus efeitos especiais em "A Mosca", de David Cronenberg! Não por acaso, o gore e a maquiagem dos enxertos ianques são bem melhores do que tudo que aparece na versão original italiana!

Isso transforma esses minutos a mais em algo tão interessante quanto o filme em si. A “versão estendida” de Corman nunca chegou a ser lançada em DVD, mas as cenas adicionais aparecem como extras no DVD europeu do filme de Martino, e hoje já podem ser vistas no YouTube.


Aparentemente, o velho Roger gostou tanto da experiência com as criaturas oceânicas que, apenas um ano depois do lançamento de A ILHA DOS HOMENS-PEIXE, produziu seu próprio filme com monstrengos vindos do mar, o espetacular "Humanoids from the Deep" (1980), este sim com muito gore e mulher pelada, mostrando inclusive os monstrengos estuprando umas garotas peitudas!!!

Bastante popular para a geração que foi criança nos anos 1980, A ILHA DOS HOMENS-PEIXE anda um tanto esquecido hoje em dia, principalmente para esta nova geração acostumada a horrores criados por computação gráfica. A emissora do Homem do Baú não o reprisa há um bom par de décadas, e provavelmente devem ter gastado o rolo de tanto que o exibiram “pela primeira vez na televisão”.


Quase 20 anos atrás, em 1995, Sergio Martino revisitou sua famosa obra com uma produção bem picareta filmada para a TV italiana, e chamada "La Regina degli Uomini Pesce" (A Rainha dos Homens-Peixe). Mas o filme é menos uma continuação e mais um engodo, reaproveitando cenas do original e de outro filme do diretor, "2019 - After the Fall of New York (1983). A história agora se passa no futuro e mostra dois jovens punks abandonando a decadente Nova York e indo parar na famosa ilha. É simplesmente horrível, em todos os sentidos.

O melhor mesmo é rever o original. Afinal, numa época de homens-mosquito, homens-tubarão e homens-cobra feitos por computação gráfica (em produções paupérrimas), sempre é ótimo rever os homens-peixe de Sergio Martino, com todo o seu charme pobretão e mambembe. E é uma pena que hoje não se façam mais filmes como A ILHA DOS HOMENS-PEIXE.

Vai ver é por isso que as crianças do século 21 crescem tão infelizes...


Trailer de A ILHA DOS HOMENS-PEIXE



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L'isola degli Uomini Pesce / The Island 

of the Fishmen (1979, Itália)
Direção: Sergio Martino
Elenco: Claudio Cassinelli, Barbara Bach, Richard
Johnson, Beryl Cunningham, Joseph Cotten, Franco

Iavarone, Roberto Posse e Bobby Rhodes.