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sexta-feira, 24 de julho de 2020

MUNDO - MERCADO DO SEXO (1979)


Em 19 de fevereiro de 2020, o cinema brasileiro perdeu seu último gênio, José Mojica Marins, aos 83 anos. Com uma filmografia extensa e variada que teve até comédias eróticas, westerns e filmes pornôs, Mojica ainda é mais lembrado (compreensivelmente) como o grande mestre do horror que foi, tendo concebido não apenas o primeiro filme nacional assumidamente de gênero (“À Meia-Noite Levarei Sua Alma”, de 1964), mas também criado o primeiro e maior personagem 100% brasileiro, o Zé do Caixão, enquanto outros realizadores preferiam importar monstros e assombrações de origem estrangeira (algo que, diga-se, acontece até hoje).

Em homenagem a Mojica, o Filmes para Doidos resgata um de seus filmes menos conhecidos, menos vistos e menos comentados (embora, por muito tempo, fosse um dos poucos da sua filmografia disponível em VHS, pela CIC Vídeo!). Trata-se de MUNDO – MERCADO DO SEXO, uma pequena gema não-lapidada que, embora vendida como “filme de horror”, pertence a um outro gênero com o qual o cineasta tinha menos afinidade: o melodrama. Ironicamente, foi no melodrama que Mojica tentou começar sua carreira (no longa “Sentença de Deus”, de 1955, nunca concluído). E foi também no melodrama que teve um de seus maiores fracassos comerciais com “Meu Destino em Tuas Mãos”, de 1963 – cujo resultado pífio nas bilheterias incentivou o diretor a trocar o drama pelo terror.


MUNDO – MERCADO DO SEXO era um projeto que já acompanhava Mojica há pelo menos duas décadas, porém com outro título menos sensacionalista: “Manchete de Jornal”. Obviamente, a troca de nome foi por questões de mercado, já que títulos que vendessem sacanagem costumavam atrair mais público às produções nacionais nos anos 1970-80. Nos créditos iniciais do filme pronto, “Manchete de Jornal” aparece entre parênteses logo abaixo do “novo” título.

O argumento original foi baseado num episódio verídico que quase encerrou prematuramente a carreira do cineasta, acontecido quando o jovem José Mojica ainda era um rapazote tentando produzir seu primeiro longa-metragem – o supramencionado “Sentença de Deus”. Em 1953, aos 18 anos de idade, Mojica tinha fundado um misto de estúdio com escola de interpretação chamado (com certa pretensão) Indústria Cinematográfica Apolo. Por meio da escola/estúdio, tentava viabilizar o filme através da venda de cotas da produção aos próprios alunos.


Era um esquema bizarro, que não levava em consideração nem talento, nem atributos físicos: qualquer ator canastrão, baixinho e banguela que comprasse determinado número de cotas poderia ganhar papel de destaque na película! Mas a excêntrica prática pegou mal no meio das artes, e em 1955 um repórter do tablóide paulista Equipe Artística bateu no pequeno estúdio da Apolo acompanhado pelo consagrado ator Milton Ribeiro – o “Cangaceiro” de Lima Barreto em pessoa!

Provavelmente o maior astro que um dia já pisou na Indústria Cinematográfica Apolo, embora pelos motivos errados, Ribeiro tinha ido dar uma bronca em Mojica, em nome de um conhecido que se julgava engambelado pela venda de cotas. Enquanto tentava se justificar, o jovem cineasta se enrolava ainda mais inventando mentiras absurdas: que era parente distante de José Mojica, um famoso galã mexicano que abandonou o cinema para virar frei, e que tinha contratado Tony Rabatoni, então um dos maiores diretores de fotografia do país, para filmar “Sentença de Deus”!


A reportagem, com teor sensacionalista e ataques pessoais ao pobre cineasta (fazendo graça da maneira como ele falava, por exemplo), foi publicada na edição do Equipe Artística de 24 de maio de 1955, com a manchete “Milton Ribeiro desmascara os chantagistas”. E embora fosse um jornal pouco popular, com circulação de apenas 5.000 exemplares, o jovem Mojica entrou em desespero: aquela reportagem poderia acabar não só com a sua carreira que mal começava, mas também com sua relação amorosa com a atriz principal de “Sentença de Deus”, Rosita Soler, que vinha de uma nobre família de espanhóis e também tinha caído na lábia do futuro Zé do Caixão...

Sem pensar duas vezes, Mojica distribuiu dinheiro aos seus alunos e mandou que caminhassem pela cidade inteira comprando toda e qualquer edição de Equipe Artística, visando tirar o jornal de circulação antes que pudesse fazer qualquer estrago na sua imagem. Só que o tiro saiu pela culatra: ao ver aquele número repentinamente desaparecer das bancas, o editor do jornal ficou feliz da vida e mandou imprimir mais uma tiragem para aproveitar o “interesse”!


O nome do jornalista que quase implodiu a carreira de Mojica em seus primórdios era Guarany Edu Gallo, um repórter iniciante tentando mostrar serviço com uma “reportagem-denúncia” bombástica. Em sua pesquisa intitulada “Das Primeiras Experiências ao Fenômeno Zé do Caixão”, a professora paulista Daniela Pinto Senador lembra que Gallo também estava ligado a profissionais do teatro da época, e que provavelmente fez da reportagem um ataque pessoal ao fundador da Apolo por não considerar o time de jovens cineastas “profissional o suficiente”.

Mojica, claro, nunca esqueceu disso. E decidiu que um dia ainda faria um filme sobre repórteres inescrupulosos como Gallo, que detinham o poder de destruir reputações na ponta de suas canetas e podiam provocar o maior estrago com uma simples manchete de jornal.


“Nos anos 50, um cara chamado Guarany Edu Gallo começou a descer o pau em mim, me chamando de picareta. Fizeram uma campanha forte, e eu na época tentei comprar todos os exemplares do jornal. Gastei toda a grana que tinha, mas eles soltaram a segunda edição, porque quanto mais eu comprava mais dava impressão de que estava vendendo”, confirmou Mojica, numa entrevista a Eugênio Puppo e Arthur Autran em 2005. “Ele nunca saberia que eu ia criar o Zé do Caixão, esse cara que escreveu que eu tinha de estar na cadeia. E, na época, eu estava noivo de uma das melhores bailarinas da dança flamenca do Brasil, o pai querendo levar ela para a Espanha porque achava que eu era mau caráter”.

Ainda na entrevista, o cineasta relembra a gênese de MUNDO – MERCADO DO SEXO: “Anos depois, eu pensei em fazer alguma coisa em 8 mm ou em 16 mm e colocar o título ‘Manchete de Jornal’. (...) Eu queria mexer com a vaidade desse cara que escreveu a matéria contra mim. Ele ia ver aquilo que Cristo falou: ‘Quando te dão um tapa, oferece a outra face’”.


MUNDO – MERCADO DO SEXO conta a história de Mauro Pereira, um repórter idealista que trabalha para um grande jornal (a Folha da Manhã, segundo um freeze frame de uma reportagem mostrada na cena final), e é interpretado pelo próprio Mojica. Seu patrão, o “Seu Raul” (David Húngaro, que acompanhava a trupe do diretor desde “A Estranha Hospedaria dos Prazeres”), lhe deu 24 horas para conseguir uma manchete para a capa da edição do dia seguinte. E em plena véspera de Natal!

Um parêntese: o roteiro do próprio Mojica (erroneamente atribuído a Rubens Francisco Lucchetti em algumas fontes, embora o próprio já tenha afirmado que não tem nada a ver com o filme) desconhece completamente o funcionamento de uma redação de jornal, além de nunca explicar a razão para proposta tão sórdida, nem a condição em que foi feita. Mauro já trabalha no jornal e a obtenção de uma manchete em 24 horas lhe trará uma promoção? Mauro já trabalha no jornal e, caso não consiga o furo, será demitido? Ou Mauro está fazendo processo seletivo para integrar a redação do jornal, e o prazo de 24 horas para conseguir uma manchete é a condição para sua efetiva contratação?


O que se sabe, apenas, é que Mauro parece muito determinado, desesperado até conforme a narrativa progride, em manter seu emprego. O filme começa na sua casa, onde o repórter acorda cedinho. Depois de beijar a testa do filho Toninho, que ainda dorme, Mauro se despede da esposa Maria (Bárbara Prado) e segue-se o seguinte diálogo expositivo:
- Finalmente o dia chegou, meu bem. Agora é comigo.
- Eu sei, Mauro. Essa chance não vai nos escapar.
- Não vou desapontar o Seu Raul.
- Tenho certeza disso. Afinal, ele sabia com quem lidava. 
- É, um sonhador.
- Não, um idealista.
- 24 horas, para que o seu futuro e o de nosso filho estejam assegurados!


Mais adiante, antes de sair, Mauro diz que é grato pela oportunidade que o patrão lhe deu, o que sugere a possibilidade de que encontrar uma manchete em 24 horas seja a condição para que consiga o emprego no jornal. E o fato de Maria “fazer figa”, o popular gesto de sorte no Brasil, no momento em que o marido sai de casa, evidencia que o casal passa por dificuldades financeiras e que Mauro fará o possível e o impossível para não deixar esta chance passar.

Claro que, tirando o fato de vestir-se com roupas comuns (dos anos 1970) e usar uma caneta ao invés de armas mortais, Mojica segue interpretando Mauro com alguns tiques de seu Zé do Caixão, e mantendo as tradicionais unhas compridas (que devem dificultar bastante para fazer anotações).


Apresentada a situação básica e o desafio a ser enfrentado pelo protagonista, Mauro parte para as ruas de São Paulo com um bloquinho em branco e uma caneta que foi o primeiro presente que recebeu da esposa. “Acho que vou ter muita sorte com ela”, comenta o repórter, numa série de pequenos elementos que já dão pistas para a conclusão trágica da história (ele também declara “Este será o nosso melhor Natal”, e passa por um quadrinho que, ironicamente, diz “Hei de vencer”).

Um relógio, daquele tipo bem brega com bonequinhos em movimento na mudança das horas, informa ao espectador que são oito horas da manhã, e voltará a aparecer ao longo do filme como elemento narrativo, para ilustrar o quanto o prazo de 24 horas está próximo de terminar – seus ponteiros inclementes crucificando Mauro a cada novo movimento.


Um caminhão-pipa lava as ruas praticamente desertas enquanto o intrépido repórter caminha ao som da música-tema, breguíssima. Cantada por Oscar Marcil (ao lado do mestre na foto ao lado), a letra foi escrita especialmente para o filme e sublinha a jornada do protagonista:

“O sol já despontou
Um novo dia nasceu
O tempo não parou
E o mundo alvoresceu
O homem olhou para o céu
Seu caminho prosseguiu
E no aceno da amada
O destino até sorriu
Deixa o filho e a esperança
O conforto e a paz do lar
Vai o homem pelo asfalto
A desgraça procurar
Tem que encontrar
Vai o homem caminhando
À procura do anormal
Mas o dia é quase santo
Como num sonho irreal
O seu bloco ainda branco
A caneta ainda parada
Mesmo que houvesse um dilúvio
Ou terremoto fatal
Ou um ser extraterreno
Ou um mistério espacial
Com um estranho sentimento
Ele via tudo igual
É tudo igual”

(Você pode ouvir a música inteira, chamada “Manchete de Jornal” e aparentemente nunca gravada em nenhum dos discos de Oscar Marcil, clicando aqui.)

A partir do momento em que Mauro inicia sua busca pela “manchete de primeira página”, MUNDO – MERCADO DO SEXO ganha um formato episódico, em que diferentes eventos e personagens gravitam ao redor do protagonista, mas ele nunca vê o potencial destes para virar sua tão sonhada reportagem. Tão logo o repórter se distancie das situações, porém, elas se tornam manchetes – e, em mais uma das ironias do bem bolado roteiro do filme, todas elas realmente ganham títulos na capa de um jornal na última cena, embora em reportagens que não foram escritas pelo pobre Mauro.

Ao passar por um homem entrando apressado em seu carrão vermelho, por exemplo, o instinto de Mauro lhe diz que algo pode estar acontecendo, mas logo em seguida o protagonista comenta consigo mesmo: “Um homem com pressa é normal hoje em dia. Muito normal”. Minutos depois, o mesmo carro vermelho em alta velocidade irá atropelar seu filho Toninho.


Ao receber uma dica anônima de que um contrato milionário seria assinado, Mauro vai até um escritório e recebe a confirmação da recepcionista de que um tal “magnata dos cereais” está fazendo negócios ali. Mas o repórter volta a ficar dividido sobre o potencial do tema para virar manchete: “Esses milionários vivem assinando contratos. Isso é muito normal, nunca poderia dar uma boa notícia”. Horas depois, o tal magnata, Habud (interpretado pelo gênio dos quadrinhos de horror Jayme Cortez), volta para casa e comete suicídio porque na verdade está falido.

O faro jornalístico também leva Mauro à emergência de um hospital, onde um paciente está sendo conduzido à UTI. “É grave, doutor?”, questiona o esperançoso repórter, apenas para descobrir que trata-se de uma operação corriqueira. “É rotina, não é? Se é rotina, não tem interesse, não é novidade. Tudo igual...”, lamenta. No momento em que ele sai do hospital, uma falha no gerador deixa a sala de cirurgia sem luz e o paciente morre na mesa de operação!


Registre-se, porém, que o protagonista não tem nenhuma culpa por não conseguir enxergar manchetes nestes episódios banais, já que somente por coincidências muito particulares estas ocorrências absolutamente corriqueiras acabarão ganhando algum interesse jornalístico DEPOIS.

Ok, Mojica não parece ter muito conhecimento sobre como funciona a atividade de jornalista, ao colocar seu “repórter” a percorrer as ruas com um bloquinho em branco em busca de informações que caiam do céu. Na vida real, jornalistas costumam ter fontes, ou buscam a reportagem em locais como delegacias de polícia e órgãos públicos. A possibilidade de encontrar um furo enquanto caminha sem rumo pela rua é ínfima, e depende mais da sorte do que da capacidade jornalística de seja lá quem for.

No caso das situações retratadas no filme, seria absolutamente impossível para Mauro enxergar a notícia por trás dos fatos banais, a não ser que os acompanhasse obsessivamente durante boa parte do dia, como um autêntico stalker. Só que não haveria muita lógica em seguir o motorista apressado na esperança de que ele atropele alguém, ou a bonitona (Marly Palauro) que desfila pela rua chamando a atenção dos homens – e que, depois descobrimos, é filha de um bancário, grávida de um bandidão (o inconfundível Satã, que aparece só de cuequinha!!!), e comete suicídio bebendo cianeto!


O mesmo acontece quando Mauro vai parar em um salão de bilhar. Ao observar a total normalidade do ambiente, ele conclui, como qualquer pessoa normal: “O que poderia acontecer numa partida de bilhar? Tudo igual, tudo igual...”. Mas basta virar as costas para que um dos sujeitos aposte a própria esposa com outro numa partida de bilhar, dando origem a uma grande pancadaria que acabará com um sujeito morto a golpes de peixeira. Novamente, o repórter não poderia ter previsto tal escalada de violência num simples jogo de sinuca, e o fato de não estar mais presente para testemunhar o tumulto tem mais a ver com azar e “destino” do que com o profissionalismo do sujeito.


O único momento em que Mauro realmente demonstra que perdeu a manchete por burrice é quando ele acompanha as filmagens de uma pornochanchada chamada “Traição Fatal”, de uma fictícia Neo-Arte Produções Artísticas (no estúdio do próprio Mojica, como o pôster de “Finis Hominis” na parede denuncia). A trupe filma uma cena de adultério, em que o marido traído dá um tiro no amante da esposa. “Uma cena de adultério. Tudo normal”, avalia o repórter, e vai embora impaciente.

Pois se tivesse ficado mais cinco minutinhos e acompanhado a gravação até o final, como bom jornalista, ele testemunharia o ator que interpreta o amante sendo alvejado e morto “de verdade” por uma bala de revólver deixada por acidente na arma cenográfica – num momento em que o cineasta parece relembrar episódio verídico acontecido durante as filmagens de seu primeiro longa finalizado, “A Sina do Aventureiro” (1958). Neste filme, quando rodavam a cena em que uma arma era disparada diretamente contra a lente da câmera, o assistente de câmera Corintho acabou desfigurado pelos pedaços de chumbo lançados pelo tiro de festim do revólver verdadeiro!

(Sem querer querendo, Mojica também previu a morte trágica de Brandon Lee durante as filmagens de “O Corvo” em 1994, quando o ator foi igualmente alvejado durante uma cena de tiro.)


Mas voltemos a MUNDO – MERCADO DO SEXO! Enquanto desenrola-se o drama do protagonista em busca de sua manchete, a esposa Maria vive sua própria via-crúcis, com o filho no hospital em estado grave após o atropelamento, e nenhum dinheiro para bancar o tratamento de saúde.

Resta pedir ajuda ao “Seu Raul”, que abre a carteira para ajudar o garoto, mas exige uma “compensação” e estupra a moça na própria cama do casal – transformando o cenário da casa da família, apresentado como um local idílico e cheio de esperança na cena inicial, num verdadeiro inferno.

Em uma reviravolta tão inesperada quanto demente, o editor do jornal ainda confessa que só deu aquela chance a Mauro para que o maridão passasse o dia fora de casa atrás da tal manchete, deixando a área livre para que ele pudesse cometer o abuso sexual contra sua esposa! Afe!


Mauro termina suas 24 horas numa boate na Boca do Lixo, onde assiste, meio desligado, apresentações musicais de artistas reais, como Carlos Sodré e o próprio Oscar Marcil (cantando seu hit “A Salada”, uma variação muito suspeita do clássico “Festa de Arromba”, da Jovem Guarda), além de números de striptease em que anônimas dançarinas tiram a roupa ao som de uma trilha sonora excêntrica – incluindo a indefectível “Je T'aime Moi Non Plus”.

Exausto e sem esperanças de encontrar sua manchete àquela hora da madrugada, com o sol prestes a raiar, o protagonista sai da boate e retorna para casa cabisbaixo, com a derrota no semblante. “Não pode ser! Eu tentei! Eu tentei!”, declara num dramático off. “Não vou conseguir olhar para Maria e Toninho, eles confiavam em mim. Hoje os jornais trarão as páginas em branco. Justamente hoje”.


É quando acontece a grande cena de MUNDO – MERCADO DO SEXO, e um dos mais hilários, exagerados e surreais momentos de todo o cinema de José Mojica Marins. Trata-se de um longo take com o protagonista em close, num surto de desespero praticamente febril; suas mãos agarrando o próprio rosto, a disparar um discurso desconexo ao som de “Carmina Burana”, repetindo inúmeras vezes, e sempre de maneira dramática, a expressão “Tudo iguaaaaaaal”, a cada vez seguida do estrondo de um relâmpago! Enquanto parece desafiar Deus e o Universo, imagens do Cosmos (as mesmas usadas pelo cineasta no início de “A Estranha Hospedaria dos Prazeres”!) são projetadas no fundo, e diversos momentos do filme reaparecem repetidamente, como se Mauro estivesse recordando os fatos do dia, num interlúdio absolutamente surreal que destoa do clima mais “realista” do restante.


Aproveito para transcrever o monólogo de Mauro, que é uma pérola (e eu inclusive sugiro aos leitores bons de fígado usá-lo num drinking game, em que os participantes devem beber uma dose de qualquer coisa sempre que Mojica repetir “iguaaaaaal”): “Por que os outros conseguem e eu não? Por que, por quê? Procuro, procuro, e não encontro! Mas tem que existir, tem que existir... Alguém que não seja normal. Não pode, não pode... Mas onde irá existir o que não seja igual, igual, iguaaaaaaaaaaaaal??? Tem que existir aqui fora, no mundo, no Universo... Eu sei que tem que existir... Mas por que tudo tem que ser iguaaaaaaal, iguaaaaal? Por que tem que ser? Eu existo, os outros também. Eu penso, os outros também pensam. Eles encontram, por que eu não encontro? Marisa... Toninho... Eu preciso encontrar! Eu preciso encontrar! E por que eu não encontro? É tudo iguaaaaaaaaal!!!! Magnata... Hospital... Mendigo... Sexo... Eu preciso encontrar... Eu preciso encontrar... Mas é tudo... é tudo... É tudo iguaaaaaal!!! Por quê? Por que há o Diabo, e por que há Deus? Por quê? Se tudo é igual... Iguaaaaaaal!!! E os incêndios, os desastres, os dilúvios, as tragédias, as mortes... Onde encontrar? Tudo é igual! Iguaaaaaaal!!! Tem que existir... Tem que existir alguma forma, alguma vida que não seja normal. Mas onde? Onde? Eu preciso encontrar uma vida que não seja normal. Há o espaço, há o mundo, o Universo... Mas por quê? Por quê? Por que é tudo iguaaaaaal??? É tudo iguaaaaal!!! O pobre... O rico... Onde? Onde? Onde encontrar? É tudo... Tudo... Tudo iguaaaaaal!!!”


Após seu ataque de ansiedade, Mauro retorna para casa às oito da manhã – fechando pontualmente as 24 horas que tinha para encontrar sua manchete. Entre cansado, frustrado e derrotado, ele encontra “Seu Raul” em casa (que diabos, o sujeito estuprou a moça e ainda ficou esperando para tomar café da manhã?). Somando dois mais dois, o repórter entende o que aconteceu e fica com sangue no olho.

Sacando uma pistola tirada sabe-se lá de onde (aparentemente, Mauro passou o último dia zanzando por São Paulo com um revólver no interior do casaco!), o repórter entrega-se a um ataque de fúria e mata o editor e também a esposa violentada antes de cometer suicídio, tornando-se assim, numa ironia bem bolada mas já esperada, a própria manchete de jornal que precisava encontrar!


A cena do desfecho é novamente editada de forma fragmentada e caótica ao som de, outra vez ela, “Carmina Burana”. Closes dos olhos de Mauro e até da sua boca gritando “Mentira!” umas cinco vezes, com baba escorrendo pela barba, são intercalados com takes da arma, de Maria cobrindo e descobrindo os olhos com as mãos à espera do tiro que nunca vem, e da expressão algo aterrorizada, algo blasé de “Seu Raul” na mira do revólver.

A montagem estica o tiro fatal até o limite da paciência da vítima e do espectador, repetindo o trecho apoteótico de “Carmina Burana” umas três vezes, e dando a impressão de que o disco está pulando! O corte entre um take e outro, numa fusão em sobreposição dos negativos, também rende algumas imagens incríveis que o olho registra em milésimos de segundo, mas o botão “pause” deixa eternizadas, conforme você pode ver abaixo...


Finalmente, a última imagem do filme é a capa da Folha da Manhã – girando em direção ao espectador, como nos filmes de Hollywood –, com todas aquelas manchetes pelas quais Mauro passou, mas não percebeu, durante o dia anterior: “Filha de banqueiro morre por 1 marginal”, “Noiva infiel morta na noite de núpcias”, “Filmagem com balas de verdade causa morte de ator”, “Habud, o milionário, suicida-se. Estava falido”, “Violadas por 7 facínoras”, “Disputou mulher na mesa de bilhar e perdeu a vida”, “Falso mendigo era agiota” (esta aqui inclui uma foto do sujeito vestido como mendigo que não deveria existir, pois não havia ninguém fotografando naquele momento!).

Em destaque no topo, o próprio repórter tornando-se matéria de capa: “Jornalista vira manchete em Dia de Natal e suicida-se levando patrão e esposa”. Novamente numa ironia absurda, a música que toca é o coro de Aleluia d’O Messias, de Handel – sugerindo que o fato de Mauro ter conseguido sua tão cobiçada manchete de jornal, ao tornar-se homicida e suicida, é um autêntico milagre divino!


Além de um projeto curioso e fora da curva na filmografia de Mojica, MUNDO – MERCADO DO SEXO também surgiu num momento bastante delicado da sua carreira. Pouco antes, o diretor tinha finalizado “Inferno Carnal” e “Delírios de um Anormal”, este último basicamente um “filme-colagem” produzido a partir de cenas retiradas de seus outros longas. Seu trabalho seguinte seria um roteiro chamado “Estupro”, sobre um milionário que abusa de uma garota e que sofre a vingança da irmã dela. Só que o pobre diretor estava completamente falido àquela altura!

A solução que ele encontrou para viabilizar “Estupro” (que chegaria aos cinemas com um título suavizado, “Perversão”) foi convencer equipe e atores a trabalhar de graça. Segundo “Maldito”, a incrível biografia do cineasta escrita por André Barcinski e Ivan Finotti, o esperto Mojica reuniu sua ingênua trupe de alunos e os convenceu a fazer um “filme-relâmpago” de graça, financiado novamente por cotas pagas por eles, em que o diretor/ator não ganharia nada de cachê e toda a bilheteria ficaria com os próprios alunos; em troca, o pessoal trabalharia em “Estupro/Perversão” de graça. Os alunos toparam o desafio, e o filme-relâmpago foi MUNDO – MERCADO DO SEXO. Até a família participou em peso: a mãe Carmen Marins aparece na cena do casamento, e os filhos Crounel e Mariliz (a futura Liz Vamp) atuaram respectivamente como assistente de direção e atriz numa pontinha.


Hoje não há informações confiáveis para saber se algum dos pobres alunos chegou a receber um centavo de bilheteria pelo seu trabalho abnegado. Sabe-se, entretanto, que MUNDO – MERCADO DO SEXO é um dos títulos menos populares do diretor; logo, dificilmente deve ter arrecadado qualquer dinheiro. Naquela entrevista de 2005 a Eugênio Puppo e Arthur Autran, o diretor meio que confirmou isso ao confessar que só foram feitas duas cópias do filme, impedindo que ele fosse exibido em mais de duas salas de cinema ao mesmo tempo na época do lançamento.

Pré-produção, produção e pós-produção aconteceram tudo ao mesmo temo agora, na corrida, entre 1977 e 1978. Segundo o livro “Maldito”, em menos de dois meses o longa já estava filmado (as gravações duraram apenas três semanas), montado e dublado, prontinho para chegar aos cinemas.

Só que o lançamento não foi tão rápido quanto o resto: o longa estreou em algumas poucas salas de cinema de São Paulo apenas em 4 junho de 1979, cinco meses após “Estupro/Perversão”, que foi filmado depois! Vale destacar que mesmo no livro de Barcinski e Finotti o obscuro MUNDO – MERCADO DO SEXO é citado quase como nota de rodapé, apenas para destacar as dificuldades financeiras que o diretor vivia no final da década de 1970.


Tentando saber mais sobre os bastidores do longa, eu contatei alguns dos atores e atrizes do filme, e até o cantor Oscar Marcil, que segue na estrada. O único que respondeu foi Giulio Auricchio, que, além de interpretar o “mendigo-agiota” (abaixo), foi gerente de produção do longa. Na época das filmagens, ele tinha 33 anos e já integrava a trupe de Mojica desde 1975.

Sobre como conheceu o cineasta e passou a trabalhar com ele, Giulio explicou: “Eu estava trabalhando por conta quando vi um anúncio de jornal pedindo atores para fazer testes, isso no ano de 1975. Fui fazer e, depois do teste, me chamaram para participar na equipe de produção de ‘A Estranha Hospedaria dos Prazeres’, onde fiz produção e fui ator”.


A partir de então, Giulio dividiu-se entre atuar na produção de longas como “Inferno Carnal” e “Delírios de um Anormal” (onde uma de suas tarefas foi encontrar morcegos vivos para a filmagem de uma cena, conforme narrado no livro “Maldito”!), e fazer pequenas participações nos filmes dirigidos ou produzidos por Mojica. Por exemplo, ele apareceu como um dos maridos infiéis em “A Mulher Que Põe a Pomba no Ar”, fracassada pornochanchada que Mojica realizou em conjunto com Rosângela Maldonado.

“Ser dirigido pelo Mojica era bom, porque ele sempre deixava você muito tranquilo. As minhas cenas sempre foram filmadas de primeira, e uma vez ele até me disse: ‘Continue assim’”, destacou o ator, que infelizmente não lembra se MUNDO – MERCADO DO SEXO chegou a dar algum dinheiro para seus participantes, como Mojica pretendia. Mas o fato de o rapaz ter abandonado o cinema logo depois para arrumar um “trabalho de verdade” não deixa dúvidas sobre o resultado do longa nas bilheterias. “Eu via muitas dificuldades, por isso resolvi parar e fui trabalhar com turismo. Foi um tempo bem vivido [nos filmes de Mojica], porque eu gostava, mas percebi que não era aquilo que eu queria”, explicou o ator, aposentado das telas desde o começo dos anos 1980 – tendo, assim, escapado do triste período posterior da carreira dele, quando o diretor começaria a investir no cinema pornográfico.


Como sempre, um dos poucos que percebeu MUNDO – MERCADO DO SEXO na época do seu lançamento foi o jornalista, crítico e cineasta Jairo Ferreira, que então escrevia para a Folha de São Paulo. Em sua coluna de 17 de dezembro de 1978, Jairo escreveu a primeira análise oficial do filme, antes mesmo de sua estreia, e que acho que vale reproduzir na íntegra pelo interesse histórico, já que não está disponível em nenhum outro lugar que não as páginas da Folha de 40 anos atrás:

“Em sessão especial no Laboratório Revela, tive o prazer de assistir ‘Manchete de Jornal’, subtítulo de ‘Mundo – Mercado do Sexo’, o último filme dirigido e interpretado por José Mojica Marins. Levei um novo choque, claro: o homem é capaz de ampliar o seu universo a cada novo filme e, desta vez, mexeu particularmente comigo e mexerá com jornalistas de uma forma geral, pois o personagem principal do filme é um repórter incumbido de conseguir uma manchete para o dia de Natal, mas que termina ele próprio virando manchete. A epígrafe do filme é de arrepiar: ‘Respeitada seja a visão de quem quer ver, mesmo que essa visão provenha das projeções mentais de um cego’. Pensei logo em Jorge Luis Borges. E embora Mojica Marins certamente não tenha lido ‘O Aleph’, há uma sequência no filme que lembra mesmo esse conto do escritor argentino: a montagem implode, a cuca do repórter torna-se atomizada, assistindo num relance todas as cenas que ele [aqui falta algo no original mesmo] durante 24 horas de um dia limite. Evidentemente, não vou contar o que acontece daqui pra frente. A narrativa do filme é extremamente simples: começa friamente e vai esquentando à medida em que o repórter não encontra a manchete que procura. Tudo o que ele encontra é banal, rotineiro, normal e igual. ‘Não serve pra manchete’. E o repórter pede a Deus terremotos e catástrofes – fazendo cumprir o Apocalipse. A narrativa tem sua culminância nos 20 minutos finais, quando o repórter começa a ser devorado por um sistema autofágico, que o transformará em retumbante manchete de jornal. Mojica Marins já havia me contado essa história há dez anos atrás: é apenas uma das vinte mil que ele tem guardadas em seus arquivos implacáveis, que aliás estão localizados dentro da sua própria cabeça. Uma cabeça que não parou em Zé do Caixão e que continua procurando a originalidade, a informação de primeiro grau, a invenção. Procurar o que ninguém procura, aliás, é uma máxima que não apenas define o repórter desse filme extraordinário, mas o gênio de forma geral.”


Jairo voltou à carga algum tempo depois, na mesma Folha de São Paulo: em 4 de junho de 1979, data da estreia oficial de MUNDO – MERCADO DO SEXO em apenas duas salas de cinema da Capital (Premier e Avenida, no centrão), ele entrevistou Mojica sobre a obra. A matéria divide a capa do caderno Ilustrada (ao lado) com outra sobre “Iracema, A Virgem dos Lábios de Mel”, de Carlos Coimbra, uma produção muito mais sofisticada. O repórter voltou a chamar o cineasta de gênio, dizendo que o novo filme era algo diferente “depois de alguns anos de repetições e desacertos”.

Foi uma das poucas vezes em que Mojica falou livremente sobre o filme, portanto é importante reproduzir também algumas de suas considerações para ajudar em pesquisas futuras, por mais estapafúrdias que estas declarações soem: ‘Manchete de Jornal’ é um filme que fiz num fim de ano, com produção dos meus técnicos habituais, dedicado a eles, uma boa forma de dar um prêmio a eles. Não vou ganhar um tostão com esse filme porque as porcentagens são todas da equipe, principalmente Satã, o homem que tem sido visto como meu guarda-costas, que me acompanha em tudo o que faço. (...) Já me perguntaram porque esse jornalista, que eu mesmo interpreto no filme, tem as unhas compridas. Respondo que ele está fazendo uma promessa: não cortará as unhas enquanto não conseguir a manchete, se conseguir. A manchete que ele busca não é uma notícia comum, sensacionalista, dessas que se lê nos jornais diariamente. Esse jornalista busca algo que os outros jornalistas não buscam, e que é informação que ninguém deu. Ele não é um repórter acomodado e por isso sofre, fica decepcionado com a realidade. O roteiro é fruto de minhas leituras do Apocalipse bíblico, mas interpretado segundo a minha visão. (...) Eu tinha esse roteiro guardado há muitos anos e não encontrava uma oportunidade pra realizar o filme. Muitos cineastas queriam me comprar o roteiro, mas não abri mão. Eu sabia que esse filme poderia significar um renascimento da minha carreira, e as pessoas que viram o filme disseram exatamente isso: que é o melhor filme que já fiz desde os primeiros, principalmente os dois de horror, ‘À Meia-Noite Levarei Sua Alma’ e ‘Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver’. Eu quis mostrar que existo também sem Zé do Caixão, mas o jornalista desse filme é uma projeção desse personagem. Zé do Caixão busca o filho perfeito, que só pode ser feito com a mulher perfeita. O jornalista busca a manchete também perfeita. (...) Sei que ‘Manchete de Jornal’ é um filme que vai mexer com a classe dos jornalistas, mas acho que vai agradar aos bons jornalistas, aos que se dedicam de corpo e alma ao seu trabalho e que fazem de sua profissão não apenas um ganha-pão. Não tive a intenção de fazer nenhuma crítica aos maus jornalistas, inclusive porque estou sempre dizendo que a visão que eu tenho do jornalismo é particular, minha. Eu vejo o jornalismo da forma que está no filme. Se essa forma corresponde à realidade, se não é bem assim, isso não me interessa. Eu acho que sou autêntico porque tenho coragem de filmar o que penso”.


Outro dos raros críticos a ver qualidades em MUNDO – MERCADO DO SEXO, ainda que 30 anos depois de Jairo Ferreira, foi Matheus Trunk, da saudosa revista virtual Zingu. Em sua resenha sobre o filme, ele destaca que é “uma das poucas fitas nacionais que tratam do jornalismo e dos jornalistas”, e argumenta que não se trata de um melodrama, mas sim de uma comédia de humor negro. Obviamente que a recepção a muitos filmes do Mojica é bastante particular: eu mesmo sempre considerei “Finis Hominis” uma comédia de humor negro, mas há quem leve o filme bem a sério!

Matheus destaca, ainda, a maneira como o longa mostra a geografia da São Paulo de fins de anos 1970, com cenas filmadas no bairro Liberdade, na Boca do Lixo e em Santo André. “Poucos cinéfilos percebem, mas são raros os filmes nacionais que mostraram a cidade de São Paulo com tamanho carinho e genialidade como esse”, escreveu o crítico e pesquisador.


Somando-me a este seleto grupo que inclui Jairo Ferreira e Matheus Trunk, considero MUNDO – MERCADO DO SEXO um belo filme. Mojica nunca teve medo de se arriscar e trabalhou com praticamente todos os gêneros; às vezes eu preferia que ele tivesse deixado o terror/thriller um pouquinho de lado (nos poupando de filmes bem ruins como “Inferno Carnal” e “Perversão”) para abraçar outros gêneros e temas, como fez aqui de maneira bem eficiente – seja a proposta original um melodrama, seja uma comédia de humor negro.

Também é curioso ver uma história sobre a imprensa partindo de alguém como José Mojica Marins, um dos artistas brasileiros que mais se beneficiou da mídia em geral (rádio, TV, jornais e revistas), primeiro no país, depois no exterior (principalmente a partir dos anos 1990). O diretor viveu considerável parte da sua carreira criando factóides absurdos para ganhar manchetes e reportagens, portanto é divertido vê-lo encarnar um jornalista em busca de sua própria manchete.

Ao narrar de maneira dramática a situação de Mauro, o diretor ainda foi visionário ao prever a triste situação dos jornalistas no Brasil, especialmente na última década – com demissões em massa nas redações dos grandes jornais, blogueiros sem nenhuma formação tomando o lugar de profissionais respeitados, e repórteres formados tendo que trabalhar como motorista de Uber para pagar as contas...


Certo, o filme tem problemas evidentes e inquestionáveis. Como quase tudo que Mojica fez desde o final dos anos 1960, um fiapo de história é esticado além da conta, e o resultado ficaria muito mais redondinho com no máximo 60 minutos. Isso eliminaria várias cenas desnecessárias, como as intermináveis andanças de Mojica pelas ruas de São Paulo ao som de músicas natalinas executadas praticamente na íntegra (sabe como é, o filme se passa no Natal...).

Por outro lado, a jornada do repórter pel(o inferno d)a noite de São Paulo é sempre imprevisível, pela quantidade de desgraças e crimes ocorrendo no entorno de Mauro, embora não diretamente com ele até a cena final. Num período de apenas 24 horas, vemos atropelamentos, assassinatos, pancadarias, suicídios, crimes sendo cometidos e até um estupro coletivo, como se Mojica estivesse fazendo piada com a abordagem “mundo cão” de jornais sensacionalistas tipo o extinto Notícias Populares – e, de novo sem querer querendo, prevendo esses programas desgracentos da TV brasileira atual, estilo Cidade Alerta e Brasil Urgente, que vivem de explorar sangue e tragédia.


Visto com olhos de hoje, MUNDO – MERCADO DO SEXO também é um recorte brutal do machismo na sociedade de fins dos anos 1970, quando a Ditadura estava chegando aos finalmentes. Ao descobrir que a esposa não é virgem em plena noite de núpcias, o marido recém-casado acha-se no direito de matá-la a golpes de navalha. Para não encarar a pressão de ser mãe solteira depois de ser dispensada pelo bandido interpretado por Satã, a bonitona comete suicídio bebendo veneno. O próprio protagonista, até então representado como um sujeito com cujo drama o espectador se identifica, decide matar a esposa ao descobrir que ela foi violentada por outro homem, ao invés de vingar-se apenas do sujeito diretamente responsável pelo abuso!

E a montagem de Nilcemar Leyart (parceira profissional e amorosa do diretor durante anos) está entre as melhores que ela já fez, na tênue linha entre o brilhantismo e a pura loucura – vide o momento em que uma violenta cena de estupro coletivo comandado por marginais é intercalada o tempo inteiro por reflexivos takes do protagonista curtindo uns shows de striptease na Boca do Lixo, ou a GENIAL cena do ataque histérico de Mauro depois de falhar em conseguir sua manchete.

Tudo considerado, MUNDO – MERCADO DO SEXO é um projeto bastante original que merecia melhor sorte. Muito corajoso inclusive, quando consideramos o rumo que a carreira de José Mojica Marins estava tomando naquele momento. Ao contrário de muitos diretores brasileiros de gênero contemporâneos a ele, ou surgidos depois, o cineasta poderia analisar a própria obra em retrospecto sem precisar repetir o bordão de Mauro aqui: “Tudo igual, tudo iguaaaaaaaaal!!!”.



Veja MUNDO – MERCADO DO SEXO na íntegra! 

6 comentários:

Raphael Silvierri disse...

Que belo texto. E que boa surpresa poder assistir o filme no final!

Jack Cruz disse...

Mogica será eterno e quem discordar vai se arrepender pelo o resto da vida.

Ismael Monteiro disse...

Excelente texto e critica 👏🏻👏🏻👏🏻

Luís Ramone disse...

Ótimo como sempre, Felipe! Abração!

Pascoal disse...

Muito bacana! Mojica eterno!

Anônimo disse...

Guerra, sugiro uma análise de um dos filmes mais absurdos, deprimentes e sinceros já feitos no cinema brasileiro. O "ESTOU COM AIDS" do saudoso David Cardoso.