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sexta-feira, 3 de abril de 2020

A TRAVESSIA DE CASSANDRA (1976)


Em “A Dança da Morte”, um épico de mil-e-tantas páginas sobre o fim do mundo escrito por Stephen King e publicado pela primeira vez em 1978, um capítulo inteiro é dedicado a narrar como um vírus mortal de gripe se espalha sem controle e acaba por dizimar a maior parte da humanidade. O capítulo começa numa cidadezinha do interior, onde um policial – já contaminado com o que pensa ser apenas um “resfriadinho” – aplica uma multa num vendedor de seguros dirigindo acima do limite de velocidade. Junto com a multa, o motorista Harry Trent recebe o vírus como brinde. E durante os próximos dois dias, até cair de cama, o vendedor o transmite sem saber para outras 40 pessoas em uma dezena de cidades por onde passa. King descreve: “Harry Trent parou numa lanchonete no leste do Texas chamada Babe’s Kwik-Eat para almoçar. Ao longo da refeição, ele infectou Babe, o lavador de pratos, dois caminhoneiros sentados próximos a ele, o homem que foi entregar pão e o homem que estava trocando os discos da jukebox. Ele deixou para a garçonete que o atendeu uma gorjeta de um dólar que estava repleta de morte”. E a partir daí o autor acompanha outras pessoas que são indiretamente contaminadas pelo vendedor, e que por sua vez vão espalhando o vírus para outras, e outras, e outras, cruzando primeiro a linha dos Estados, depois dos países, até provocar um colapso global.

Na ficção, “A Dança da Morte” é um dos melhores exemplos de como é difícil conter uma pandemia depois que ela começa, pois o vírus é um inimigo invisível que atravessa fronteiras sem ser percebido e se espalha com rapidez assustadora. Pandemias sempre existiram – vide a Peste Negra, que dizimou a Europa durante a Idade Média. Mas é óbvio que o aperfeiçoamento dos transportes entre países e continentes contribuiu bastante para a disseminação de pragas. Se antes um vírus assassino podia ficar contido em determinada região, hoje é muito fácil para ele ganhar o mundo, como vemos agora, com a quarentena forçada imposta ao planeta pelo novo coronavírus.


E houve um tempo – quem diria! – que uma ameaça nesta escala só assustava em obras de ficção, pois parecia algo impossível de acontecer na vida real. Antes que Stephen King colocasse um ponto final em seu “A Dança da Morte”, ficou sob a responsabilidade do cinema-catástrofe dos anos 1970 conceber um ‘worst case scenario’ envolvendo um vírus mortal fora de controle. Isso aconteceu no filme CASSANDRA’S CROSSING, conhecido no Brasil como A TRAVESSIA DE CASSANDRA.

Numa época em que o cinemão hollywoodiano estava explorando grandes tragédias, blockbusters como “Terremoto”, a série “Aeroporto” e “Inferno na Torre” apavoravam espectadores ao redor do mundo encenando os mais diferentes cataclismas, sempre por meio de efeitos especiais revolucionários para o período, e sempre com elencos estelares pagando mico ou morrendo mortes terríveis.


Como legítimo representante deste subgênero, A TRAVESSIA DE CASSANDRA apela para nada menos de três desgraceiras numa única narrativa: trata ao mesmo tempo de um vírus mortal, de um trem fora de controle e de uma velha ponte que pode desmoronar e matar todo mundo. Logo, sobreviver a uma das ameaças pode apenas garantir algum tempo de alívio para os personagens antes de eles morrerem na próxima! É mole?

Mas nem esta variedade de tragédias salvou a obra de ser um baita mico na época do seu lançamento. Críticos e espectadores riram do tom pessimista e do fato de a grande calamidade da vez ser um vírus, algo que não dava para enxergar e nem mostrar com “efeitos especiais”, já que as pessoas iam ao cinema para ver prédios desmoronando ou explodindo em chamas. Hoje o filme ainda tem vários pontos risíveis e bem ruins; porém também parece mais assustador em meio a uma pandemia real.


Diz a lenda que a ideia para A TRAVESSIA DE CASSANDRA surgiu na cabeça do diretor George Pan Cosmatos às cinco da madrugada de uma noite de insônia. Filho de uma tradicional família grega, ele nasceu na Itália, estudou cinema em Londres e foi assistente de ninguém menos que Otto Preminger no filme “Exodus” (1960), com Paul Newman.

Em 1973, quando havia acabado de dirigir para o produtor italiano Carlo Ponti o drama de guerra “O Carrasco de Roma” (em que astros como Richard Burton e Marcello Mastroianni sofriam as agruras da Segunda Guerra Mundial), Cosmatos começou a imaginar a história de um vírus que se espalha por um trem fora de controle e ameaça o mundo inteiro. Ele imediatamente telefonou para o amigo historiador e roteirista Robert Katz (que já havia escrito “O Carrasco de Roma”), para que começassem a trabalhar num argumento com estes elementos.


Particularmente, Cosmatos tinha alguma vivência real em matéria de epidemias: embora tenha nascido em Florença, na Itália, sua família mudou-se para o Egito quando ele ainda era criança. Em setembro de 1947, um surto de cólera atingiu o país e espalhou-se desenfreadamente. Em fins de outubro, no auge da epidemia, 500 pessoas já tinham morrido no país e 900 novos casos surgiram num único dia, motivando uma ação de emergência por parte da Organização Mundial da Saúde. Aos seis anos de idade, o molequinho que no futuro dirigiria “Rambo 2  – A Missão” e “Stallone Cobra” testemunhava uma guerra contra um inimigo muito difícil de enfrentar, e que o fez declarar no futuro: “Uma epidemia sempre me pareceu algo mais destrutivo que um terremoto, um incêndio ou mesmo uma bomba, porque nós somos os nossos piores inimigos”.


Corta para o produtor italiano Carlo Ponti, que na época fazia uma comédia de Ettore Scola ou Steno num dia, um drama provocativo de Michelangelo Antonioni no outro. Ponti estava doidinho para surfar na lucrativa onda do cinema-catástrofe e, de quebra, explorar a fama da esposa e estrela internacional Sophia Loren. Ele tinha produzido o filme anterior de Cosmatos, “O Carrasco de Roma”, e enxergou potencial no argumento do vírus à solta. As peças começavam a se encaixar e A TRAVESSIA DE CASSANDRA estava prestes a sair do papel.

Como a ideia era fazer uma superprodução digna de concorrentes de peso como “Inferno na Torre”, Ponti aliou-se ao inglês Lew Grade, que era diretor de uma emissora inglesa de televisão e começava a se aventurar na produção de filmes. Grade injetou grana preta no projeto e o orçamento ficou ao redor de 6 milhões de dólares, isso quando 6 milhões de dólares ainda era um dinheirão – a título de comparação, foi o mesmo valor investido pela Universal em “Aeroporto 77”.


Enquanto Ponti começava a recrutar o tradicional elenco de astros e estrelas que era obrigatório nesse tipo de filme, o roteirista Tom Mankiewicz era convocado para dar uma polida no roteiro de Cosmatos e Katz – ele que, naqueles tempos, tinha colaborado nos roteiros de três aventuras de James Bond, “Os Diamantes São Eternos”, “Viva e Deixe Morrer” e “007 Contra o Homem da Pistola de Ouro”, e era um sinônimo de sucesso de bilheteria, embora seu terceiro Bond não tenha ido tão bem no box office.


A TRAVESSIA DE CASSANDRA começa muito parecido com “The Satan Bug / O Mundo Marcha para o Fim” (1965), de John Sturges. Um longo plano aéreo que sobrevoa Genebra, na Suíça, termina na sede da Organização Mundial da Saúde. Uma ambulância chega com um paciente grave, que dois enfermeiros conduzem numa maca pelos corredores marcados com faixas coloridas.

No interior do prédio, entretanto, eles mudam o rumo e pegam o corredor das unidades de estudos epidemiológicos e bacteriológicos, ao invés do setor de emergência. Quando o vigia vai abordá-los, porque o acesso ao local é restrito, o homem deitado na maca saca uma pistola com silenciador e atira no segurança. São, na verdade, terroristas que querem cometer um atentado a bomba no local.


Só que o vigia não está bem morto, dispara o alarme e inicia um tiroteio dos diabos onde um dos terroristas é morto, outro é ferido e preso, mas o terceiro (interpretado por Lou Castel, da obra-prima “Mátalo!”) consegue fugir pulando uma janela.

A pegadinha é que, durante o tiroteio, uma das balas perdidas atingiu o frasco contendo uma bactéria mutante que é uma variação ainda mais mortal daquela que provoca a peste bubônica, e espalhou seu conteúdo sobre dois dos terroristas – inclusive, claro, aquele que conseguiu fugir!

Sem demora, descobrimos que a tal bactéria era um experimento secreto que o governo dos Estados Unidos estava fazendo em solo estrangeiro (logo, ilegalmente), para tentar desenvolver uma arma biológica. Não fica claro (ou pelo menos eu não entendi) porque diabos os caras estão usando os laboratórios da OMS para fazer isso, mas é assim que as coisas são...


O terrorista que foi preso é isolado por uma médica especialista em epidemias, a Dra. Stradner (interpretada pela sueca Ingrid Thulin, ela que foi dirigida nove vezes por Ingmar Bergman!). Enquanto a doutora tenta tratar o paciente para os violentos sintomas que já começam a se manifestar, surge um representante do exército norte-americano, o Coronel Mackenzie (Burt Lancaster!), que alerta para a alta periculosidade da doença – embora os frascos com a bactéria estivessem expostos livremente e ao alcance de uma bala. Ao ser informado de que um dos homens infectados conseguiu escapar, Mackenzie teme que uma epidemia mortal e sem cura se alastre pelo planeta.


A estas alturas, o terrorista contaminado e fugitivo consegue chegar à estação de trem e se infiltra no expresso que parte de Genebra para Estocolmo, a capital da Suécia. Confortavelmente instalado no vagão de carga, sentado entre sacas com a inscrição “Café do Brasil” (tenho certeza que alguém estava tentando passar uma mensagem para o futuro...), o sujeito se prepara para um trajeto de 2.000 quilômetros com paradas em Basel (ainda na Suíça), Paris (França), Bruxelas (Bélgica), Amsterdan (Holanda) e Copenhagen (Dinamarca). Percebam, portanto, a facilidade para o inconsequente espalhar uma contaminação por pelo menos seis países europeus só de pegar uma caroninha num trem!

Agora transformado numa bomba-relógio bacteriológica, o expresso para Estocolmo tem toda aquela fauna característica dos filmes-catástrofe dos anos 1970, interpretada por astros do momento, astros de outrora em decadência tentando ganhar um último cachê decente, astros do esporte tentando emplacar no cinema e atores europeus que só fãs de tralhas do período vão reconhecer.


A veterana Ava Gardner interpreta uma ricaça, esposa de um fabricante de armas, que está viajando com o amante a tiracolo; Martin Sheen, com cabelo comprido e figurino “xóvem”, é o tal amante, um alpinista que por baixo dos panos faz tráfico de heroína; O.J. Simpson, então um esportista famoso fazendo a transição para o cinema, encarna um padre muito suspeito (um papel oferecido a James Coburn, que pulou fora na última hora); Lee Strasberg, criador do ‘method acting’ e diretor do Actors Studio, é um velho sobrevivente do Holocausto que vive de vender relógios provavelmente contrabandeados; Alida Valli é a babá de uma menina rica e chata, e por aí vai. Tem até um grupo de ripongas onde se destaca Ray Lovelock, que os cinéfilos “lado B” vão reconhecer de “No Se Debe Profanar el Sueño de los Muertos” e “Uomini si Nasce, Poliziotti si Muore”.


Claro que A TRAVESSIA DE CASSANDRA também precisa de um protagonista, e este é o Dr. Jonathan Chamberlain, um famoso neurocirurgião – e como é conveniente ter um médico respeitado no trem num filme sobre uma epidemia! Sabemos que ele é famoso porque sua primeira cena no filme mostra Chamberlain chegando na estação ovacionado por fãs e fotografado por jornalistas. Ele também é capa de uma das revistas na banca da estação, aparentemente por ter criado um processo para “rejuvenescer células defeituosas no cérebro de crianças retardadas”.

O inglês Richard Harris, de “Um Homem Chamado Cavalo”, ficou com o papel originalmente oferecido a Charlton Heston. Este recusou a “distinção” porque não queria ficar marcado como “astro de filmes-catástrofe”, considerando que até então tinha aparecido em três obras nesta pegada: “Voo 502 em Perigo” (1972), “Aeroporto 75” e “Terremoto” (ambos de 1974). Pelo visto a pobre Ava Gardner não tinha o mesmo problema: “musa das tragédias”, antes deste ela tinha aparecido em “A Hora Final” (1959) e “Terremoto” (1974), e logo depois ainda faria “Cidade em Chamas” (1979).


O Dr. Chamberlain convenientemente não gosta de voar, e por isso reserva uma cabine de primeira classe no trem. Sua surpresa, ao chegar no vagão, é descobrir que a “vizinha” de cabine é Jennifer Rispoli, a ex-esposa de quem já se divorciou duas vezes, mas segue mantendo um relacionamento entre tapas e beijos.

Ela acabou de escrever um livro de memórias lavando roupa suja do casamento dos dois, mas Chamberlain e Jennifer parecem ainda se amar e não demoram para terminar na cama. Ah, sim: a moça obviamente é interpretada por Sophia Loren. Nada disso faz muito sentido no fim, mas os caras precisavam criar algumas relações humanas para enrolar antes de a desgraceira começar.


E enquanto o velhinho judeu vende seus relógios, o padre O.J. age estranhamente (se recusando a fazer uma prece antes da refeição, por exemplo), o casal Ava-Sheen faz ioga (numa daquelas imagens ridículas que ficam para sempre gravadas na retina), os hippies cantam e trepam, e Chamberlain e Jennifer curtem sua esquisita e absolutamente desinteressante relação, também existe um terrorista infectado com uma doença mortal à solta no trem, lembra?

Pelos próximos 30 ou 40 minutos, o sujeito suado e cheio de perebas pelo rosto irá aparecer fazendo absolutamente tudo que se espera de alguém prestes a contaminar um trem inteiro: ele aperta bochecha de bebê, abraça criança, tosse e sua perto de pessoas inocentes, e daí para pior. Num dos momentos menos sutis, caso alguém ainda não tenha entendido que o cara está contaminando geral, ele passa pela cozinha e tosse e cospe dentro de uma panela de arroz, que em seguida será servida aos passageiros da primeira classe! Urgh...


A partir de então, A TRAVESSIA DE CASSANDRA se desenvolve em duas linhas narrativas: enquanto no trem a contaminação se espalha rapidamente entre os passageiros, na OMS o Coronel Mackenzie tenta resolver a situação da forma mais definitiva possível, especialmente depois de perceber a rapidez com que o segundo terrorista morre vitimado pelos sintomas da doença.

A Dra. Stradner sugere que os milicos parem o trem e coloquem todos os passageiros em quarentena, mas Mackenzie não quer correr o risco de que alguém possa escapar e espalhar ainda mais a bactéria. Resolve, então, forçar um desvio na rota para Nuremberg, na Alemanha, e dali para a Polônia, onde todas as vítimas a bordo poderão ficar isoladas num velho campo de concentração em Janov, longe da civilização, até que sejam separados os sadios dos contaminados.


Só que, para chegar à zona onde acontecerá a quarentena, é necessário que o trem passe por uma antiquíssima ponte de metal fechada desde os anos 1940 – a “Travessia de Cassandra” do título, batizada em homenagem à personagem homônima da mitologia grega que tinha profecias terríveis. Um nome nada auspicioso para uma ponte, digamos...

Ao descobrir, pela relação de passageiros, que o Dr. Chamberlain está no trem, Mackenzie consegue contato com o médico pelo rádio do veículo e explica a situação. O terrorista infectado é encontrado, mas já está nos finalmentes, entra em coma e morre. O drama, agora, é descobrir quanta gente ele pode ter contaminado enquanto ficava zanzando sem rumo pelo veículo.


Quando várias pessoas começam a apresentar sintomas da grave doença, Chamberlain (que misteriosamente é imune à bactéria) transforma o trem num grande hospital em movimento. E Mackenzie resolve fazer uma jogada arriscada: durante uma parada de emergência numa linha isolada, o exército americano assume o comando do veículo, bloqueia todas as janelas com grades de metal, para ninguém escapar, e embarca soldados com trajes anti-contaminação e metralhadoras, que parecem saídos diretamente de “O Exército do Extermínio” (1973), de George A. Romero!


Aí, meu amigo, desgraça pouca é bobagem: não bastasse uma bactéria mortal à solta e uma caralhada de gente doente, não bastasse um trem que virou prisão e que é forçado a seguir em frente sem parar, não bastasse um grupo de militares violentos e armados tocando o terror, tem ainda um grande problema que é o fato de que a tal Travessia de Cassandra talvez não suporte o peso do veículo e desmorone durante sua passagem! É mole?

Percebendo o tamanho do pepino, Chamberlain, Jennifer e outros passageiros iniciam um motim e tentam retomar o controle do expresso para o inferno, enfrentando os soldados na mesma moeda (ou seja, com tiros de metralhadora) para parar o trem antes que todos possam comprovar na prática se a ponte fechada há 30 anos vai aguentar o tranco ou não. Quem vive? Quem morre? Quem se importa?


Como a maioria dos filmes-catrástrofe do período, parte da graça de A TRAVESSIA DE CASSANDRA é ver tanta gente famosa e/ou conhecida sob um mesmo refletor, e tentar adivinhar quem vai sobreviver no final. Além de todos os já citados, o elenco também conta com pequenas participações do Anjo de “Barbarella”, John Phillip Law (como o major que assessora Burt Lancaster); do mordomo do “Casal 20” (eta referência jurássica!) Lionel Stander, como o “bilheteiro” do trem; de Thomas Hunter, um dos vários atores ianques a tentar a sorte no western spaghetti, como o líder do “Exército do Extermínio”; e de Ann Turkel (abaixo) como uma das ripongas.


Destaque-se que esta última só está no elenco por carteiraço: na época das filmagens, Ann tinha recém se casado com o inglês Richard Harris, e sua participação no filme foi uma imposição do astro ao assinar o contrato, para que o casal pudesse estender um tantinho a sua lua-de-mel na Europa.

A coitadinha protagoniza um dos momentos mais constrangedores do filme, quando Cosmatos trava a narrativa para que ela e os ripongas possam tocar e cantar “I'm Still on My Way”, numa cena ridícula em que até o fiscal Lionel Strander faz uma paradinha no trabalho para ficar assistindo o número musical com um estúpido sorriso no rosto! Tal cena só existe porque outros filmes-catástrofe da época costumavam levar o Oscar de Melhor Canção Original. Aconteceu com “The Morning After”, da trilha de “O Destino do Poseidon”, e com “We May Never Love Like This Again”, de “Inferno na Torre”, ambas cantadas por Maureen McGovern. Por motivos óbvios, “I'm Still on My Way” não ganhou porra nenhuma, e o interlúdio musical ainda costumava ser cortado das exibições do filme na TV aberta!


Também como acontece na maioria dos filmes-catrástrofe do período – e isso não é nem de longe uma qualidade –, A TRAVESSIA DE CASSANDRA faz o possível e o impossível para dar algum tempo de tela para esta gente toda; afinal, é preciso valorizar o investimento e botar as carinhas conhecidas pra trabalhar, né não? Aí tome draminha pessoal, romancezinho churumela e subtrama fajuta para matar tempo num filme QUE JÁ TEM COISA DEMAIS ACONTECENDO! Assim, quando descobrimos que O.J. Simpson não é um péssimo sacerdote, mas sim um agente da Narcóticos disfarçado de padre para tentar prender o traficante de heroína a bordo, simplesmente ninguém se importa. Quando o velhinho judeu interpretado por Lee Strasberg tem um ataque de desespero ao descobrir que está sendo levado à força para a Polônia – ele que testemunhou a execução da esposa e do filho pelos nazistas no mesmo campo de concentração onde ficarão em quarentena –, o espectador igualmente não poderia se importar menos. E coitadinha da italiana Alida Valli: uma grande atriz que teve papéis de destaque em clássicos como “Os Olhos Sem Rosto”, de Georges Franju, aqui foi reduzida a uma babá xarope permanentemente censurando a menina-peste interpretada por Fausta Avelli.


O mais curioso é que, embora tudo indique que o grande vilão do filme será a epidemia mortal a bordo, A TRAVESSIA DE CASSANDRA logo apela para uma bizarra reviravolta: a bactéria que antes parecia 100% letal começa a se curar sozinha (algo relacionado a excesso de oxigênio), matando apenas alguns velhinhos e o próprio terrorista que deu início à coisa toda.

A danada da bactéria também é bem menos perigosa do que o próprio filme fazia supor no início. Chamberlain e Jennifer, ela atuando como enfermeira improvisada, passam boa parte da trama em contato direto com os doentes (embora ele não tenha sequer um estetoscópio a bordo, e não possa fazer nada além de jogar um cobertor por cima dos caras), mas nenhum dos dois JAMAIS É CONTAMINADO!


Assim, e esta é a reviravolta, A TRAVESSIA DE CASSANDRA deixa de ser um thriller sobre uma epidemia mortal e vira uma história anti-militarista. Começa a ficar claro que o Coronel Mackenzie não está desviando o trem para a Polônia com o intuito de salvar os passageiros, mas sim porque ESPERA que a tal ponte desmorone, mate todo mundo e, numa cajadada só, elimine o risco de uma pandemia e todas as evidências dos experimentos proibidos que o exército norte-americano fazia em solo suíço!

A partir disso, o filme vira praticamente um “O Exército do Extermínio” sobre trilhos, pois com a doença mais ou menos sob controle a prioridade dos heróis torna-se parar o trem antes de chegar na Travessia de Cassandra. Para fazer isso, o núcleo de protagonistas precisa se rebelar, tomar armas e trocar tiros com os soldados a bordo, agora transformados nos verdadeiros vilões da história.


Iniciadas em dezembro de 1975, as filmagens de A TRAVESSIA DE CASSANDRA se estenderam por praticamente quatro meses. E embora se passe quase que o tempo inteiro num trem em movimento entre a Suíça e a Polônia, o grosso das gravações aconteceu nos estúdios da Cinecittà, em Roma, onde foi construído todo o interior do veículo, para que os atores e a equipe técnica pudessem trabalhar com mais conforto e liberdade de movimento – algo impossível de se fazer nos corredores e cabines apertadas de um trem de verdade. Já as externas que mostram o trem do alto foram filmadas de helicóptero ao longo da ferrovia, entre a França e a Suíça.


A maior curiosidade geográfica é a bendita ponte metálica que dá nome ao filme (acima). Ao contrário do que o roteiro sugere, não existe uma “Ponte Kasundruv” na Polônia. A ponte que vemos é na verdade o Viaduc du Garabit, no interior da França (em Cantal, perto de Clermont-Ferrand), uma obra que, conforme o design denuncia, foi projetada pelo arquiteto francês Gustave Eiffel – o mesmo responsável pela célebre torre em Paris que foi batizada com seu sobrenome.

Considerando que a tal “Travessia de Cassandra” é a locação do clímax do filme, Cosmatos foi muito eficiente ao apresentá-la como uma autêntica “vilã”, ainda que inanimada. Devagarzinho, o diretor vai construindo todo um clima de tensão que já prepara o espectador para o pior: corta pelo menos três vezes do trem para a ponte, mas usa ângulos de câmera e enquadramentos que reforçam uma sensação de ameaça, acentuada pela trilha sinistra de Jerry Goldsmith (em alguns tons bastante parecida com a que ele fez para “A Profecia” na mesma época). Na primeira vez em que aparece, a ponte inclusive está encoberta pela neblina, parecendo saída de um filme de horror gótico!


Pelo fato de as cenas no interior do trem terem sido filmadas em estúdio, os departamentos de edição e de efeitos especiais tiveram que trabalhar dobrado para convencer o espectador de que aqueles atores confortavelmente instalados na Cinecittà estão correndo algum risco de vida.

Duas das cenas mais tensas do filme envolvem tentativas dos passageiros de deixar o trem. Na primeira, um helicóptero enviado pela OMS tenta retirar do veículo em movimento o terrorista contaminado e um cachorro que foi igualmente infectado. Cortando do interior do vagão (em estúdio) para ótimas cenas aéreas, com um helicóptero voando perigosamente perto de montanhas e túneis, este é um momento que deixa o espectador roendo as unhas, na expectativa de que dê merda a qualquer momento. E que hoje seria feito facinho por computação gráfica, mas sem a mesma tensão.


Já a segunda cena não é de todo convincente: o alpinista interpretado por Martin Sheen tenta chegar até a locomotiva, para parar o trem, pendurando-se nas grades afixadas às janelas, pelo lado de fora do vagão. Os trechos que mostram um corajoso dublê realmente (e perigosamente!) dependurado na lateral do veículo em movimento são extremamente bem feitas; entretanto, quando a edição corta para o verdadeiro Sheen recortado num chroma-key vagabundo, a ilusão é instantaneamente quebrada.


Falando em chroma-key vagabundo, é bom que se destaque que toda e qualquer cena envolvendo este recurso é mal-feita, com o “recorte” ao redor dos atores mais do que aparente (tipo Richard Harris “pulando” de um vagão para o outro na imagem abaixo). É um efeito tão ruim que talvez ficasse mais convincente se tivessem usado menos chroma e mais bonequinhos e miniaturas.


Até porque o grande momento de A TRAVESSIA DE CASSANDRA foi justamente encenado deste jeito. Trata-se do desastre no final, quando, para a surpresa de zero pessoas, a tal ponte abandonada realmente não consegue suportar o peso da locomotiva e desmorona, levando pelo menos uma centena de passageiros para uma morte horrível. Takes de um trenzinho de brinquedo e de uma ponte em miniatura desmoronando (construídos pelos italianos Aurelio Crugnola e Carlo De Marchis) foram editados com trechos impressionantes de pessoas morrendo esmagadas, queimadas vivas e até atravessadas por vigas de metal no interior do trem descarrilando!


É um final pesado e pessimista, que vai na contramão do tom mais leve de “tudo vai acabar bem” de outros filmes-catástrofe dos anos 1970 – em que algumas pessoas até morriam ao longo do caminho, mas no final a maior parte se salvava da grande tragédia.

Vá lá que Richard Harris e Sophia Loren conseguem separar o vagão onde estão as principais celebridades do filme a tempo, e quem realmente morre na queda da ponte é o elenco secundário – e os militares, que são “malvados”, então tudo bem. Ainda assim, é uma conclusão bastante perturbadora, com direito a corpos e bagagens flutuando no rio após o desastre.


Para não traumatizar famílias inteiras, este final de A TRAVESSIA DE CASSANDRA passou por uma mutilação completa na sala de edição antes de ser exibido na TV aberta norte-americana e européia (no Brasil não sei como foi). Ficaram as cenas da ponte desabando e do trem caindo e explodindo, mas todas aquelas cenas que mostravam homens, mulheres e crianças morrendo durante o desastre, e cadáveres flutuando no rio (abaixo), foram extirpadas, dando a impressão de que todo mundo estava no vagão separado pelo herói no último minuto e se salvou com vida! Ah, a magia da edição...


Embora tenho um roteiro com excesso de desgraças e desperdice algumas das suas melhores ideias (como a doença tão mortal que praticamente se cura sozinha), A TRAVESSIA DE CASSANDRA funciona. Suas duas horas passam voando, e a narrativa consegue provocar alguma tensão mesmo que não aproveite totalmente o senso de urgência da sua ameaça biológica – em nenhum momento o espectador se convence de que as pessoas a bordo estão prestes a morrer por causa da doença, até porque ela é bastante seletiva em quem contamina.

Claro que também há uma considerável cota de bobagens e rombos na lógica, como o fato de o terceiro terrorista hipoteticamente não ter contato com ninguém (e não contaminar ninguém) no trajeto entre a OMS e a estação de trem. Ou a estupidez do plano de Mackenzie, de tentar conter uma pandemia atirando um trem dentro de um rio, o que poderia facilitar a propagação da bactéria (o filme mostra claramente os cadáveres boiando e contaminando a água, que o rio levará sabe-se lá para onde!).


Felizmente, Cosmatos é um baita diretor, como demonstraria várias vezes ao longo da década seguinte, em seus filmes de ação com Stallone e nas suas raras incursões no cinema fantástico – o excelente “O Inimigo Desconhecido”, em que Peter Weller enfrenta um rato “inteligente”, e “Leviathan”, versão submarina de “Alien”. Mesmo que o filme tenha muita coisa sobrando (e um excesso de closes de uma hiper-maquiada Sophia Loren, que devem ter sido exigência do produtor Ponti para valorizar a esposa-estrela), o cineasta nunca deixa a peteca cair, e consegue manter o espectador ligado nas já mencionadas cenas de suspense e ação. A ideia de fazer um filme sobre um inimigo invisível (uma bactéria) dentro de um trem em movimento também é genial, porque o veículo garante a ação – além de mais um meio de transporte ligado a catástrofes, depois de navios em “O Destino do Poseidon” e aviões na série “Aeroporto”. Cosmatos morreu cedo, aos 64 anos, e hoje seu filho doidão Panos Cosmatos leva adiante o cinema da família (é dele o tresloucado “Mandy”, com Nicolas Cage).


A TRAVESSIA DE CASSANDRA é aquele tipo de filme que todo mundo conhece de nome, mas bem pouca gente viu. Quando chegou aos cinemas, em 1976, já era notícia velha: o ciclo de cinema-catástrofe estava perdendo a força. As críticas também foram bastante duras com a produção, que só conseguiu se pagar porque miraculosamente foi um grande hit no Japão.

Nem mesmo os atores ajudaram a defender o projeto, e já na época confessavam que só tinham participado dele por dinheiro. Um dos menos empolgados com a coisa toda era Burt Lancaster, que aparece no piloto automático, sentado numa sala berrando ordens pelo rádio, repetindo seu papel de controlador de voo no “Aeroporto” original, de 1970 – com a exceção de que, lá, era bonzinho e estava comprometido em pousar o avião em segurança, enquanto aqui parece mais preocupado em sumir com o trem e seu conteúdo potencialmente mortal.


Em uma de suas biografias (escrita por Robert Windeler), Lancaster lembrou do filme como uma experiência descartável: “Fiz A TRAVESSIA DE CASSANDRA por dinheiro. Trabalhei nele durante duas semanas e ganhei um montão de dinheiro. Na verdade eu até me diverti passando dez dias sentado com a maravilhosa Ingrid Thulin, mas eu nunca vi a Polônia, nem a ponte do título, e nem o próprio filme depois de pronto”.

O ator também alega ter reescrevido, sem ganhar um centavo adicional, boa parte dos diálogos do roteiro original, a pedido do próprio diretor Cosmatos, que estava enfrentando um motim de seus astros e estrelas, todos cobrando “falas melhores”. Aspas para Lancaster: “Eu reescrevi, com o diretor, alguns diálogos para as minhas cenas com Richard Harris e Sophia Loren, porque o roteiro era muito ruim. Aí o diretor ficava maluco e gritava com todo mundo: ´Que inferno, eu e o Lancaster estamos trabalhando pra cacete pra escrever essas falas para vocês, e vocês ainda reclamam! Então tudo bem, vou deixar os diálogos originais, aí vocês vão ver o que é bom!’”.


Em tempos de coronavírus, A TRAVESSIA DE CASSANDRA parece funcionar muito melhor; seu clima de paranóia de repente faz mais sentido. Ainda não chegamos a alguns dos extremos mostrados no filme, tipo o exército fechar um trem para que ninguém escape e mandá-lo direto para a morte. Por outro lado, há inúmeros casos de navios de cruzeiro pelo mundo que ficaram retidos em portos e, devido à suspeita de algum infectado entre os passageiros a bordo, foram colocados de quarentena – certas vezes até ajudando a espalhar o pânico ou o vírus, ou mesmo ambos, a bordo.

Como sempre, não há nada na ficção que não possa ser mais assustador na vida real. E comparando com o que testemunhamos ao vivo neste planeta Terra do ano de 2020, A TRAVESSIA DE CASSANDRA não passa de uma gripezinha ou resfriadinho...

PS: O filme-catástrofe definitivo sobre pandemias assassinas sairia quatro anos depois, no Japão. Trata-se de “Fukkatsu no hi”, de Kinji Fukasaku, uma superprodução internacional de quase 3 horas conhecida como “Virus”, que trata justamente da extinção da raça humana – e sobre a qual falaremos em breve, se a raça humana não for extinta também na vida real!



Trailer de A TRAVESSIA DE CASSANDRA

13 comentários:

Leonardo Peixoto disse...

Minha pergunta feita na resenha de "Fase 7" foi respondida , filmes de epidemias mortais vão marcar presença agora .

spektro 72 disse...

Escrevendo sobre filmes de doenças e epidemias tem esse filmes que passaram na TV há muito tempo com esses temas ,VITIMAS DO DESCONHECIDO com: Meg Tilly, nesse filme todo mundo da cidade fica agindo de forma estranha ao beber água contaminada o final é incrível , MUTANTE com :Bo Hopkins e Wings Hauser ,vírus faz todo mundo da cidade virar um tipo de zumbi noturno e eles precisam de sangue para sobreviver ,Calafrios & Enraivecida - Fúria do Sexo ambos de David Cronenberg nesse dois filmes falam do mesmo tema de uma doença sexualmente transmissível em larga escala mundial .. isso antes da AIDS existir ,o cara foi um vidente e dentre outros filmes com esse mesmo tema , o tema é bom de ser comentado e discutido.

Luciano Milhouse disse...

Felipe,tenho que te pedir: queria muito uma matéria sobre dois filmes alemães os quais são dificilimos de se encontrar informações: "1999 - O Sobrevivente do fim do mundo" e "Crack, conexão da morte", clássicos das locadoras do início dos anos 1990! E aí, será que pode rolar? Abraços!
PS: Seu blog tem sido um grande companheiro nesses tempos de quarentena! Tenho lido bastante e me divertido muito!

Daniel I. Dutra disse...

Parece que filmes de epidemia são mesmo a nova tendência, pelo menos no canal cinemax. Hoje é o segundo dia que vejo um filme sobre epidemias, "Ao cair da noite", se não me engano já resenhado no Filmes para Doidos. Ontem deu "Paciente Zero".

"Ao Cair da Noite" vale a pena. Fujam de "Paciente Zero", é apenas mais um filme de zumbi onde apenas trocaram os mortos vivos por infectados com raiva.

Colecaoema disse...

Queria muito uma resenha sobre”Mutante” com o Bo Hoskins no papel principal! Mais uma excelente resenha!

Leonardo Peixoto disse...

Luciano Milhouse , com o clima apocalíptico atual , acho que a resenha de "1999 - O Sobrevivente do Fim do Mundo" tá garantida .

Felipe M. Guerra disse...

LUCIANO, esse "1999 - O Sobrevivente do Fim do Mundo" foi um dos primeiros filmes que lembro de ter visto em VHS, lá por 1987-88. Deve aparecer por aqui em algum momento, sim.

Ismael Monteiro disse...

Esse filme eu desconhecia vou procurar para assistir, mesmo não sendo um clássico do genero cinema catastrofe, como sempre excelente resenha, abraço !!!

Jorge Verneti disse...

O filme "Mutante" citado nos comentários não conhecia. Pesquisando sobre o filme descobri que o mesmo possui um remake intitulado "Nightmare at Noon". Este longa, por sua vez, eu assisti em VHS na década de 90. Lançado em vídeo no Brasil com o título de "Pesadelo ao Meio Dia", a trama do filme lembra o "Exército do Extermínio".
Merece uma resenha aqui também.

@jb1969cinema disse...

Como sempre, texto foda!

tadeudimasf@gmail.com disse...

PRA QUEM FICOU COM VONTADE DE VER O FILME O CANAL DO YOUTUBE CINE VELHOS TEMPOS GOLD TEM COMPLETINHO LEGENDADO E COM UMA QUALIDADE ABSURDA. TÁ TUDO LÁ AS CENAS PESADAS DO DESASTRE NA PONTE E ATÉ A MUSIQUINHA XAROPE DOS HIPPIES 😛😛😛

Raphael Silvierri disse...

Texto ótimo e saboroso como sempre, só sugiro uma correção Felipe...algumas vezes fala em "vírus" e outras em "bactérias" no texto. E são coisas diferentes... segundo o "Gógle":
As bactérias nem sempre são prejudiciais: algumas são vitais para a saúde humana, como as que compõem a flora intestinal e auxiliam na digestão. Já os vírus não são células, são partículas infecciosas. Para muitos cientistas, os vírus nem são considerados seres vivos... óbvio, não sei nada sobre isso, e tampouco afeta o prazer da leitura.

Luís Ramone disse...

O filme "Mutante" (também chamado de "Dark Shadows") é um ótimo filme de zumbi. Tenho ele em VHS, da Pole Vídeo.