Dir: Patty Jenkins)
Um filme tão torto, errado e desconjuntado que me lembrou o choque que levei ao ver “Superman III” pela primeira vez láááááá atrás nos anos 1980: depois de dois filmaços, aquela tentativa absurda de fazer humor com o herói parecia algo de extremo mau gosto. Pois eis que este novo filme da Mulher-Maravilha tem muito de “Superman III”: troca o clima mais sério e solene da aventura anterior (que se passava na 1ª Guerra Mundial) por um tom mais leve e fantasioso, e tem como vilões um empresário almofadinha e uma historiadora sem vida social (em “Superman III” os antagonistas eram um empresário almofadinha e um hacker sem vida social). Assim como “Superman III” tinha um computador malvado que fazia de tudo – de controlar o clima a transformar pessoas em cyborgs –, aqui há uma ridícula pedra mágica que realiza os desejos mais estapafúrdios dos personagens, transformando “Mulher-Maravilha 1984” numa versão blockbuster da franquia de horror classe B “Wishmaster” (aquela em que você faz um desejo e se ferra). Com o passar dos anos eu fiz as pazes com “Superman III” e aprendi a apreciar seus excessos, mas isso dificilmente vai acontecer com o filme da Mulher-Maravilha, que é muito longo, inchado e ridículo. A ambientação na década de 1980, que eu achava a coisa mais legal na proposta é sub-aproveitada. Pior: esse negócio é vendido como filme da Mulher-Maravilha e tem uma supervilã mulher (a tal historiadora, que se transforma numa criatura chamada Cheetah), mas o arco de ambas as personagens é terrível. A heroína interpretada pela maravilhosa Gal Gadot quase deixa o mundo explodir para curtir a paixão pelo ressuscitado namorado do primeiro filme, Steve Trevor (que aqui encarna no corpo de outra pessoa, num recurso de extremo mau gosto), e a vilã se transforma numa mulher-felina tosquíssima no ato final, e sem qualquer justificativa (parece uma figurante que fugiu do filme “Cats” e caiu neste aqui). Enquanto o arco das meninas é apagado, os meninos recebem os holofotes: um filme chamado “Mulher-Maravilha 1984” é quase todo sobre as dificuldades de adaptação do redivivo Chris Pine na década de 1980 (estilo “Projeto Filadélfia”) e sobre o drama particular do vilão yuppie Maxwell Lord, interpretado de maneira cômica e afetada por Pedro Pascal (que tem mais tempo em cena no filme da Mulher-Maravilha do que a própria Mulher-Maravilha). Mesmo com 2h30min de duração, e tempo suficiente para contar a história direitinho, o final é apressado, com uma guerra mundial sendo resolvida em segundos (e tão fácil quanto o Super-Homem fazendo a Terra girar ao contrário), e o filme termina sem explicar o destino dos vilões, que pelo jeito não vão pagar pela balbúrdia que aprontaram. Pelo menos as cenas de ação são bem boas, especialmente a que acontece numa estrada no Egito (que lembra, talvez propositalmente, “Os Caçadores da Arca Perdida”). Mas são poucas e espaçadas num filme com quase três horas e cheio de gorduras e problemas. Fica difícil entender para qual público exatamente a aventura se destina, pois a história não fará o menor sentido para os millennials, é infantil demais para os adultos, e não funciona sequer como “fábula feminista” – tanto a super-heroína quanto a supervilã são absolutamente dependentes dos homens da narrativa. Se “Mulher-Maravilha 1984” tivesse sido produzido de verdade nos anos 1980, eles pelo menos poderiam justificar os absurdos e excessos alegando que o filme foi movido à cocaína, como muitas outras superproduções daquele período.
PROBLEMAS MONSTRUOSOS (Love and Monsters, 2020, Canadá/EUA. Dir: Michael Matthews)
Justamente o filme que a humanidade precisava em 2020, “Love and Monsters” é uma aventura divertida, simpática e otimista sobre... o fim do mundo! Dirigido pelo sul-africano Michael Matthews, às vezes lembra uma versão cômica de “A Quiet Place”: num futuro próximo, depois que a radiação transformou insetos, répteis e anfíbios em gigantescos monstros assassinos que devastaram o planeta, os seres humanos sobreviventes foram obrigados a viver confinados no subterrâneo. Até que o protagonista banana interpretado por Dylan O'Brien reencontra uma paixão do mundo de antes através das ondas do rádio, e resolve aventurar-se pelo mundo lá fora. Sem nunca ter lutado na vida, ele agora precisa enfrentar uma longa e perigosa viagem a pé rumo à colônia de sobreviventes onde ela está confinada. É até uma pena que um filme tão sensível não tenha conseguido chegar decentemente aos cinemas em tempos de lockdown, e que tenha sido largamente ignorado pelo grande público. Porque “Love and Monsters” está repleto de momentos muito bonitos, como a interação do protagonista com um cachorro que perdeu a dona, ou o sensível diálogo do herói com um robô cuja bateria está prestes a se esgotar, “matando-o” para sempre (cena que lembra aquele diálogo final de rasgar o coração em “Blade Runner”, entre Harrison Ford e Rutger Hauer). Definitivamente não é o tipo de material que se espera saindo de um grande estúdio, e lembra o que caras como Spielberg, Ron Howard e Joe Dante faziam na década de 1980. Lá pelas tantas o protagonista soma forças com uma dupla de sobreviventes (um sujeito ranzinza e uma garotinha valentona) e parece que a coisa vai virar um remake de “Zumbilândia”, com o Michael Rooker imitando os trejeitos do Woody Harrelson naquele filme. Felizmente isso nunca acontece e a trama reserva algumas boas surpresas e também alguns inevitáveis clichês (tipo um vilão mais do que óbvio). O que temos aqui é aquele tipo de história em que a jornada vale mais do que o objetivo, e que na conclusão deixa uma pontinha de esperança em tempos de pandemia. Porque, como diz o protagonista, o mundo lá fora é um lugar perigoso que também pode ser muito bonito quando a natureza não está tentando te matar. Em outros tempos, “Love and Monsters” seria um hit da Sessão da Tarde. Se topar com ele por aí, não deixe de ver!
Alguém bateu no liquidificador os roteiros de “Feitiço do Tempo” e “Crank/Adrenalina” (com o Jason Statham), e o resultado foi esse “Boss Level” – de longe a coisa mais divertida que o Joe Carnahan já dirigiu. Deve ser o centésimo filme sobre loop temporal da década (no mesmo ano de outra bela surpresa, “Palm Springs”), mas mesmo assim o resultado é muito legal e consegue injetar sangue novo no argumento. Frank Grillo interpreta um sujeito casca-grossa que, graças ao milagre da repetição temporal, sempre acorda na manhã do dia de merda em que está sendo caçado por um excêntrico time de assassinos profissionais. Mais hora, menos hora, ele será eventualmente alcançado pelos perseguidores e morto de maneira violenta... apenas para despertar na mesmíssima manhã e sem um minuto de folga (o cara já acorda tendo que lidar com um helicóptero disparando rajadas de metralhadora no seu apartamento!). Tendo passado por isso outras cem vezes (e morrido mortes violentas a cada vez), o protagonista já decorou os padrões para conseguir sobreviver por tempo suficiente para ir ao bar mais próximo, onde pelo menos pode encher a cara enquanto aguarda pela próxima morte e pelo próximo dia repetido. Enquanto outros filmes com a mesma temática enfocam mais o processo de crescimento do protagonista durante o loop temporal (aprendendo a ser uma pessoa melhor, apaixonando-se por alguém, etc etc), em “Boss Level” o protagonista basicamente só vai ficando mais puto e mais fodão a cada nova morte. Carnahan tem um prazer quase sádico ao mostrar Grillo sendo executado das maneiras mais violentas e absurdas possíveis (o que inclui ser arpoado e arrastado pelo asfalto por um caipira numa caminhonete). Depois de dezenas de processos de tentativa e erro, o herói finalmente descobre uma possível escapatória para seu triste destino e passa a lutar para tentar sobreviver àquele dia – e, quem sabe, ver o próximo. Vilão em alguns filmes do Capitão América, Grillo tenta conquistar seu lugarzinho de honra entre os brucutus do cinema de ação contemporâneo. E não faz feio: ele domina o filme mesclando habilidades de porradaria, barriga de tanquinho e muito bom humor. Também contracena com um elenco excêntrico, onde vê-se pequenas participações de Naomi Watts (oi, sumida!), Michelle Yeoh e até Mel Gibson como o grande vilão fumador de charutos. As cenas de ação são tão absurdas e dementes quanto se espera do plot, mas a edição é menos frenética e modernosa do que a de outros filmes com pegada parecida (tipo o já mencionado “Crank”, ou o recente “Guns Akimbo”). Rola também uma curiosa homenagem aos games de 8-bits que educaram toda uma geração, desde o título do filme até os créditos iniciais e a música da abertura apresentados em formato de videogame. O herói tenta se reaproximar do filho num fliperama especializado em games antigos, durante incontáveis partidas de “Street Fighter II”. E o próprio processo de morrer/reviver/aprender padrões enfrentado por ele lembra o processo pelo qual todo jogador de videogame já passou alguma vez nessa vida. Curiosamente, para um filme que passa noventa-e-poucos minutos sem se levar a sério, “Boss Level” termina com uma última cena realista e inesperada – mas, ao mesmo tempo, beeeeeeem frustrante. Parece até que, aos 45 do segundo tempo, resolveram falar sério numa história que até então não passou de uma grande bobagem...
12 HOUR SHIFT (2020, EUA. Dir: Brea Grant)
Uma das maiores surpresas de 2020, esta mistura de thriller e comédia de humor negríssimo foi escrita e dirigida por uma atriz (Brea Grant), e merece ser mais conhecida. A história se passa em 1999 e traz Angela Bettis como uma enfermeira viciada em drogas que enfrenta um cansativo turno duplo de 12 horas no hospital local. Para complementar a renda mensal, ela ajuda “por fora” uma quadrilha de tráfico de órgãos: dá um jeito de acelerar a morte de pacientes prestes a bater as botas para poder extirpar-lhes um ou outro órgão que está sendo cobiçado no mercado negro! As confusões começam quando a prima da enfermeira – a típica white-trash burra e lesada – perde um desses órgãos (um rim) no caminho entre o hospital e o esconderijo da quadrilha. Ameaçada pelos bandidos, que lhe dão duas horas para resolver a cagada, ela volta ao hospital e começa a tocar o terror numa aloprada tentativa de arranjar um órgão substituto para o que foi extraviado. “12 Hour Shift” ri da tragédia e da estupidez humana, e definitivamente não é para todos os públicos: até que comecem a subir os créditos finais, pessoas inocentes serão mortas por nada, muito sangue será derramado (e esguichado), e praticamente nenhum dos personagens malvados da narrativa será devidamente punido – eles sequer aprendem algo com os seus erros. É o tipo de filme que, se o Tarantino tivesse dirigido, seria o grande hit do ano, mas como é uma produção barata e independente acabou passando fora do radar. O show é todo de Angela Bettis, que atravessa o filme com uma fantástica expressão de enfado, mesmo quando está abrindo corpos alheios para roubar órgãos. Mas vale ficar de olho na desconhecida Chloe Farnworth, que rouba cenas como a idiota com cara de crackeira que vai empilhando cadáveres na sua tentativa de conseguir um novo rim para salvar o próprio pescoço. “12 Hour Shift” também é dirigido e editado com uma energia contagiante – o tipo de tesão que é cada vez mais difícil de ver nos filmes dos grandes estúdios. Altamente recomendado e um autêntico Filme para Doidos!
DRUK (2020, Dinamarca/Suécia/Holanda. Dir: Thomas Vinterberg)
O consumo excessivo de álcool é um assunto mais complexo do que parece, e portanto difícil de abordar no cinema. Geralmente temos comédias que celebram a bebedeira inconsequente, tipo “Se Beber Não Case”, ou dramas pesados sobre o alcoolismo, como o deprimente “Despedida em Las Vegas”. Mas na vida real as coisas não são assim oito ou oitenta: condenamos estupro de vulnerável e motoristas bêbados provocando tragédias no trânsito, e nos compadecemos do drama de muitas famílias destruídas pelo alcoolismo, ao mesmo tempo em que consideramos socialmente aceitável encher a cara na balada ou fazer pub crawl. Particularmente, eu tive casos muito tristes de alcoolismo na família e pude acompanhar de perto seus efeitos devastadores; mesmo assim, o álcool sempre esteve presente na minha vida de forma mais ou menos equilibrada, quando pela lógica eu devia fugir da bebida como o vampiro da cruz. Por isso é uma surpresa esta bela produção dinamarquesa – uma dramédia que aborda o tema de maneira adulta, sem glorificar os efeitos do excesso de álcool, mas ao mesmo tempo sem cair no dramalhão ou no moralismo barato. A história acompanha quatro amigos quarentões, todos professores que trabalham na mesma escola e estão passando pela crise da meia-idade. O protagonista Martin (interpretado por Mads Mikkelsen) não consegue se conectar com os alunos e mal fala com a própria esposa ou com os filhos em casa, atravessando a vida num estado letárgico de quase depressão. Certa noite, durante uma celebração regada a vinhos e vodka, o quarteto discute uma teoria que defende que o ser humano nasce sem uma taxa equilibrada de álcool no sangue, e por isso deve compensar bebendo diariamente para “equilibrar as coisas” e supostamente viver melhor. Eles resolvem fazer um experimento com a desculpa de escrever um artigo científico: beber uma quantidade considerável de álcool toda manhã ou em horário de trabalho, para ver se realmente conseguem viver mais leves e felizes. Através desta prática curiosa, eles veem sua vida social mudar para melhor – incluindo a relação com alunos, colegas de trabalho e esposas. Mas é claro que a experiência logo sairá do controle. O diretor e corroteirista Vinterberg explica que “Druk” é menos um filme sobre alcoolismo e mais um estudo sobre o descontrole: sim, os personagens realmente se tornam “pessoas melhores”, mais divertidas e sociáveis, nos estágios iniciais da bebedeira, mas progressivamente começam a encarar o álcool como uma solução miraculosa para consertar o vazio de suas vidas. No fim, talvez o álcool nem seja o verdadeiro responsável por esta mudança nos personagens; eles apenas precisavam de um empurrãozinho para começar a mudar as próprias vidas, como outros buscam a felicidade em drogas pesadas ou casos extraconjugais. Evitando julgamentos ou falsos moralismos, o filme tem um momento pra lá de politicamente incorreto em que um dos protagonistas faz seu aluno menor de idade tomar uns goles para controlar o nervosismo antes de uma prova final – e funciona! Ao mesmo tempo, “Druk” é didático ao mostrar que não há felicidade em beber até cair ou acordar todo mijado. O problema começa, segundo o filme, quando não é você que usa a substância (seja álcool ou outros tipos de entorpecentes), e sim quando ela começa a usar você. Recomendadíssimo tanto para beberrões quanto para pessoas sóbrias, “Druk” tem atuações incríveis do quarteto central e um contraste difícil de acertar (mas muito bem conduzido aqui) entre os momentos engraçados e aqueles mais tristes ou sensíveis – a cena final é simplesmente linda!
SONGBIRD (2020, EUA. Dir: Adam Mason)
A “Coronasploitation” não é mais privilégio de produtores picaretas e agora chegou a Hollywood! Produzido por Michael Bay, este “Songbird” é o primeiro grande projeto hollywoodiano a ser totalmente concebido e filmado em meio à pandemia, com o Covid-19 ao redor, e explorando o medo do vírus. A trama se passa em 2024 e o maldito vírus ainda não nos abandonou. Nos EUA, o recolher obrigatório nunca mais foi encerrado e há pessoas presas em suas casas desde 2019, tendo que se adaptar a uma nova realidade sem pisar na rua. Ao mesmo tempo em que as metrópoles viraram grandes cidades-fantasma, os poucos indivíduos reconhecidamente imunes ao vírus passaram a trabalhar como mensageiros, transportando mercadorias para a maioria quarentenada e pagando um preço muito alto pela imunidade: o de nunca poder se aproximar de outras pessoas pelo risco altíssimo de contaminá-las. Neste universo bizarro (e tristemente possível), K.J. Apa interpreta um entregador apaixonado por Sofia Carson, que não pode sair da quarentena. Eles conversam e “namoram” apenas pelo interfone e pelo telefone celular. Quando a avó da moça fica doente, o rapaz precisa aventurar-se pelo mercado negro em busca de um certificado de imunidade para salvar a amada de terminar com a velha num campo de concentração... opa, campo de tratamento onde os doentes são deixados para morrer isoladinhos. “Songbird” não é nem com muita generosidade um bom filme, mas confesso que é muito curioso ver o que ontem seria um blockbuster (tipo o “Epidemia” nos anos 1990) agora sendo feito com a maior cara de produção independente, filmada com uma equipe visivelmente reduzida, poucos atores interagindo entre si, e quase nenhuma cena de ação mais elaborada. Deve ser a coisa mais parada e com menos explosões que já teve o nome de Michael Bay nos créditos. Há vários núcleos de personagens que provavelmente foram filmados separadamente, e que só interagem através da tela do celular ou notebook. Alguns atores e atrizes conhecidos (Demi Moore, Alexandra Daddario, Craig Robinson, Bradley Whitford...) aparecem representando diferentes facetas de um mundo eternamente em quarentena – do medo de um familiar trazer o vírus para dentro de casa nas suas voltinhas lá fora até as dificuldades para fazer sexo com máscara. O resultado, repito, passa longe de ser um bom filme, mas pode ser visto como um interessante experimento sobre uma paranóia bem real e bem presente. A ideia do aplicativo de celular que as pessoas são obrigadas a usar todo dia para escanear-se, e que em caso de contaminação já emite alerta para as autoridades sanitárias imediatamente, é ao mesmo tempo incrível e terrível, porque coloca o Big Brother do Orwell num formato ainda mais reduzido e onipresente. E quem diria que um dia teríamos um entregador de UberEats como grande protagonista em Hollywood – finalmente fizeram justiça aos “heróis que não usam capa” desta pandemia! Perto de coisas como “Corona Zombies” isso aqui é um “Cidadão Kane”, embora a história seja qualquer nota e os “vilões”, patéticos. Deviam ter deixado o oportunismo de lado e aproveitado os meses de lockdown para trabalhar num roteiro melhorzinho...
BREACH (2020, Canadá. Dir: John Suits)
Se fosse feito nos anos 1980, “Breach” seria uma daquelas inúmeras cópias de “Alien” produzidas pelo Roger Corman e lançadas direto em VHS, com um monstro gosmento feito de borracha, armas de plástico, mulheres peladas e algum astro decadente precisando pagar as contas. Como foi feito só agora, nos anos 2020, o resultado está mais para uma daquelas tosquices produzidas pela The Asylum ou SyFy Channel, onde só restaram mesmo as armas de plástico e o astro decadente precisando pagar as contas. Quem ocupa a vaga é o pobre Bruce Willis, que há algum tempo parou de se esforçar e seguiu a trilha deixada por Steven Seagal e Nicolas Cage rumo ao inferno do direct-to-video. E é muito triste ver alguém que já foi astro de ação (e protagonizou uma obra-prima como “Duro de Matar”!!!) afundando num esgoto a céu aberto como isso aqui. Porque “Breach” obviamente não é nem de longe tão divertido quanto as supramencionadas produções baratas que o Corman fez nos anos 1980. Sonolento e absolutamente sem ideias, limita-se a reciclar coisas que deram certo em filmes como “Alien”, “The Thing” e etc, mas o faz com um orçamento minúsculo que não permite mostrar sequer um monstro decente, ou cenas de morte decentes, preferindo deixar tudo para a equipe do CGI tentar salvar na pós-produção (spoiler: não rolou). A história já mostra a que veio (ou ao que não veio) nos dez primeiros minutos, ao mostrar um futuro de 2200-e-tanto em que as pessoas ainda se vestem como nos dias de hoje e soldados usam os uniformes e armas de agora. A Terra está sendo devastada por uma praga (Covid-2200?) e um grupo de pessoas imunes parte numa nave para colonizar outro planeta, batizado “Nova Terra” (Santa Criatividade, Batman!). Só que um monstro também entrou a bordo e começa a dominar os tripulantes para transformá-los numa espécie de zumbis. O filme tem um protagonista sem nenhum carisma (não, Willis não é sequer o protagonista, a vergonha coube a um sujeito chamado Cody Kearsley), e empilha ideias de jerico que até poderiam ser engraçadas num filme menos xarope – como uma granada sendo explodida no interior de uma nave espacial sem provocar qualquer dano à estrutura da dita cuja, ou um produto químico extremamente corrosivo que é armazenado... num frasco de plástico! Velho e preguiçoso, o ex-John McClane não faz muita coisa e aparece o filme inteiro resmungando ou dando talagadas num frasco de goró que leva no bolso (deve ser álcool de verdade, que o ex-astro está bebendo para esquecer que se meteu nessa furada). Espertinho foi o ex-Justiceiro Thomas Jane, que garantiu o cheque para o aluguel do mês aparecendo dois minutos, entrando em sono criogênico e explodindo-se para fora do filme logo a seguir. Péssimo em todos os departamentos, “Breach” lança um novo padrão de ruindade mesmo para a filmografia direct-to-video de Bruce Willis: nem os filmes que o Steven Seagal anda fazendo são tão toscos e constrangedores quanto essa bomba atômica!
MAX CLOUD (2020, Reino Unido. Dir: Martin Owen)
De Schwarzenegger e Stallone a Van Damme e até Chuck Norris, chega um momento na vida de todo astro brucutu de ação em que bate aquela vontade de fazer um filme para a Sessão da Tarde. Pois agora chegou a hora do Scott Adkins, embora seu “inofensivo filme para toda a família” não seja assim tão inofensivo quanto os trabalhos dos colegas. “Max Cloud” lembra uma versão (com muitos milhões de dólares a menos, claro) de “O Último Grande Herói” misturado com “Scott Pilgrim Vs. The World”. Do primeiro, empresta a ideia da criança que é sugada para dentro do mundo de fantasia do seu herói preferido e ganha a oportunidade de interagir com ele – embora trocando o cinema pelo universo dos videogames –; do segundo, o diretor Martin Owen reaproveita a narrativa/estética de um game das antigas. Ambientada nos anos 1990, a trama começa com a menina Sarah entretida com seu jogo preferido, que é estrelado pelo fodaralhaço herói espacial Max Cloud (Adkins, claro), um super-lutador vaidoso e repleto de frases de efeito cuja atitude lembra o Duke Nukem. Ao encontrar uma estranha passagem secreta, a menina acaba sendo “digitalizada” para dentro do videogame e encarna num dos personagens secundários. Com uma mãozinha de um amigo que ficou na sua casa no mundo real, e que a “controla” através do joystick, Sarah precisa ajudar Max Cloud a vencer a última fase do jogo (e o “último chefe”) para conseguir voltar pra casa. É preciso entrar no clima, porque nem sempre o humor bobinho funciona (as cenas com o vilão afetado interpretado pelo John Hannah são pura vergonha alheia). Mas achei “Max Cloud” nostalgia pura. As cenas que se passam no interior do videogame são ambientadas em sets propositalmente simplórios (porque a limitação de 16-bits dos jogos da época não permitia muitos detalhes) e ao mesmo tempo hiper-coloridos, dominados pelas quatro cores básicas, especialmente vermelho e azul. Há algumas tiradas hilárias baseadas na simplicidade dos videogames do período, desde grandes chefões que ficam atirando nos heróis sem se mexer do local onde estão, até o fato de o herói se esconder num cantinho do cenário e imediatamente ser “esquecido” por um enorme monstro que o persegue – porque era muito fácil de enganar a inteligência artificial primitiva dos inimigos nos games da época. E embora seja um filme inocente e divertido na maior parte do tempo, “Max Cloud” também tem um senso de humor estranho que talvez não seja tão censura livre assim. Especialmente nas cenas em que o astro do game toca o terror, explodindo cabeças e atravessando facas em braços e rostos inimigos. É uma “violência inofensiva” na essência, já que os adversários são ninjas inexpressivos e todos iguais, como num videogame daquela época; mesmo assim, são mortes muito mais pesadas do que a Sessão da Tarde anda mostrando para os floquinhos-de-neve de hoje. Trinta anos atrás, “Max Cloud” seria um clássico para a molecada fã de videogame. Hoje, infelizmente, deve cair no esquecimento junto com centenas de outras produções pequenas que não chegam aos cinemas. Mas de todos os filmes com o incansável Adkins lançados em 2020 (também teve as pancadarias “Legacy of Lies”, “The Debt Collector 2” e “Seized”), este definitivamente é o mais divertido, e o único do qual eu lembro alguma coisa além do título.
HUNTER HUNTER (2020, Canadá. Dir: Shawn Linden)
Este thriller canadense independente é aquele “simplão” que funciona bem demais, recontando uma história que não é assim tão nova de uma maneira bastante eficiente. Convém, porém, assisti-lo sabendo o mínimo possível sobre a trama. O que posso contar, sem estragar a surpresa de ninguém, é que é sobre um casal que mora no meio da floresta com a filha pequena, vivendo como se estivessem no Velho Oeste. O marido caça animais para trocar a pele dos bichos por mantimentos no mercado da cidade. Mas a situação está difícil, já não há mais tanta caça, e a esposa pensa em voltar à civilização para dar uma vida melhor à filha, que é praticamente um bicho-do-mato graças à influência do pai. Só que aí um lobo feroz começa a rodear a cabana remota da família. O marido pega seu rifle e entra na floresta para caçá-lo, deixando as mulheres sozinhas na cabana. O problema é que pode haver algo muito mais ameaçador no mesmo bosque. “Hunter Hunter” brinca com as expectativas do espectador já pelo título (em que sugere que pode haver mais de um caçador na história), demora a revelar quem é o caçador e quem é a caça, e assim consegue prender a atenção sem apelar para sustos bobos ou sangueira desatada. É uma narrativa lenta – aquilo que os gringos chamam de slow-burn –, que ao final simplesmente confirma aquilo que todo mundo já imaginava sobre a trama e sobre alguns dos personagens. Mas aí já é tarde demais para escapar, e o diretor-roteirista Linden arremata a coisa toda com uma inesperada cena de crueldade/violência explícita que deve arrepiar estômagos mais sensíveis. Os dois principais papéis masculinos são defendidos por jovens atores das antigas que estavam sumidos e reaparecem praticamente irreconhecíveis: o pai caçador é o Devon Sawa, do primeiro “Premonição”; e Nick Stahl, que foi John Connor em “O Exterminador do Futuro 3”, aparece lá pelas tantas como um homem misterioso. Mas esqueça os dois porque o show aqui é todo das mulheres: de Camille Sullivan, como a esposa que não aguenta mais aquele dia-a-dia de pioneiros do Velho Oeste, e principalmente de Summer H. Howell, como a menina criada para ser uma caçadora fodona, e que jamais conseguirá viver na civilização com outras crianças graças à educação demente que recebeu do pai. Uma bela surpresa, especialmente se conferido com expectativas baixas e sem ver o trailer – que entrega coisas demais sobre o desenvolvimento da trama.
MANK (2020, EUA. Dir: David Fincher)
Este é um projeto dos sonhos do diretor Fincher, que tenta filmá-lo desde os anos 1990. Como nenhum estúdio quis bancar – ou porque a história não é das mais populares, ou porque Fincher queria filmá-la em preto-e-branco –, o cineasta associou-se à Netflix para finalmente tirar “Mank” do papel. Na minha inocência, eu achei que seria um filme sobre o processo de produção da obra-prima “Cidadão Kane”, de Orson Welles, sobre a qual já se escreveu tudo e mais um pouco. Só que não, “Mank” é sobre o processo de criação do roteiro de “Cidadão Kane”. Como o título já entrega, sequer está centrado no menino-prodígio Orson Welles (aqui relegado ao papel de figurante), mas sim no roteirista Herman J. Mankiewicz, que era chamado de Mank pelos amigos e inimigos, e é interpretado por um Gary Oldman em estado de graça. O Mankiewicz verdadeiro foi um personagem complexo: um prolífico roteirista da Era de Ouro de Hollywood que, afundado em dívidas e no alcoolismo, geralmente era chamado para “consertar” os roteiros alheios sem receber crédito (ele foi um dos muitos a dar pitaco no clássico “O Mágico de Oz”, por exemplo). “Cidadão Kane” foi provavelmente o seu grande trabalho, ele brigou com Welles para que seu nome aparecesse nos créditos (algo que rende uma ceninha de cinco minutos em “Mank”), e acabou ganhando o Oscar de Melhor Roteiro graças à teimosia. Infelizmente, pouco deste personagem complexo sobreviveu na transição da vida real para o filme de David Fincher. O passado do Mankiewicz cinematográfico seguirá desconhecido caso não se faça a devida pesquisa para além do filme. E o que resta na tela é um sujeito difícil de simpatizar que Fincher tenta vender como rebelde ou outsider, mas na maior parte do tempo parece somente um bêbado chato e pedante. Tecnicamente, pelo menos, “Mank” é uma belezura. Foi filmado em hipnotizante preto-e-branco e cita a fotografia de “Cidadão Kane” o tempo inteiro – como na luz entrando pelas janelas numa cena de funeral. Narrativamente, porém, não me convenceu. Tenho lá minha birra com filmes muito introspectivos e/ou silenciosos, mas confesso que nesse aqui eu estava implorando para os personagens calarem a boca por cinco minutinhos. O filme é excessivamente verborrágico, com diálogos disparados como rajadas de metralhadora e dezenas de informações essenciais por troca de frases, sem dar tempo para o espectador processar tudo mentalmente antes que os personagens recomecem a matraquear. “Mank” também não se preocupa em explicar muito sobre o contexto em que a trama se passa ou sobre algumas das celebridades que interagem com o protagonista. Se eu, que já sabia quem são Louis B. Mayer, David O. Selznick e William Randolph Hearst, fiquei boiando em alguns momentos, imagine o espectador médio que nunca ouviu falar deles. Ok, os temas abordados pelo filme são universais (poder, ganância, política), mas mesmo personagens centrais da narrativa, como o todo-poderoso Hearst, são apresentados sem qualquer diálogo expositivo, exigindo que o espectador já conheça algo sobre eles para entender o que se passa. Ao mesmo tempo, outros personagens que nada acrescentam, como a moça contratada para datilografar os diálogos do roteiro para Mankiewicz, ganham um tempo absurdo de cena e até dispensáveis dramas secundários. Ainda que não seja ruim, no todo achei “Mank” um filme problemático e decepcionante. E acho que preferia uma versão do roteiro centrada no Orson Welles, e não no insuportável Mankiewicz.
FREAKY – NO CORPO DE UM ASSASSINO (Freaky, 2020, EUA. Dir: Christopher Landon)
Já existem montes de comédias sobre troca de corpos – geralmente homem trocando de corpo com mulher, ou filhos(as) com pais/mães, sempre gerando as confusões de praxe. Este “Freaky” prometia adicionar elementos de horror à trama: um assassino mascarado típico de slasher movie (interpretado pelo gigante Vince Vaughn) troca de corpo com sua última vítima (a pequenina Kathryn Newton), igualmente gerando as confusões de praxe. Tinha tudo para ser “a” comédia de humor negro de 2020. Infelizmente, o que poderia render uma versão carregada de humor negro de “A Outra Face” (do John Woo) acaba ficando no campo da risadinha rasteira de algo tipo “Se Eu Fosse Você”. O filme foi escrito e dirigido por Christopher Landon, o cara que cometeu “A Morte Te Dá Parabéns” e sua sequência. O primeiro até acho divertido, mas o segundo é um mais do mesmo gritante. Já esse “Freaky” não passa de uma repetição dos mesmos temas, e comprova que o sujeito já usou todas as piadinhas com slasher que haviam (algo que nem é difícil, considerando todas as sátiras, homenagens e brincadeiras com o subgênero produzidas desde os anos 1980, inclusive por este que vos escreve). Mas a pior coisa do filme é que ele começa com uma sequência de mortes realmente violenta e inesperada (destaque para a garrafa de champanhe enfiada goela abaixo de uma vítima), apenas para depois virar uma bobagem inofensiva e bem Sessão da Tarde calcada unicamente nas diferenças entre sexo/altura dos dois protagonistas. Vaughn sai-se melhor ao “interpretar” a menina, ainda que alguns dos seus chiliques sejam dignos de “A Praça é Nossa”; já a pobre Kathryn sai-se muito mal ao tentar passar a ideia de que há um assassino serial no seu corpo, abusando de olhares malvados que não convencem. Lá pelas tantas, Landon coloca o assassino-no-corpo-de-uma-menina numa escola, repleta de vítimas inocentes para o vilão/a vilã aniquilar sem que ninguém jamais suspeite do lobo em pele de cordeiro (literalmente). Mas o filme JAMAIS aproveita o potencial da situação: a vilã mata apenas meia dúzia de moleques e um professor que, numa coincidência absurda, eram bullies que maltratavam a menina antes, justificando suas mortes num absurdo (e inapropriado) contexto de “justiça social”. E o filme ainda perde a oportunidade de apresentar um massacre memorável na cena final, quando a vilã invade uma festa do colégio. Havia bastante potencial no argumento, mas Landon optou por manter-se em terreno seguro e apenas repetir as mesmas bobagens de sempre. Ao fim, um dos melhores momentos também é uma piada requentada – aquela em que os dois personagens secundários representando as minorias comentam: “Eu sou gay e você é negra, nós já estamos mortos!”.
THE GO-GO BOYS: THE INSIDE STORY OF CANNON FILMS (2014, Israel. Dir: Hilla Medalia)
Numa daquelas coincidências incríveis que rolam às vezes no mundo do cinema, DOIS documentários sobre a mitológica Cannon Films (aquela dos “filmes que explodem como dinamite”) foram produzidos praticamente ao mesmo tempo e lançados no mesmo ano de 2014. O mais conhecido dos dois, e que recebeu melhor distribuição no mundo, é o hilário “Electric Boogaloo: The Wild, Untold Story of Cannon Films”, de Mark Hartley. Já o segundo é esta produção israelense dirigida por uma mulher (Hilla Medalia), que acabou esquecido ou conhecido simplesmente como “o outro documentário sobre a Cannon”. Trata-se de uma grande injustiça: “The Go-Go Boys” é uma obra-prima obrigatória para aquela geração que cresceu sendo alfabetizada pelas produções da Cannon Films/América Vídeo, e que complementa perfeitamente o outro documentário do Hartley – ouso até dizer que é melhor. Porque enquanto “Electric Boogaloo” é mais focado nas excentricidades e maluquices da produtora e dos seus filmes, este aqui está centrado em contar a história da dupla de produtores israelenses (e primos!) Menahem Golan e Yoram Globus. Depois de produzir alguns grandes sucessos populares em seu país-natal (como “Lemon Popsicle”), eles deixaram Israel rumo aos Estados Unidos com o sonho de fazer “filmes hollywoodianos”, e acabaram encabeçando uma das produtoras mais influentes e ativas (embora mal-faladas) da década de 1980. Se “Electric Boogaloo” era um documentário para cinéfilos em geral, “The Go-Go Boys” dialoga mais diretamente com quem faz cinema: diretores e produtores independentes certamente irão se identificar com a trajetória da dupla Golan & Globus, que sonhava com sua própria Hollywood – onde filmes valeriam mais que limusines ou jantares em restaurantes chiques. Incríveis cenas de arquivo mostram a dupla causando no Festival de Cannes, ou fechando contratos de maneira surreal. Mostra-se até o icônico guardanapo de restaurante em que Golan assinou um contrato com o francês Jean-Luc Godard para fazer um filme (qualquer filme que ele quisesse!) com a Cannon. Já bem velhinhos, os dois produtores são entrevistados separadamente, já que seguem brigados desde a falência da produtora no final dos anos oitenta. Fica claro que Golan era o idealista e o sonhador por trás da Cannon; aquele cara que amava cinema e queria fazer filmes a qualquer preço, mesmo que precisasse vender a própria casa no processo. Já Globus era o pobre administrador com a missão de levantar o dinheiro para bancar os sonhos do primo e manter o caixa em ordem, o que a partir de certo ponto ficou impossível porque a Cannon passou a pagar cachês milionários para astros como Sylvester Stallone. A coisa começa a ficar complicada quando o documentário envereda por essa trilha, e a diretora questiona ambos sobre os grandes fracassos da Cannon, tipo “Superman IV”. Golan surta e começa a bater boca com ela: “Fracassos? Quem é você para falar comigo sobre isso? Por que eu falaria sobre fracassos num filme sobre o trabalho da minha vida?”. Globus, por outro lado, reconhece os erros que levaram à falência da Cannon e assume que eles deveriam ter investido tudo que tinham no fatídico “Superman IV”, para fazer um filme melhor e digno de disputar com os grandes estúdios. Há breves depoimentos de diretores e astros que trabalharam com a dupla, mas o show é todo de Golan & Globus. No final, que é emocionante, a documentarista promove um breve reencontro entre os dois primos e ex-sócios, quando percebe-se que continua havendo muita mágoa rolando entre os dois. Golan, ainda sonhador e sem aceitar a derrota, comenta que tem alguns roteiros “dignos de ganhar Oscar” que quer produzir, e Globus responde pragmático: “Mas que Oscar???”. Finalmente, Medalia coloca os primos para ver cenas de suas produções mais emblemáticas numa sala de cinema, ao mesmo tempo em que mostra ambos comendo pipoca e rindo animadamente. Abandonando temporariamente as hostilidades, eles comentam que deveriam ter feito isso mais vezes: parado para assistir seus filmes e desfrutar do momento, ao invés de se matar para tentar bancar 40 projetos por ano. Golan morreu em agosto de 2014 e talvez não tenha visto o documentário pronto, o que é uma pena: “The Go-Go Boys” faz justiça a dois sujeitos que sempre foram conhecidos como notórios picaretas, mas não passavam de gente como a gente – e simplesmente amavam o cinema.
VAMPIROS VS. THE BRONX (Vampires Vs. The Bronx, 2020, EUA. Dir: Osmany Rodriguez)
Na linha de outras produções nostálgicas como “Attack the Block” (2011) ou o seriado “Stranger Things”, este “Vampires Vs. The Bronx” também dialoga com fantasias infanto-juvenis dos anos 1980, ao mesmo tempo em que busca atingir um público jovem mais contemporâneo. Uma megacoporação imobiliária chamada Murnau Properties (!!!) está comprando diversos edifícios e comércios tradicionais do popular bairro nova-iorquino do Bronx, expulsando aos poucos os humildes moradores do local. Até que três garotos espertinhos descobrem, quase por acaso, que tudo faz parte de um plano maquiavélico para permitir que vampiros se mudem para o bairro – e possam refestelar-se com vítimas para quem o resto da cidade e as autoridades geralmente não dão muita bola. Escrito e dirigido por Osmany Rodriguez, que tem uma longa carreira na TV norte-americana, “Vampires Vs. The Bronx” é uma inofensiva comédia de horror que toca em temas sérios, como preconceito e gentrificação (quando a população mais humilde de uma área é expulsa à força por uma súbita super-valorização da vizinhança), e inclusive tem um trio de protagonistas-mirins representando minorias. Mas o filme evita entregar-se à lacração: o foco é nas aventuras dos moleques para enfrentar os vampiros e salvar seu bairro. Eles até reassistem “Blade”, o filme do Wesley Snipes, para buscar inspiração antes da batalha final! Embora os efeitos especiais sejam bem decentes, dosando CGI com maquiagem, o horror não foi feito para ser muito horripilante, e a violência e os sustos são mantidos num nível mínimo para não chocar o público-alvo. Mesmo assim, é um filme que se assiste com interesse principalmente pela química entre os três jovens heróis (interpretados com muita simpatia por Jaden Michael, Gerald Jones III e Gregory Diaz IV). Também há algumas referências para os espectadores mais coroas, tipo o nome da companhia dos vampiros (inspirado no diretor F.W. Murnau, que fez o “Nosferatu” de 1922), ou um personagem malvado chamado Polidori, em homenagem ao autor do clássico “The Vampyre”. Na época da estréia, vi muito marmanjão detonando o filme, dizendo que era muito bobo e inofensivo, e esquecendo que o pessoal das antigas não é exatamente o público-alvo do negócio. Ora bolas, deixem a garotada de hoje ter a sua própria versão moderna de “Os Garotos Perdidos” ou “The Monster Squad”, seus velhos chatos e resmungões do caralho!
FÚRIA INCONTROLÁVEL (Unhinged, 2020, EUA. Dir: Derrick Borte)
O mais assustador desse thriller sobre violência urbana e descontrole emocional é o físico do ex-Gladiador Russell Crowe, que aparece mais rechonchudo e deformado que o Steven Seagal! De início eu até achei que fosse maquiagem ou CGI, mas o coitado está mesmo tão balofo que sua silhueta provoca choque a cada cena. Descontando a obesidade do galã, “Unhinged” é um filmeco qualquer nota que mistura “Um Dia de Fúria” com “A Morte Pede Carona”. Caren Pistorius interpreta uma mãe solteira que está enfrentando uma manhã terrível desde o minuto em que sai de casa. Atrasada e presa num engarrafamento sem fim, ela começa a buzinar para o veículo à sua frente sem imaginar que ele é conduzido por um homem violento e problemático (Crowe), que decide persegui-la (e aos seus conhecidos) durante o resto do filme. O maior problema do roteiro é já mostrar, desde a primeira cena, que o personagem de Russell Crowe é um violento psicopata: o filme já começa com o sujeito invadindo a casa da ex-mulher e matando ela e o novo namorado a pancadas. Logo, qualquer tentativa de fazer suspense vai para o vinagre, e no momento em que a pobre protagonista cruza o caminho do vilão já sabemos do que ele é capaz – e quando o roliço Gladiador começa a perseguir e matar amigos ou conhecidos da mocinha não é exatamente nenhum choque ou surpresa. Crowe até que consegue criar um vilão escroto bem decente, mas o roteirista Carl Ellsworth começa a forçar demais a amizade, empilhando absurdo atrás de absurdo. Por exemplo: há um longo momento de agressão, que eventualmente termina numa execução, bem no meio de uma lanchonete lotada, sem que ninguém ao redor tente intervir ou impedir o vilão. E eu consigo compreender o jogo de gato e rato numa história como “A Morte Pede Carona”, que acontece numa estrada no meio do deserto; já aqui, no meio de uma grande cidade e com acesso a telefones (celulares ou não), é simplesmente absurdo que a heroína, burra como uma porta, prefira ficar fugindo e/ou perseguindo o vilão ao invés de procurar a polícia e explicar o que está acontecendo. Até funciona como diversão escapista, mas é o tipo de roteiro absurdo e idiota que convinha não levar tão a sério, como o diretor infelizmente fez.
CASTLE FREAK (2020, EUA. Dir: Tate Steinsiek)
Embora esteja sendo vendido como um (desnecessário) remake do belo filme de horror de mesmo nome – dirigido por Stuart Gordon para a produtora barateira Full Moon em 1995, e lançado no Brasil com os títulos “Herança Maldita” e “O Castelo Maldito” –, na prática os dois projetos têm pouquíssimo em comum. Certo, o novo roteiro de Kathy Charles reaproveitou a ideia de alguém herdando um castelo num país europeu e uma protagonista cega (além do visual idêntico do freak do título), mas o resto é tão diferente que eu prefiro pensar nele como uma outra adaptação da história curta de H.P. Lovecraft que deu origem ao filme do Gordon (“The Outsider”). O “Castle Freak” de Stuart Gordon era, na essência, uma tragédia familiar: o roteiro de Dennis Paoli nos deixava divididos entre sentir pena e repulsa de Giorgio, a aberração do castelo que, tentando imitar os hábitos dos novos moradores, provocava situações de horror e extrema violência. No fim descobríamos que Giorgio foi punido e torturado injustamente durante toda a vida para acabar com aquela forma bestial e desumana; portanto sua fúria selvagem era plenamente justificável, e não “maldade” pura e simples. Já este novo “Castle Freak” usa a moldura da aberração nos subterrâneos do castelo para adicionar outros elementos da obra de Lovecraft à receita. São citados, com mais ou menos sutileza, a Miskatonic University, o livro Necronomicon, Cthulhu, Yog-Sothoth, e por aí vai. A conclusão, exageradérrima, tenta conectar a história toda com os Great Old Ones do autor, mas não me convenceu. A tragédia familiar da adaptação dos anos 1990 foi substituída pelo slasher puro e simples, com um montão de jovens desinteressantes morrendo mortes violentas nas mãos da aberração – que também deixa de ser um personagem trágico para virar uma monstruosa máquina de matar estilo Jason. Eu até entendo que tenham adicionado mais personagens para morrer numa tentativa de driblar a narrativa mais lenta do filme do Gordon, mas o tiro saiu pela culatra: este “remake” se arrasta desinteressante e redundante por quase duas horas, contra os oitenta-e-poucos minutos da outra adaptação! O diretor Steinsiek tenta copiar até a sexualidade perversa presente nas adaptações de Lovecraft para o cinema por Stuart Gordon e Dennis Paoli: há masturbação com cabo de chicote, tentáculos saindo da vagina, e lá pelas tantas até a aberração aparece fazendo sexo! Mas isso não chega a tornar o filme melhor, tampouco o uso exagerado de nudez gratuita de praticamente todas as atrizes que entram em cena. Eu diria que os únicos pontos positivos são o fato de os realizadores terem optado por efeitos de maquiagem práticos e old-school ao invés de CGI, e a trilha sonora do mestre Fabio Frizzi – que dá a algumas cenas uma alma e um sentimento que simplesmente não estão lá. De resto, é um convite ao tédio e deve deixar todo mundo com vontade de rever a adaptação mais redondinha do Stuart Gordon.
WANDER (2020, EUA/Canadá. Dir: April Mullen)
Em 1997, quando o Richard Donner fez um filme chamado “Teoria da Conspiração”, o protagonista paranóico interpretado pelo Mel Gibson era uma piada assumida: um sujeito lesado que acreditava em tantas conspirações e lendas urbanas que uma delas acaba se revelando verdadeira! Já em 2020 o papo é outro: percebe-se claramente o estrago feito no mundo real pelas teorias da conspiração repassadas em grupos de Whats e blogs de fake news, levando à popularização de movimentos anti-vacina, gente fraca da cabeça acreditando que existe um troço chamado Q-Anon, e por aí vai. Enfim, por causa dessas pessoas escrotas do mundo real fica bem difícil simpatizar com o protagonista interpretado por Aaron Eckhart em “Wander” como simpatizávamos com o Mel Gibson em “Teoria da Conspiração”. Até porque, ao contrário do filme do Donner, este aqui é um thriller sério com um protagonista que acredita em teorias conspiratórias esdrúxulas! Eckhart interpreta um policial expulso da corporação (segundo ele, após descobrir algo que não devia). Ele vive escondido no meio do deserto e passa o tempo livre transmitindo um programa de rádio com o amigão Tommy Lee Jones, em que tenta denunciar estas bizarras conspirações. O sujeito é tão paranóico que troca o chip do celular todo dia e vasculha a própria casa e os amigos frequentemente em busca de escutas ou rastreadores. Pois eis que, por puro acidente, o malucão acaba se envolvendo na investigação de um assassinato, e começa a suspeitar que as suas teorias mirabolantes possam estar corretas. Ou seja: realmente há pessoas andando por aí com chips no corpo, sendo controladas e manipuladas pelo governo, etc e tal. Uma das coisas mais interessantes de “Wander” é que o filme passa a maior parte do tempo fazendo com que o espectador desconfie da sanidade do protagonista: em mais de uma oportunidade ele aparenta estar mentalmente instável, vive tomando remédios, e portanto não dá para saber o quanto da tal conspiração é real e o quanto é apenas loucura da cabeça dele. Episódios importantes da narrativa propositalmente não são mostrados, e mais tarde Eckhart vai relembrá-los em flashback, aumentando a nossa desconfiança de que pode ser tudo invenção de uma mente paranóica e perturbada. Pena que perto do final o filme começa a explicar demais as coisas. Esse é o tipo de história que se beneficiaria de um final aberto, ou de uma conclusão que deixasse uma pista muuuuuito sutil para confirmar se o protagonista está certo ou se está doido. Mas a diretora Mullen preferiu escancarar tudo a deixar uma pontinha de dúvida. O resultado é um thriller morno com um protagonista difícil de simpatizar (quase dá para imaginar o sujeito seguindo o “Professor Olavo”), e que desperdiça até a sumida Heather Graham numa desinteressante personagem secundária.
LEAP OF FAITH: WILLIAM FRIEDKIN ON ‘THE EXORCIST’ (2020, EUA. Dir: Alexandre O. Philippe)
Já falei e vou repetir: pra mim, o melhor diretor fazendo documentários sobre cinema hoje é o Alexandre O. Philippe – especialmente “78/52”, que disseca frame a frame a famosa cena do chuveiro de “Psicose”. Pois o homem acaba de adicionar mais uma belezoca à sua filmografia: este “Leap of Faith”, que se resume ao cineasta William Friedkin falando sobre o processo de realização de “O Exorcista”, mas não só. Com quase duas horas, o filme inteiro mostra apenas Friedkin falando, sozinho, sobre cinema e arte; o áudio do entrevistado às vezes é coberto com imagens de bastidores e cenas do seu filme. Por mais incrível que possa parecer, o espectador jamais sente falta de outros depoimentos ou de outras pessoas falando. Pessoalmente, eu nem sou um grande fã de “O Exorcista”; também tenho lá minhas implicâncias com o Friedkin enquanto ser humano e artista. Mas este “Leap of Faith” é a prova de que o homem sabe falar, e principalmente sabe do que está falando. Friedkin é um artista digno deste nome, e alguém que eu poderia ouvir falar por HORAS sem reclamar ou pedir licença para ir ao banheiro. Ele analisa a maneira como filmou “O Exorcista” sem precisar recorrer àquelas fofoquinhas de fãs (tipo as mortes “misteriosas” nos bastidores, já largamente abordadas em outras mídias). Também fala com conhecimento enciclopédico: num momento está comentando uma cena-chave de “O Exorcista”, no outro está discorrendo sobre música clássica ou as técnicas de iluminação nas pinturas de Caravaggio, e sempre com a mesma autoridade. Ao contrário desses cineastas cabeças-de-bagre de hoje, o homem é capaz de explicar com argumentos simples e compreensíveis porque filmou cena tal de determinado jeito, o que a câmera em determinado ângulo quer comunicar ao espectador, a importância do uso da música, e por aí vai. É uma aula de cinema e uma aula de arte. Um dos momentos mais incríveis do documentário é aquele em que Friedkin comenta sobre a dificuldade de encontrar a trilha sonora apropriada para “O Exorcista”. Professores de cinema deveriam ser obrigados a mostrar esse trecho aos seus alunos: Philippe apresenta cenas não só de “O Exorcista”, mas também de “2001 – Uma Odisseia no Espaço” e de “Cortina Rasgada” (do Hitchcock) com a música originalmente composta para esses filmes e depois descartada. Pois nos três casos é impactante como a música “errada” altera completamente o clima e o tom das cenas! Enfim, Friedkin me ensinou mais sobre cinema e arte nesses 100 minutos de “Leap of Faith” do que semestres inteiros de aula “oficial” ou livros inteiros sobre estes temas. Embora certamente não funcione com todos os públicos, é um documentário obrigatório para cinéfilos e cineastas. Já quem procura fofoquinha de bastidores não vai encontrar nenhuma por aqui.
COMPUTER CHESS (2013, EUA. Dir: Andrew Bujalski)
Esse é um daqueles filmes com “culti-culti” escrito na testa e que ficam na tênue linha entre a genialidade e a completa bobagem – na dúvida, fico com a segunda opção. A trama se passa no começo dos anos 1980, quando o conceito de “computador pessoal” ainda parecia coisa de ficção científica, e acompanha um curioso torneio tecnológico em que programadores colocam seus computadores jurássicos, monocromáticos e gigantescos para jogar xadrez entre si, tentando determinar quem conseguiu produzir o melhor joguinho de xadrez para computador. Sim, este é um filme sobre máquinas jogando xadrez e os nerds que as produziram, filmado quase que inteiramente em preto-e-branco e em formato de tela 4:3 (para imitar as cores e formas das casas do tabuleiro de xadrez!). O diretor-roteirista Bujalski também apela para uma injustificável estética de falso documentário que não chega a acrescentar nada à narrativa. As piadas envolvendo computadores e programadores dão mais vergonha-alheia do que vontade de rir (o que me lembra da vez que vi “Napoleon Dynamite” e só conseguia sentir pena daquelas pessoas). Mas volta-e-meia o filme também apela para um humor mais “convencional” que é tão esquisito quanto todo o resto – tipo o casal praticante de swing que tenta seduzir um dos nerds, ou o sujeito que fica sem quarto no hotel onde acontece o evento e passa as noites dormindo pelos cantos. De repente, sem razão aparente, o tom de “Computer Chess” muda completamente, fica mais sério e parece avançar pelos campos da fantasia ou da ficção científica. Rola um debate sobre a possibilidade de os computadores se tornarem mais inteligentes que o homem, e de a inteligência artificial dominar a humanidade (com direito a uma última imagem absolutamente inesperada que confirma o argumento!). Um programador também aparece tendo um diálogo filosófico com seu computador sobre amor e alma, numa cena que até parece saída do “Pi”, do Aronofsky. Enfim, não faço ideia de para qual público “Computer Chess” foi produzido (se é que foi produzido para alguém além do próprio diretor, claro). Mas é uma experiência muito esquisita para recomendar a qualquer um – mesmo sabendo que, com essas mal-traçadas linhas, certamente vou deixar muita gente curiosa para ver de qualquer maneira!
FATMAN – ENTRE ARMAS E BRINQUEDOS (Fatman, 2020, Reino Unido/Canadá/EUA.
Dir: Eshom e Ian Nelms)
Escrito e dirigido pelos irmãos Eshom e Ian Nelms, “Fatman” vai na contramão daqueles filmes natalinos com mensagem edificante que são produzidos às dúzias todo ano, para cinema ou TV. Nessas histórias manjadas, o Natal geralmente está em risco porque 1- aconteceu algo ao Papai Noel ou 2- as crianças não acreditam mais em Papai Noel e precisam ser convencidas de que o velho gordo existe. Pois neste filme aqui a existência do Papai Noel como velho bonachão entregador de presentes é pública e notória. E o bom velhinho é interpretado por... Mel Gibson!!! O Natal em “Fatman” corre o risco de sumir porque, no julgamento do próprio Noel, a criançada está tão terrível e mal-educada que não merece mais ganhar presentes. Isso fez com que a produção de brinquedos em sua fábrica caísse de forma significativa no último ano. Consequentemente, o governo norte-americano reduziu os fundos que Noel recebe para manter a operação, obrigando-o a complementar a renda realocando o trabalho dos seus duendes para a produção de armas para o exército! Mas “Fatman” também é uma história de vingança, acredite se quiser. Há um moleque milionário escroto estilo Riquinho que não ganha nada no Natal (porque não se comportou) e decide contratar um assassino profissional para encontrar o velhote e matá-lo! Entra em cena Walton Goggins como o matador obcecado pelo Papai Noel, que coleciona os brinquedinhos originais fabricados por ele para compensar algo traumático que aconteceu na sua própria infância. Apesar do argumento, “Fatman” passa longe da porra-louquice ou da comédia escancarada, adotando uma suposta seriedade que faz parte da brincadeira. Nunca vemos Mel Gibson efetivamente caracterizado como Papai Noel (ufa!), nem ninguém se refere a ele como “Santa Claus” ou o que quer que seja. Há pequenas pistas sobre sua identidade lá e cá, tipo o velhote consertando o trenó ou dando comida para as renas. O único elemento assumidamente absurdo/fantástico do filme são os duendes da fábrica de brinquedos. No mais, é uma história sobre um velho de saco cheio do seu trabalho, e Gibson encarna muito bem o velho ranzinza que já está “too old for this shit” e passa os dias lamentando as contas que têm para pagar (“Eu devia ter cobrado royalties sobre a minha imagem!”, protesta ele lá pelas tantas). Ah, não pense que pelo argumento e pelo tema natalino “Fatman” é censura livre: apesar de bobo, o filme é sangrento e toca em temas adultos, tipo ao insinuar não apenas que o Papai Noel faz sexo (e interracial, com a Mamãe Noel negra interpretada por Marianne Jean-Baptiste), mas também que pessoas mais velhas fazem sexo. O próprio vilão interpretado por Goggins (que está fantástico) é uma figura menos caricatural e mais trágica; ao final, quando finalmente descobrimos o motivo de seu ódio mortal por Noel, quase nos compadecemos dele. Tudo considerado, “Fatman” traz uma mensagem natalina mais dura que a média das produções sobre a data, e talvez seja exatamente o tipo de verdade inconveniente que todos estamos precisando ouvir no momento.
SMALL TOWN CRIME (2017, EUA: Dir: Eshom e Ian Nelms)
Pois eis que o filme anterior dos irmãos diretores do “Fatman” (acima) é um policial dos bons. Em “Small Town Crime”, cujo título não poderia ser mais ilustrativo (“Crime de Cidade Pequena”, em tradução literal), acompanhamos as agruras de um tira alcoólatra. Ele foi expulso da corporação por causa de uma abordagem que terminou bem mal, e agora passa as noites bebendo até apagar. Certa manhã, quando desperta com ressaca no meio de uma fazenda fora da cidade, sem saber como foi parar ali, o protagonista encontra o cadáver de uma prostituta e resolve investigar o crime por conta própria – ou porque busca uma redenção pessoal, ou simplesmente porque quer provar ao mundo que não é um completo inútil. A história começa devagar, e é aquele tipo de narrativa ancorada num personagem problemático e num protagonista esquisitão (John Hawkes), ambos difíceis de simpatizar. Mas quando o filme finalmente engrena, o resultado é um policial dos bons, em que os “comos” e “porquês” da trama, ou o “mistério” em si, não são tão importantes, e sim se alguém vai conseguir escapar vivo até o final. Estamos num universo de neo-noir de cidade pequena, povoado de putas, cafetões, leões-de-chácara e capangas violentos. Tiros de pistola e espingarda provocam um estrago considerável no alvo, e a investigação termina num sangrento tiroteio que por si só já vale a conferida. No elenco, entre vários ilustres desconhecidos que parecem estar se empenhando bastante para defender seus papéis, vale mencionar o grandioso Robert Forster (num de seus últimos filmes), o sempre divertido Clifton Collins Jr. (como um cafetão), e um envelhecido Anthony Anderson – um sujeito que, nos anos 1990, fazia o insuportável alívio cômico desbocado em filmes de horror e de ação, mas aqui aparece bem controlado e até surpreende. Sem tentar reinventar a pólvora, mas retrabalhando clichês de maneira eficiente, quase como um “Irmãos Coen dos anos 1980” sem a mesma finésse, “Small Town Crime” comprova que os Irmãos Nelms, também roteiristas, têm bala na agulha e conhecem uma coisa ou outra do ofício. A acompanhar de perto a filmografia desses caras.
WOLFMAN’S GOT NARDS (2018, EUA. Dir: Andre Gower)
Eu já disse e escrevi várias vezes que, por mim, todo filme já feito deveria ganhar seu próprio documentário em longa-metragem. Mas este “Wolfman's Got Nards” foi uma surpresa até para mim: um documentário inteiro sobre “The Monster Squad”, aquela brilhante aventura infanto-juvenil dos anos 1980 conhecida no Brasil como “Deu a Louca nos Monstros” (argh!). O doc ainda por cima foi dirigido e estrelado pelo astro-mirim daquele filme, Andre Gower, agora obviamente crescido. Para quem nunca viu, “The Monster Squad” foi dirigido por Fred Dekker e escrito pelo roteirista rockstar Shane Black pouco antes de ficar super-famoso escrevendo “Máquina Mortífera”. É uma versão terror de “Os Goonies” com uns moleques enfrentando os Monstros da Universal (Drácula, Frankenstein, Lobisomem, a Múmia e o Monstro da Lagoa Negra), em cenas um tantinho mais fortes do que a média das aventuras infanto-juvenis daquele período (o filme é de 1987). Eu amo “The Monster Squad” desde moleque e queria ter gostado mais deste documentário, mas infelizmente ele é bem fraquinho. E muito repetitivo: toda a segunda metade é dedicada do filme a falar sobre como “The Monster Squad” se tornou cult, mas na prática Gower apenas mostra mais e mais pessoas dizendo o quanto adoram a obra. Celebridades do lado B, como Heather Langenkamp, Zach Galligan, Kristina Klebe e o diretor Chuck Russell, aparecem durante segundos e sequer falam sobre “The Monster Squad”, comentando generalidades – parece até que seus depoimentos foram filmados para algum outro projeto e reaproveitados aqui. A melhor parte de “Wolfman's Got Nards” é logo no comecinho, quando aborda o processo de criação do filme através de depoimentos do diretor Dekker e do roteirista Black. Enquanto o segundo virou celebridade logo em seguida, o outro teve sua carreira eclipsada pelo fracasso comercial de “The Monster Squad”. O documentário não chega a se debruçar sobre os motivos deste fracasso (o filme estreou na mesma época de “Os Garotos Perdidos”, por exemplo), o que é uma pena. Há algumas curiosidades aqui e ali, e foi uma surpresa descobrir que um dos integrantes do Monster Squad teve uma morte trágica pouco depois da estreia do filme. Mas infelizmente o doc parece mais preocupado em documentar as viagens de Gower pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, participando de exibições de aniversário de “The Monster Squad” e sendo tratado como uma celebridade. Ou seja: a coisa toda acaba soando como uma egotrip de Gower, que teve em “The Monster Squad” o auge da sua carreira e parece determinado a finalmente viver o sucesso que não encontrou na época do lançamento original daquele filme.SPELL (2020, EUA. Dir: Mark Tonderai)
Parte “Misery/Louca Obsessão”, parte “A Chave Mestra”, este “Spell” é um esquecível filme de horror, razoavelmente divertido, sobre uma família que viaja para a zona rural dos Estados Unidos e sofre na pele as superstições e rituais herdados dos tempos da escravidão. Após um acidente com o avião em que está, o protagonista interpretado por Omari Hardwick acaba preso a uma cama na fazenda de um casal de idosos, testemunha macabros cerimoniais envolvendo bonequinhas de barro, línguas de gato e olhos de cabra, e começa a temer pelo destino da esposa e dos filhos, que seguem desaparecidos na floresta. Não há nada de muito novo na história ou na maneira de contá-la, mas o diretor Tonderai – que trabalha mais com séries de TV – consegue criar algum suspense e tensão especialmente na primeira metade, centrada nas várias tentativas do protagonista de fugir do cativeiro. Tem um momento particularmente duro de ver envolvendo um prego de tamanho descomunal enfiado na sola do pé de alguém, que lembra bastante a cena do “salto alto” do curta brasileiro “Ninjas”, do Dennison Ramalho. O problema é que o protagonista começa a fazer tanta cagada e burrice em sequência que passa a ficar difícil de levar o filme a sério. Lá pelas tantas parece que o próprio diretor percebe isso, e portanto na meia hora final ele tenta resgatar a atenção do espectador apelando para violência explícita e exagero. O resultado não é ruim e diverte sem compromisso, mas é o tipo de filme que se apaga da memória minutos depois de visto. No fim, o mais assustador de “Spell” é o fato de ter sido escrito por Kurt Wimmer, que surgiu como um nome promissor e dirigiu um dos melhores filmes de ficção científica dos anos 2000 (“Equilibrium”, em 2002), mas logo depois acabou despencando para esse tipo de projeto bizarro – e, vejam só que doideira, acaba de escrever e dirigir uma nova sequência de “A Colheita Maldita” que chega aos cinemas em 2021!!!
A ÚLTIMA GARGALHADA (The Last Laugh, 2019, EUA. Dir: Greg Pritikin)
A melhor maneira de encarar esta sensível comédia dramática é como uma tentativa de devolver o protagonismo a três veteranos que há umas duas décadas andam relegados a aparecer como coadjuvantes de luxo nos filmes dos outros: Richard Dreyfuss (73 anos), Chevy Chase (76 anos) e Andie MacDowell (62 anos). Olhando por esse lado, funciona lindamente e deve ser a melhor oportunidade que Chevy recebe para brilhar num longa desde o começo dos anos 1990. A trama acompanha dois amigos velhotes (Chevy e Dreyfuss) que se reencontram numa casa de repouso de luxo e simplesmente se recusam a aceitar a idade – e que o fim da linha está próximo. Como Dreyfuss foi um comediante popular 50 anos atrás, e Chevy trabalhou como seu empresário então, os dois coroas resolvem colocar o pé na estrada numa última tentativa de reviver seus anos de glória e sair de cena por cima. A aventura envolve, claro, diversas confusões, algum drama, e até uma sensível relação amorosa da terceira idade entre Chevy e Andie (que envelheceu com muito mais dignidade que os colegas homens e continua uma graça). Todos os três estão incríveis, mas Chevy e Dreyfuss brilham especialmente nas cenas de estrada, quando fazem piada com a própria idade – tipo a dependência de Viagra para conseguir uma ereção meia-boca, ou a dificuldade para comprar drogas quando se é idoso. Embora ambos continuem divertidos, é um tantinho triste constatar que não estão interpretando personagens, e sim vivendo a si próprios: dois atores de sucesso muito perto do fim de suas carreiras (e vidas), tentando desesperadamente deixar um último sucesso como legado, para não serem lembrados apenas pelos êxitos da juventude. Infelizmente, o diretor-roteirista Pritikin dá mais destaque às apresentações de stand-up do personagem de Dreyfuss do que às confusões, dilemas e redescobertas da dupla em sua definitiva road trip. Só que as tiradas cômicas no palco nem sempre são engraçadas, e a química entre os dois atores é melhor aproveitada nas cenas de estrada. Se esse fosse o foco, teríamos um filmaço. Mas Pritikin merece crédito por ter evitado o dramalhão, fugindo inclusive do final lacrimoso que o espectador espera desde as primeiras cenas. Ele podia ter caprichado um pouquinho mais nas piadas envolvendo os coroas tentando parecer jovens e descolados (os grandes momentos do filme), mas seu filme entretém e funciona. Sem contar que é provavelmente a última chance para ver esses três protagonistas em papéis principais tão bons.
O QUE FICOU PARA TRÁS (His House, 2020, Reino Unido. Dir: Remi Weekes)
Entre os filmes de horror mais interessantes lançados em 2020, “His House” tem coisas muito boas e outras nem tão boas. É sobre um casal de refugiados do Sudão tentando uma vida nova no subúrbio de Londres, numa casa caindo aos pedaços que, para eles, é uma autêntica mansão (e uma promessa de tempos melhores). Só que a casa parece estar assombrada, com sons estranhos saindo dos buracos nas paredes e, finalmente, fantasmas. Como os coitados dos protagonistas estão num período de avaliação de um mês para ganhar asilo político na Europa, eles não têm sequer a oportunidade de abandonar o imóvel – pois seriam deportados de volta para a África na mesma hora. A ideia de personagens que são obrigados a ficar confinados na casa assombrada é tão boa quanto irônica, pois nesse tipo de história o espectador costuma criticar justamente a teimosia dos protagonistas em ficar na residência com os fantasmas ao invés de fugir o quanto antes. O diretor estreante Remi Weekes intercala o horror “tradicional” com um comentário social impactante sobre a dura vida dos refugiados numa terra estranha e suas dificuldades de adaptação. Quando a mulher tenta dar uma inocente voltinha pela vizinhança, por exemplo, se perde num labirinto de muros e paredes que parece emular o labirinto verde de “O Iluminado”. E sofre preconceito de onde menos se espera: o jovem inglês, e negro, que a ofende mandando voltar para a África! Mas Weekes foge das armadilhas do chamado “pós-terror” e não deixa o drama ou o aspecto social dominarem a narrativa. Há uma quantidade generosa de sustos, assombrações e cenas sangrentas, e o “grande vilão” é um monstrengo realmente asqueroso. O irônico é que o drama, aqui, é muito mais interessante que todo o aspecto sobrenatural. Também é muito fácil simpatizar com o casal de protagonistas e com o sonho de reconstruírem suas vidas – embora sua insistência em repetir que são “boas pessoas” revele-se irônica no ato final. Este, aliás, é o grande problema de “His House”, pelo menos para mim – uma reviravolta estilo “Insidious” que tira parte do impacto da trama e estraga a ideia de que o casal precisa lutar para ficar naquela casa. No mais, apesar desta mudança de foco não ter me convencido totalmente, temos aqui um belo filme que vale conhecer. E que ainda tem a coragem de escalar um casal de pessoas “normais” para os papéis principais (Sope Dirisu e Wunmi Mosaku, ambos ótimos), ao invés dos super-modelos de sempre.
O CAÇADOR (The Hunter, 2011, Austrália. Dir: Daniel Nettheim)
Neste belo filme que passou batido para a maior parte da humanidade, Willem Dafoe interpreta um mercenário contratado por um grande laboratório para ir até a Austrália caçar o suposto último exemplar do Tigre-da-Tasmânia – um animal considerado extinto desde os anos 1940. Seus empregadores obviamente não têm nenhuma consciência ecológica e nem querem o animal vivo, apenas amostras de sangue, tecido e órgãos para fazer pesquisas farmacêuticas. Principalmente, o que eles querem é que Dafoe chegue antes da concorrência, que já está de olho no mesmo bicho. A princípio, e durante considerável parte do filme, o que vemos é um protagonista caçando um fantasma. Existirá mesmo um último Tigre-da-Tasmânia vivo? É na meia hora final que o personagem de Dafoe finalmente começa a questionar sua missão: caso exista, por que alguém deveria se beneficiar do pobre animal que foi erradicado da natureza pela própria ação do homem? O resultado é um filme lento e introspectivo, que aproveita a paisagem e os silêncios de maneira magistral, e ainda brinda o espectador com momentos de pura poesia (como aquele em que o “Gloria” de Vivaldi ecoa no meio do cu-de-mundo graças a caixas de som instaladas nas árvores). Ainda que o foco da trama seja a caçada do protagonista ao animal “invisível”, há situações secundárias que enriquecem a jornada do personagem, como a família na casa de quem o mercenário se hospeda, cujo marido e pai está desaparecido (e provavelmente foi assassinado), ou o conflito de grupos de ecologistas com as madeireiras que vêm devastando as matas no local. Às vezes “O Caçador” lembra outros dramas com teor ecológico de ontem e de agora, como a obra-prima “A Floresta das Esmeraldas”, de John Boorman. Não chega a aprofundar alguns dos seus temas mais espinhosos (como a questão dos madeireiros), mas tem um dos finais mais tristes que vi em muito, muito tempo. Destaque ainda para o sumido Sam Neill como um personagem com intenções dúbias. Uma bela surpresa que merece mais reconhecimento, e que me deixou curioso pelo livro em que o filme se inspira (escrito pela cineasta inglesa Julia Leigh).
NO (2012, Chile/França/México/EUA. Dir: Pablo Larraín)
Baseado em episódio verídico, este filme chileno deveria ser obrigatório para qualquer um que queira entender o real poder da propaganda (e não das fake news, bem entendido). Em 1988, depois de 15 anos sob a violenta ditadura do General Augusto Pinochet, o Chile começou a sofrer pressão internacional para baixar a bola. Assim, foi marcado um plebiscito para que o povo chileno fosse às urnas decidir se queria seguir com Pinochet no comando ou se optava pelo “não” e abraçava a democracia e a troca de governo. A ditadura já dava o resultado como certo e considerava o plebiscito uma mera formalidade – até porque ninguém espera reação popular num país governado com mão-de-ferro pelos milicos. E o “sim” ao Governo Pinochet provavelmente ganharia de lavada se não entrasse em cena uma esperta equipe publicitária, que no filme é liderada por Gael García Bernal. Ao assumir a campanha para divulgar o “não”, esses caras dão um visual e um tom completamente diferentes às peças publicitárias que já estavam prontas. Ao invés de ficar mostrando o inimigo Pinochet o tempo todo, e elencando as barbaridades que o ditador cometeu (execuções, torturas, presos políticos), os marketeiros resolveram criar uma campanha mais light influenciada pela publicidade comercial, que enfatiza a felicidade de escolher o “não” para viver sem ditadura, porém evitando divulgar esta por tabela. O jingle era grudento, o arco-íris como símbolo propunha esperança, artistas se engajaram em massa, e a campanha rival, pró-ditadura, caiu na armadilha e começou a usar seu próprio tempo de TV para tentar refutar a propaganda do “não” – dando ainda mais força e visibilidade a quem queria o retorno da democracia. Filmado com aspecto de vídeo 4:3 para parecer mais realista e documental, “No” usa e abusa da ironia ao mostrar os bastidores de uma campanha publicitária/política, e acaba explicando didaticamente porque experiências recentes, como o “Ele Não” no Brasil, acabaram mais fortalecendo do que enfraquecendo o adversário. Também faz questão de mostrar que as coisas não são preto no branco: a empregada do personagem de Bernal a certa altura confessa que vai votar contra o patrão, e pelo “sim” a Pinochet, alegando que nunca aconteceu nada de mal a ela ou à sua família durante a ditadura – um “argumento” egoísta que é usado até hoje no Brasil pelos canalhas saudosos do AI-5. Pena que o filme termine com uma nota de esperança que infelizmente já não encontra mais eco na vida real (a situação política atual do Chile não é das mais festejadas, como pode-se constatar nos noticiários).
AS NÚPCIAS DE DRÁCULA (Brasil, 2018. Dir: Matheus Marchetti)
Da garotada nova e independente que está sofrendo para fazer cinema sem dinheiro (público ou privado) no Brasil atual, Matheus Marchetti é o meu diretor preferido. Ele é fã confesso do gênio absoluto Jess Franco, e isso fica bem claro em seu longa “As Núpcias de Drácula” – uma produção em que a falta de dinheiro é compensada com um cuidado absurdo com cada cena, de modo a valorizar as cores (naturais ou artificiais) e os cenários à disposição. Não há lá muita novidade na trama, que é vendida como uma “releitura queer” do Drácula de Bram Stoker. A primeira metade segue a narrativa do livro fielmente, e do meio para o final a adaptação começa a tomar umas liberdades poéticas e alterar cenas emblemáticas do romance – matando personagens que lá não morriam, por exemplo. A prática lembra Jess Franco (olha ele de novo!), que no começo dos anos 1970 fez seu próprio “O Conde Drácula” e também abandonou a fidelidade ao livro de Stoker da metade em diante para fazer algo completamente novo. A trilha sonora de “As Núpcias de Drácula”, composta por música clássica do mais experimental ao mais batido, foi escolhida a dedo e dá um tom de ópera às imagens-quase-pinturas do filme. A cena da morte do Drácula, por exemplo, vai num crescendo com a trilha e é uma coisa linda! Já a imagem da menina morta flutuando na água, coberta de pétalas de rosa que lembram manchas de sangue, me remeteu diretamente à musa Soledad Miranda de echarpe vermelha na piscina na obra-prima “Vampyros Lesbos”, de (sim, olha ele novamente) Jess Franco! Como toda produção de baixo orçamento/independente, “As Núpcias de Drácula” tem lá seus probleminhas, com alguns áudios em off meio artificiais, uma ou outra interpretação fora de tom, e um Drácula um tantinho apagado e que pouco aparece. Mas tudo facilmente perdoável diante da lindeza que é o longa, da paixão que transparece em cada quadro e da alegria de ver o trabalho de um diretor que sabe o que está fazendo com a câmera. Não é para todos os públicos (é menos uma narrativa coesa e mais uma sequência de imagens muito bonitas), mas quem entrar no embalo vai curtir cada minuto. Precisamos de mais cineastas com o olhar sensível e o apuro visual do Matheus Marchetti para colorir esse cinzento Brasil contemporâneo!
PARALLELS (2015, EUA. Dir: Christopher Leone)
Quando eu li a sinopse de “Parallels”, achei uma ideia tão incrível que não consegui entender porque ninguém estava falando sobre o filme. Vejam só: existe este prédio abandonado no centro de uma grande cidade, para o qual ninguém dá a mínima. No seu interior, espalhadas pelas paredes, há toneladas de pichações com mensagens enigmáticas como “Evite a Terra 33, o contágio se espalhou”, ou “Na minha Terra, terroristas destruíram as Torres Gêmeas em 23 de outubro de 2001”, ou ainda “As Terras 181 e 726 estão extintas”. O que ocorre, como os protagonistas logo irão descobrir, é que se você estiver dentro do tal prédio num determinado horário do dia, acaba viajando junto com sua estrutura para uma versão alternativa da “nossa” Terra. Pode ser uma linha do tempo em que a tecnologia avançou horrores, ou pode ser uma linha do tempo pós-apocalíptica, depois que bombas nucleares de uma Terceira Guerra Mundial destruíram o planeta. A única coisa que nunca muda no cenário é o misterioso edifício, e é preciso estar dentro dele no horário determinado para seguir viajando para outras dimensões ao invés de ficar preso para sempre naquela em que se parou após um dos “saltos”. Genial, não é? Pois vendo “Parallels” eu infelizmente entendi porque pouco se fala sobre. Primeiro, o negócio parece um filme, foi vendido como filme, tem pôster de filme... mas é apenas o piloto de uma série de TV fracassada que nunca foi produzida! Isso quer dizer que as possibilidades de um argumento tão incrível foram mantidas num mínimo: os personagens (um casal de irmãos mais o inevitável amigo que funciona como alívio cômico) viajam para duas realidades alternativas apenas, perdendo um tempão com intrigas secundárias em cada uma delas, e simplesmente não existe qualquer conclusão para a história. Nenhum dos mistérios ou enigmas propostos é solucionado, e a última cena ainda deixa um puta gancho para um seriado que nunca foi realizado! Considerando que o ano de produção deste piloto é 2015, dificilmente o projeto do seriado ainda sairá do papel. Isso torna a situação completamente absurda e até desonesta, porque os realizadores resolveram lançar o material filmado mesmo assim, sabendo que nunca haverá como concluir a história. Por causa disso, recomendo “Parallels” apenas aos muito masoquistas – pessoas que gostam que lhes seja apresentado um conceito original e interessante que nunca será desenvolvido propriamente ou terá qualquer desfecho. Em outras palavras, é tipo ouvir uma bela piada sem que lhe contem o final!
Quando eu li a sinopse de “Parallels”, achei uma ideia tão incrível que não consegui entender porque ninguém estava falando sobre o filme. Vejam só: existe este prédio abandonado no centro de uma grande cidade, para o qual ninguém dá a mínima. No seu interior, espalhadas pelas paredes, há toneladas de pichações com mensagens enigmáticas como “Evite a Terra 33, o contágio se espalhou”, ou “Na minha Terra, terroristas destruíram as Torres Gêmeas em 23 de outubro de 2001”, ou ainda “As Terras 181 e 726 estão extintas”. O que ocorre, como os protagonistas logo irão descobrir, é que se você estiver dentro do tal prédio num determinado horário do dia, acaba viajando junto com sua estrutura para uma versão alternativa da “nossa” Terra. Pode ser uma linha do tempo em que a tecnologia avançou horrores, ou pode ser uma linha do tempo pós-apocalíptica, depois que bombas nucleares de uma Terceira Guerra Mundial destruíram o planeta. A única coisa que nunca muda no cenário é o misterioso edifício, e é preciso estar dentro dele no horário determinado para seguir viajando para outras dimensões ao invés de ficar preso para sempre naquela em que se parou após um dos “saltos”. Genial, não é? Pois vendo “Parallels” eu infelizmente entendi porque pouco se fala sobre. Primeiro, o negócio parece um filme, foi vendido como filme, tem pôster de filme... mas é apenas o piloto de uma série de TV fracassada que nunca foi produzida! Isso quer dizer que as possibilidades de um argumento tão incrível foram mantidas num mínimo: os personagens (um casal de irmãos mais o inevitável amigo que funciona como alívio cômico) viajam para duas realidades alternativas apenas, perdendo um tempão com intrigas secundárias em cada uma delas, e simplesmente não existe qualquer conclusão para a história. Nenhum dos mistérios ou enigmas propostos é solucionado, e a última cena ainda deixa um puta gancho para um seriado que nunca foi realizado! Considerando que o ano de produção deste piloto é 2015, dificilmente o projeto do seriado ainda sairá do papel. Isso torna a situação completamente absurda e até desonesta, porque os realizadores resolveram lançar o material filmado mesmo assim, sabendo que nunca haverá como concluir a história. Por causa disso, recomendo “Parallels” apenas aos muito masoquistas – pessoas que gostam que lhes seja apresentado um conceito original e interessante que nunca será desenvolvido propriamente ou terá qualquer desfecho. Em outras palavras, é tipo ouvir uma bela piada sem que lhe contem o final!
VELOZES E MORTAIS (Highwaymen, 2004, EUA. Dir: Robert Harmon)
Entre os one-hit wonders dos anos 1980, poucos tiveram uma carreira tão ladeira abaixo quanto o diretor Robert Harmon. Pois o mesmo cara que deu ao mundo um dos melhores thrillers daquela década, quiçá da história do cinema (“A Morte Pede Carona”, de 1986), deve ter empenhado ali o pouco que tinha de talento. Especialmente a julgar por este “Highwaymen”, que o homem dirigiu quase 20 anos depois retomando alguns temas, locações e situações do seu maravilhoso único sucesso. Acredite se quiser, mas Harmon conseguiu transformar o argumento de dois caras se perseguindo com carros velozes num filme chato e quase sonolento. Trata-se de um longo jogo de gato e rato em estradas desertas entre o Jesus Cristo Jim Caviezel (outro que não vingou) e um psicopata que parece um cyborg de tanto ferro, prótese e pino pelo corpo. O sujeito usa o próprio carro como arma para matar belas mulheres pela rodovia. Lembra um certo “Death Proof”, de um certo Tarantino? E como, inclusive porque o vilão aqui também tira polaroids das futuras vítimas. Enfim, é o tipo de roteiro que implorava para ter sido filmado na Austrália dos anos 1980, com aqueles diretores malucos fazendo filmes malucos com dublês igualmente malucos acelerando de verdade por aquelas rodovias desertas e intermináveis. Há umas batidas e capotamentos lá e cá, mas Harmon nunca consegue tirar nada de emocionante desses momentos. O “herói” de Caviezel deveria ser um sujeito obcecado e misterioso, que dedicou anos da sua vida a caçar o psicopata (e talvez seja tão demente quanto ele); mas o galã de rodoviária passa o filme com olhar de paisagem e não convence como absolutamente nada, nem mesmo motorista em alta velocidade. Já o vilão, afora a curiosidade de ser um sujeito fragilizado que é literalmente um nada fora do seu carro, é muito fraquinho (não falta nem o diálogo expositivo em que se tenta explicar a origem da sua maldade). Há certo comentário crítico em relação ao culto ao automóvel, e certo fetichismo à la “Crash – Estranhos Prazeres” ao enfocar ferimentos e mutilações provocadas por acidentes. Mas tudo muito superficial e desperdiçado. Segundo o IMDB, o corte original do diretor tinha 125 minutos, depois reduzidos pelo estúdio para míseros 80 (!!!). Talvez toda a profundidade e desenvolvimento de personagens tenham ficado no chão da sala de montagem. Mas a julgar pelo pouco que se vê aqui, dificilmente alguém vai querer encarar os outros 45 minutos deletados para confirmar se o filme melhora ou não. De positivo, duas ou três cenas razoáveis com carros em alta velocidade (que perdem de lavada para qualquer coisa parecida em “Death Proof”, e olha que nem gosto do filme do Tarantino), e Rhona Mitra linda, maravilhosa e má atriz como sempre. Com o perdão do trocadilho, “Highwaymen” é um thriller burocrático que parece ter sido dirigido no piloto automático.
ALIANÇA MORTAL (Enemies Closer, 2013, EUA/Canadá. Dir: Peter Hyams)
O ex-astro Jean Claude Van Damme jura que largou as drogas que destruíram sua carreira hollywoodiana nos anos 1990. Mas não é o que parece a julgar por alguns dos filmes que ele vem fazendo, e especialmente pela sua interpretação afetadíssima nesse “Enemies Closer”. Encarnando um vilão assumidamente vegan (?!?), que passa o filme inteiro fazendo chatíssimos discursos ecológicos, o belga entrega uma atuação caricatural e exagerada à la Nicolas Cage. E parece estar no filme errado: Van Damme devia achar que estava fazendo uma comédia, e não um filme de ação. Ele grita, gesticula exageradamente, ri sozinho, beija a testa dos capangas, e por aí vai. Para piorar, faltou algum bom senso da turma do casting na hora de escalar o ator para o papel do herói que devia enfrentar o belga de igual para igual. Quem seria páreo para encarar Van Damme num filme de ação? Stallone (de novo)? Dolph Lundgren (de novo)? Nada nem perto disso: a inconcebível dupla de heróis colocada para enfrentar o belga é composta por um dos carinhas do “The Wonders” (Tom Everett Scott, que fazia o baterista gente boa) e pelo Orlando Jones, mais conhecido por comédias debilóides do que como astro de ação. Lógico que nenhum dos dois convence na posição, e o resultado é simplesmente patético: a mesma historinha de sempre (dois contra um exército) sem mudar uma única vírgula; Van Damme como um vilão invencível e implacável (a não ser quando precisa enfrentar o herói); e cenas de luta que talvez até sejam boas, mas o filme é tão escuro que não dá para ver direito o que se passa – talvez para esconder os dublês, tanto dos heróis quanto do envelhecido (e enlouquecido) Van Damme. “Enemies Closer” é um subproduto deslocadíssimo do seu tempo, que se tivesse saído direto em VHS nos anos 1980 talvez até tivesse um mínimo de interesse, mas hoje em nada se difere das centenas de aventuras baratas dirigidas e estreladas por completos desconhecidos. O mais triste é ver o diretor das antigas Peter Hyams assinando um incontestável atestado de decadência, logo ele que dirigiu filmaços como “Outland: Comando Titânio“ e uma das melhores aventuras do próprio Van Damme (“TimeCop”, e lá se vão quase 30 anos!).
NATAL SANGRENTO (Silent Night, 2012, Canadá/EUA. Dir: Steven C. Miller)
Nunca fui lá muito fã do “Natal Sangrento” original de 1984, mas o filme subiu um bocadinho no meu conceito depois de ver este pavoroso remake. Passados quase 30 anos entre um e outro, parece que os caras desaprenderam como fazer um slasher movie bobão e divertido com um Papai Noel assassino! Assim como o “Halloween” do Rob Zombie, este é mais um daqueles casos clássicos de diretor que não sabe o que está fazendo e nem para qual público está fazendo. Na essência, continua sendo um slasher sobre um Papai Noel assassino (embora a trama aqui seja completamente diferente do original). Ao invés de mostrar serviço com mortes sanguinolentas, o diretor Steven C. Miller preferiu usar a maior parte do tempo para tentar fazer suspense “sério”, enfocando mais a investigação dos crimes do psicopata pela polícia do que a matança desenfreada perpetrada pelo vilão. E embora desde o início o espectador já tenha entendido que o matador é um psicopata daqueles sem motivo, Miller fica jogando umas pistas falsas e pelo menos dois “suspeitos” de ser o tal Papai Noel assassino, numa encheção de linguiça imperdoável. Enfim, os caras não conseguem criar sequer um padrão para o vilão: apesar de andar sempre com um machado ensanguentado, ele às vezes deixa a ferramenta de lado para sacar um lança-chamas (!!!), sendo que a arma aparece magicamente sempre que o Papai Noel maluco resolve que é a hora certa para usá-la! Mesmo suas motivações variam conforme a vontade do freguês: no começo parece que o assassino só mata quem “não se comportou”; depois ele começa a matar qualquer infeliz que lhe cruze o caminho, e ao final se descobre que tudo fazia parte de um complexo plano de vingança, embora uma caralhada de gente que não tinha nada a ver com isso tenha morrido no processo. Miller desperdiça até atores e atrizes populares como Malcolm McDowell, Jaime King e Lisa Marie. É melhor recusar imitações e catar o produto original sempre.
GHOST SHARK (2013, EUA. Dir: Griff Furst)
Quando você pensava que todas as ideias cretinas para filmes de tubarão já tinham sido filmadas, depois dos lamentáveis “Sharktopus”, “Sand Sharks” e de seis “Sharknado”, eis que surge... “Ghost Shark”! Trata-se da incrível história sobre o FANTASMA de um tubarão: justamente por não ter uma forma física, o monstrengo pode se manifestar e sair de qualquer superfície que contenha um mínimo de água – dos lugares mais óbvios, como uma piscina ou uma banheira, até os menos esperados, tipo um balde, uma poça d’água e até mesmo o vaso sanitário! Há um momento hilário em que o tubarão-fantasma sai literalmente de dentro de uma vítima, à la “Alien”, depois que o infeliz bebe um copo d’água! Enfim, é tanta ideia absurda junta que “Ghost Shark” é, disparado, uma das poucas produções vagabundas do canal SyFy que realmente divertem. Também é o mais criativo e bem-humorado desses filmes-podreira recentes sobre tubarões assassinos. Enquanto bobagens como “Sharknado” gastam um tempão com futilidades, os caras aqui sabiam exatamente o que estavam fazendo. Eles preferiram investir nas mortes criativas e nos ataques cada vez mais originais do monstro, além de não ter medinho de matar crianças pentelhas (pelo menos três acabam esquartejadas pelo bicho, e on-screen!). Melhor ainda: as cenas de morte são bastante sangrentas e, sempre que possível, mostradas com efeitos práticos – o oposto de outras asneiras com o padrão The Asylum e SyFy de “qualidade”. Assim dá até para perdoar o longo tempo gasto tentando explicar a origem do tubarão-fantasma, ou as investigações dos heróis sobre episódios do passado da localidade, quando parece que diretor e roteiristas levaram o argumento um tantinho mais a sério do que precisava. O fato de o tubarão ser um fantasma também permite que o tradicional CGI porco do monstro pareça menos escandaloso do que a média desse tipo de filme. Podia ser melhor e ainda mais divertido? Ô, se podia! Mas até que funciona razoavelmente bem, e vai ser difícil alguém aparecer com uma ideia mais estapafúrdianos anos vindouros. (Em 2015 o filme ganhou uma continuação que parece horrível.)
A DECADÊNCIA DE UMA ESPÉCIE (The Handmaid's Tale, 1990, EUA/Alemanha.
Dir: Volker Schlöndorff)
A distopia “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, ganhou uma adaptação bem decente em forma de seriado de TV (ou melhor dizendo: a primeira temporada é muito boa; depois...). Como efeito colateral, também acabou resgatando do total esquecimento a primeira e fracassada encarnação live-action do livro, este “A Decadência de uma Espécie” (brilhante título brasileiro, só que não). Trata-se de uma desgraça completa em todos os níveis, que não funciona nem como adaptação (porque deixa de fora aspectos importantes da trama), nem como resumão do livro, porque a coisa toda é tão corrida que praticamente não faz sentido (especialmente o terceiro ato). Por exemplo: a célula de resistência Mayday, importantíssima no livro, é mencionada uma única vez por um personagem nos cinco minutos finais, e não fará nenhum sentido para quem não leu o livro ou viu a série. Acho que a história complicada por trás da produção é mais interessante que o filme em si. O projeto começou como uma superprodução que seria dirigida pelo tcheco Karel Reisz (de “A Mulher do Tenente Francês”), com roteiro do dramaturgo Harold Pinter e Sigourney Weaver no papel principal. Mas logo dois dos nomes abandonaram o projeto: Reisz foi substituído pelo premiado cineasta alemão Volker Schlondorff (de “O Tambor”), e Sigourney pela apagada Natasha Richardson. Aparentemente, o orçamento também caiu pela metade: enquanto o primeiro diretor estava planejando cenas gigantescas com multidões, inspiradas nos filmes de Leni Riefenstahl, Schlondorff foi forçado a se virar mais com cenas internas, e dirigiu algo que tem a maior cara e clima de telefilme – às vezes até de produção vagabunda feita para a Sexta Sexy, com cenas pra lá de gratuitas envolvendo sexo e nudez. Embora o elenco seja extraordinário, com Faye Dunaway, Robert Duvall, Aidan Quinn e Elizabeth McGovern tentando dar alguma dignidade aos papéis principais, estes puta atores não conseguem fazer muita coisa com personagens que são basicamente caricaturas estereotipadas das suas versões no livro, e cujas motivações jamais ficam bem explicadas pelo roteiro corrido. Para piorar, se no livro (e no seriado) a personagem principal Offred narra a história em off, dando importantes depoimentos sobre o que está sentindo e vivenciando, suas dúvidas e medos, no filme esta narração foi sumariamente podada pelo roteirista Pinter, jogando todas as camadas de Offred sobre os ombros da pobre Natasha Richardson – que jamais consegue passar qualquer expressão que não seja de total passividade. Se livro e seriado contam a história de maneira não-linear, revelando aos poucos como aquela distopia fundamentalista se insurgiu e como Offred virou Aia, no filme tudo é linear e mastigadinho, inclusive a explicação dos nomes das aias (“A partir de agora seu nome é Offred. Of Fred, entendeu?” – sim, esta é uma fala do filme!). Para não soar injusto, há algumas poucas coisas que salvam “A Decadência de uma Espécie” de ser uma completa perda de tempo. Tipo as cenas que mostram os horrores instaurados sob um governo totalitarista, que usa o Antigo Testamento como lei (algumas são até melhores do que as mostradas no seriado). Se na série a situação sócio-política deste universo parece praticamente sob controle, com algumas ocorrências aqui e ali, no filme o negócio está à beira do caos, com execuções de “traidores” e ataques dos rebeldes a todo instante. Na linha de “Robocop” e da HQ “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, a televisão (que não aparece no seriado) tem papel de destaque, veiculando notícias absurdas que revelam que há uma guerra religiosa acontecendo. Finalmente, a própria “cerimônia” pela qual as aias têm que passar é representada muito melhor, enquanto estupro ritualístico, do que na série. Até porque a violência e a humilhação da situação ficam muito mais evidentes diante de uma jovem Natasha Richardson tendo “sexo forçado para fins reprodutivos” com Robert Duvall, quase 40 anos mais velho. Todo errado no conjunto, “A Decadência de uma Espécie” foi pouco visto na época do seu lançamento e ganhou uma sobrevida agora com o sucesso do seriado. Faz sentido: sempre é curioso ver outra abordagem – ainda que ruim – de uma mesma história.
IN SEARCH OF THE LAST ACTION HEROES (2019, Reino Unido. Dir: Oliver Harper)
Nota 10 pela nostalgia, nota 6 enquanto produto audiovisual, este documentário vem no rastro de outra produção recente sobre o cinema de horror dos anos 1980 (“In Search of Darkness”), mas o diretor aqui é outro – um inglês chamado Oliver Harper. O sujeito é mais conhecido pelo seu canal de YouTube, o que explica os grandes problemas do filme, especialmente o ritmo pesado (são 2h20min!!!) e a falta de foco na abordagem de um tema tão incrível. “In Search of the Last Action Heroes” busca investigar o fenômeno popular do cinema de ação dos anos 1980, com seus tiros, explosões e brucutus sem camisa. Como resumão, funciona razoavelmente bem: fala-se um pouquinho sobre as origens do fenômeno (e todo diretor entrevistado jura que a moda começou com o seu filme!), sobre a importância da Cannon Films no processo de popularização desse tipo de cinema, sobre ciclos bizarros como ninjas, retorno ao Vietnã, kickboxing, etc etc. Mas o documentário simplesmente se recusa a ficar no assunto: era para ser sobre os heróis de ação dos anos 1980, mas os últimos 40 minutos se estendem para os anos 1990 e até um tantinho para os 2000. Harper perde um tempão entrevistando compositores de trilhas sonoras (embora não apareça ninguém tão influente), em depoimentos que pouco acrescentam ao assunto central e apenas deixam o filme mais longo. E acho que tempo demais é dedicado a filmes como “Aliens” e “The Terminator”, e também a algumas produções menos interessantes, enquanto a trilogia “Braddock” ou os primeiros trabalhos do Steven Seagal são resumidos em segundos. Há escolhas bizarras, como falar por dez segundos sobre “Stallone Cobra” e por cinco minutos sobre o menos popular “Tango & Cash”. E é frustrante a ausência de entrevistas com qualquer um dos brucutus mencionados no documentário: nada de Stallone, Schwarzenegger, Chuck Norris, Dolph Lundgren, Carl Weathers, Kurt Russell... Sim, deve ser difícil para um cineasta independente chegar nesses astros, mas é curioso que nem mesmo Van Damme ou Michael Dudikoff, que são arroz de festa nesse tipo de documentário, apareçam. Ao mesmo tempo, há umas entrevistas bizarras com gente obscura como Phillip Rhee e Matthias Hues. Particularmente eu acho o máximo terem dado espaço para esses caras do lado B (até C) falarem, mas eles nunca chegaram a ser astros ou grandes herói de ação dos anos 1980! E por conta dessas entrevistas, que não acrescentam nada ao debate, caras que foram importantíssimos para o gênero e para a década (como Shane Black, Steven E. de Souza, Paul Verhoeven, o editor Mark Goldblatt e o produtor Mario Kassar) têm seu tempo para falar reduzido. Eram ESSES CARAS que eu queria ouvir falando sobre cinema de ação dos anos 1980! Posso apostar que o diretor Harper tinha material sobrando para fazer dois filmes diferentes (um sobre o cinema de ação dos anos 1980, outro sobre o dos 1990/2000) se voltasse à sala de edição com mais calma e foco. E os 140 minutos deste aqui poderiam tranquilamente ser reduzidos para 90 ou 100, deixando o filme mais dinâmico e menos atrapalhado.
2020 NUNCA MAIS (Death to 2020, 2020, EUA. Dir: Al Campbell e Alice Mathias)
Este falso documentário produzido para a Netflix pelos criadores do seriado “Black Mirror” (Charlie Brooker e Annabel Jones) tenta fazer graça com o ano mais lazarento da história contemporânea. Com narração de Laurence Fishburne (Morgan Freeman e James Earl Jones provavelmente estavam ocupados), são exibidas imagens de alguns dos piores momentos de 2020. Foi um ano em que as pessoas com mais de dois neurônios simplesmente não tiveram um minuto de sossego; alguém lembra que Trump quase provocou a Terceira Guerra Mundial já no início de janeiro ao ordenar a morte de um general iraniano, e isso nem foi o seu pior momento em 2020??? Estas imagens reais são costuradas ao redor de “entrevistas” com atores populares (Samuel L. Jackson, Hugh Grant, Lisa Kudrow, Tracey Ullman, Joe Keery) representando patéticos estereótipos da vida real: o jornalista descolado, o historiador completamente perdido, a representante do governo que faz malabarismos verbais para defender as asneiras ditas pelo seu presidente (que no caso é o Trump, mas podiam tranquilamente mudar para Bolsonaro na dublagem em português), o digital influencer que tenta associar a própria imagem a cada causa social que aparece, e a idiota que acredita em tudo que recebe pelo WhatsApp. Só que aí temos dois problemas. Primeiro, as piadas são muito, muito fracas. Algumas têm um nível tão raso que soam constrangedoras (tipo TODAS as cenas com o cientista falando sobre Covid-19). E segundo que quase todos esses tipinhos retratados e satirizados são figuras patéticas e trágicas do lado de cá da tela, que contribuíram bastante para 2020 ser a desgraça que foi. Logo, eu não consigo ver nenhuma graça na tentativa de brincar com eles (talvez se as piadas fossem melhores...). Com apenas 70 minutos, “Death to 2020” fica mais centrado no que rolou nos Estados Unidos e no Reino Unido. Faz sentido: poderia ser feito um outro filme inteiro só com as patetices do Bolsonaro no Brasil, mas teria que ser em formato de minissérie para caber tudo. Momentos históricos, como Trump sugerindo injetar desinfetante de limpeza doméstica nas pessoas para combater o coronavírus, aparecem na montagem, mas só seriam engraçados se não fossem tão trágicos. Acredito que a melhor definição para “Death to 2020” seja uma frase do personagem de Samuel L. Jackson. No início da sua “entrevista”, o diretor do falso documentário explica que quer relembrar 2020; Jackson imediatamente questiona: “Why in the fuck would you wanna do that? I mean really, why?”. De fato: por quê? Eu pensei que 2020 tinha sido ruim até ver este filme, que por sua vez é tão ruim e sem-graça quanto o ano que tenta satirizar. E fico com muita pena dos historiadores de verdade, que um dia vão ter que sumarizar 2020 em livros e documentários sérios...
PS: Esta postagem encerra o fatídico 2020 e, a não ser que role um milagre, o FILMES PARA DOIDOS como um todo. Foram 12 anos incríveis (ou oito, se descontarmos o recesso de quatro anos lá pelo meio), mas simplesmente não é mais possível continuar fazendo isso dessa maneira. A partir de 2021 o material do blog, já publicado e ainda por publicar, ganhará outros formatos, e no momento apropriado falaremos sobre isso. Por ora, deixo meu “Muito Obrigado!” de coração a todos que seguiram o FILMES PARA DOIDOS nessa jornada e ainda acham que vale a pena perder tempo com essas mal-traçadas linhas mesmo numa era de YouTubers, podcasts e sites-modinha. Vocês são demais! Também convido quem se vira bem no inglês para me acompanhar no Medium, onde estou escrevendo semana sim, semana não sobre cinema, literatura e cultura pop.