
Sempre que algum cinéfilo deslumbrado vem me falar sobre a "originalidade" e o "politicamente incorreto" em filmes contemporâneos como o "Machete", do Robert Rodriguez, eu imediatamente retruco: "Cara, na boa, vai ver um blaxploitation e depois a gente conversa". Porque pouquíssimos filmes de hoje conseguem ser tão ofensivos, violentos, sem-noção, politicamente incorretos e DIVERTIDOS quanto as obras desse ciclo produzido para o público negro nos anos 1970.
Quem visita o FILMES PARA DOIDOS com frequência já deve até ter certa intimidade com esse subgênero; afinal, resenhei vários deles e outros tantos estão por vir. A atualização de hoje traz uma pérola esquecida e um dos títulos mais violentos e inusitados do ciclo: SLAUGHTER, dirigido por Jack Starrett no comecinho do ciclo, em 1972.
SLAUGHTER tem tudo aquilo que você espera ver num legítimo blaxploitation. Em outras palavras: um herói negro que passa o filme todo comendo mulheres (brancas) e arrebentando vilões (igualmente brancos), ao som de uma trilha sonora "funky" cuja letra canta os feitos do protagonista como os menestréis da Idade Média.
Nesse caso, o refrão da música-tema composta por Billy Preston anuncia: "Slaughter's big, bad, black and bold / The brother has a lot of soul / Don't you make him mean and cross / 'Cause he'll show you who's the boss".
(E, como todos devem saber, Quentin Tarantino, grande fã do cinema blaxploitation, reutilizou esta a música-tema em "Bastardos Inglórios".)
SLAUGHTER tem também todos aqueles ternos coloridos, calças bocas-de-sino, penteados black power e costeletas gigantescas que caracterizam a década em que foi feito, dando um charme todo especial à película.
O roteiro de Mark Hanna ("Attack of the 50 Foot Woman") e Don Williams (também produtor, ao lado de Samuel Z. Arkoff) não podia ser mais simples e esquemático: o veterano do Vietnã e ex-capitão dos boinas-verdes Slaughter (Jim Brown) começa a investigar por conta própria a morte dos pais num atentado a bomba.
Descobre que o velho estava metido com uma perigosa quadrilha e parte para a vingança. No processo, Slaughter é recrutado por agentes federais liderados por Price (Cameron Mitchell, em participação minúscula), que igualmente querem ver a quadrilha fora de circulação, e por isso se utilizam dos "talentos" do nosso herói.
Ele é enviado para a América do Sul (mas as cenas foram feitas no México) com a missão de desbaratar a gangue liderada pelo italiano Mario Felice (Norman Alfe) e pelo seu braço direito psicopata, Dominic Hoffo (Rip Torn, ainda jovem!).
Lá pelas tantas, Slaughter envolve-se com a amante de Hoffo, uma delícia de loirinha interpretada por Stella Stevens, que passa boa parte do filme sem roupa, transando ou apanhando!
O herói também conta com um parceiro que mais atrapalha do que ajuda, interpretado por Don Gordon. Ele é uma tentativa de alívio cômico, o que às vezes dá uma cara de "Máquina Mortífera" às avessas ao filme, como se Danny Glover fosse o mocinho e Mel Gibson seu sidekick!
É óbvio que ninguém pode esperar um roteiro complexo e profundo de uma produção blaxploitation. Agora, se o seu negócio é ação, tiradas preconceituosas, mulher pelada, sangue a rodo e aquele jeitão estiloso dos anos 70, SLAUGHTER é um filme simplesmente imperdível.
Exagerada do começo ao fim, a trama já começa com uma cena em que Slaughter persegue, de carro, um pequeno avião em decolagem (!!!). Certamente convencido de que tamanho não é documento, o herói atropela, literalmente, o avião, provocando uma explosão! A partir daí, é um festival de socos, tiroteios e frases de efeito.
Posso estar viajando, mas vi em SLAUGHTER uma tentativa de se criar um herói negro à la James Bond. Na época, como se sabe, a série estava em seu sétimo filme ("Os Diamantes São Eternos", de 1971) e era bastante popular.
Pois Jim Brown parece ser uma resposta black a Sean Connery e George Lazenby, e inclusive tem uma cena em que vai jogar num cassino infestado de vilões, com smoking e tudo mais, e aproveita para seduzir a mulherada! Além disso, a abertura do filme tem créditos animados ao estilo 007.
(Ironicamente, a oitava aventura de Bond - "Com 007 Viva e Deixe Morrer", de 1973 - parece prestar homenagem ao ciclo blaxploitation ao colocar uma quadrilha de negros como vilões.)
Por falar nele, é bom lembrar que Jim Brown não era tão desconhecido à época de SLAUGHTER, e vinha de clássicos como "Os Doze Condenados". Mas esse aqui é seu primeiro filme como protagonista (corrijam-me se estiver errado), e já serviu para inscrever o nome do mano num imortal panteão de heróis negros que inclui do Shaft de Richard Roundtree ao Blade de Wesley Snipes.
Brown parece se divertir muito como herói "badass", que não hesita em sentar o ferro nos branquelos (aquele tipo de "atitude" que hoje o Samuel L. Jackson tenta sempre copiar, mas raramente consegue).
O ator passa o filme inteiro com um sorriso cínico e confiante no rosto, disparando diálogos antológicos como aquele em que seu parceiro alerta para a quantidade de capangas que terão que enfrentar, e Slaughter simplesmente mostra seu revólver e comenta: "You got your shit? Well, I got mine. So, c'mon!".
Tem até uma cena absurda em que o herói chega em casa e escuta um barulhinho vindo do banheiro. Sem hesitar, puxa o revólver, descarrega a munição na porta do banheiro e grita: "Se ainda estiver vivo, saia devagar"!!!! Sim, como se não houvesse outra forma mais simples de lidar com a situação... Deve ser muito perigoso tentar organizar uma festa de aniversário surpresa para Slaughter!
O personagem fez tanto sucesso que acabou dando origem a uma continuação no ano seguinte, "Slaughter's Big Rip-Off", desta vez dirigida por Gordon Douglas.
SLAUGHTER também é bastante violento, com sangrentos tiroteios onde os balaços provocam explosões tão exageradas no corpo das vítimas que até parece que elas tomaram tiros de bazuca.
Na conclusão, quando Slaughter e seu parceiro invadem a fortaleza dos vilões para um confronto final, armados com metralhadoras, espingardas e até granadas (!!!), temos uma chacina que faz jus ao título do filme e ao nome do personagem - de certa forma antecipando o cinema de ação barulhento e exagerado dos anos 80.
Pouca gente reconhece o diretor Starrett por nome, até porque ele é mais conhecido como ator do que como cineasta. Em "Rambo - Programado para Matar", por exemplo, ele aparece como aquele policial coroa que provoca o Stallone e depois cai do helicóptero, lembra?). Pois Starrett morreu em 1989, e hoje não recebe o devido reconhecimento por uma trinca de filmes muito legais que dirigiu: este aqui, o também blaxploitation "Cleopatra Jones" (1973) e o horror "Corrida com o Diabo" (1975).
Em SLAUGHTER, o diretor rende-se a exageros típicos do período (como as várias cenas de sexo e a nudez gratuita da estrelinha Stella, que inclusive aparece num longo banho de chuveiro), e tenta inventar moda usando lente "olho-de-peixe" em algumas cenas de ação, artifício que se revela bizarro e deslocado - embora estiloso.
Hoje, a chatíssima patrulha do politicamente correto certamente cairia de pau em cima de SLAUGHTER. Afinal, os vilões (brancos) vivem se referindo ao herói como "black ape" (macaco negro), entre outros termos depreciativos. O próprio Cameron Mitchell solta um "Who the hell you think you are, nigger?", antes de tomar uns catiripapos do herói. Ou seja, nem Cameron Mitchell pode com Slaughter!
Por tudo isso e pelas tiradas divertidíssimas disparadas pelos personagens (inclusive impagáveis rimas do tipo "Your ass is grass!", que Tarantino começaria a copiar em seus filmes três décadas depois), SLAUGHTER é diversão de primeira e, principalmente, cinema grindhouse "de verdade", não uma cópia de quinta categoria sem nenhuma ousadia, como essas tralhas atuais à la "Machete".
Como curiosidade, quando a Globo Vídeo lançou o filme em VHS no Brasil, resolveu traduzir o título literalmente, rebatizando-o "A Chacina", sem perceber que SLAUGHTER também é o nome do personagem principal! A mesma Globo Vídeo lançou a continuação com um nome genérico, "Jogando Sujo", ao invés de linkar os dois filmes - quem sabe com um estúpido "A Chacina 2".
Enfim, coisas do nosso mercado de VHS...
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Slaughter/A Chacina (Slaughter, 1972, EUA)
Direção: Jack Starrett
Elenco: Jim Brown, Stella Stevens, Rip Torn,
Cameron Mitchell, Don Gordon, Marlene Clark,
Norman Alfe e Eddie Lo Russo.
16 comentários:
Nossa, que maravilha. Vou atrás dessa belezoca!
Tá tudo aí: diálogos politicamente incorretos, muito sangue e uma boa putaria incidental...
Tão simples e o povo de hoje não aprende. ¬¬
Puxando pela memória, Jim Brown já havia sido protagonista do faroeste "Cem Rifles" (bom, pelo menos, dos filmes que vi com ele), com Burt Reynolds e Raquel Welch gostosíssima! E verificando no IMDB, este aqui é de 69, dois anos depois de "Os Doze Condenados".
Mas no "Cem Rifles" ele é sidekick do Burt Reynolds. O que eu quis dizer como protagonista é estrelar o filme sozinho, e nesse caso acho que o "Slaughter" é mesmo o primeiro.
Esse aí deve ser mesmo um pusta filme! Preciso assistir o quanto antes.
A propósito, alguém já assistiu a um filme, desse mesmo gênero, dirigido, escrito e protagonizado pelo pai do ator Mario Van Peebles?
Esse não é mesmo o primeiro papel de protagonista, um ano antes ele estrelou El Condor lado a lado de Lee Van Cleef.
Bem, fica a correção então: antes de ser "badass" em SLAUGHTER, o Jim Brown havia tido dois papéis como protagonista ou quase-protagonista (sidekick) em "Cem Rifles" e "El Condor" (gracias LOCO e ARTHUR).
FRANCINE, o filme do Melvin Van Peebles é "Sweet Sweetback's Baadasssss Song", que tem uma trilha sonora FANTÁSTICA!!!
Felipe,
Um filme que merece uma crítica no filme para doidos é Coffy, com Pam Grier.
Já está na lista. Quando escrevi sobre "Foxy Brown", ia publica a resenha do "Coffy" em seguida, mas fiquei com preguiça!
;-)
Slaughter é arte pura.
E já que citaram aquele filme do Melvin van Peebles, vale esclarecer que há alguns anos (acho que 2005) o Mario Van Peebles lançou um filme que conta a história do árduo trabalho que o seu pai teve para lançar o "Sweet sweet badass sei-la-o-quê".
Aliás, esse "filme-homenagem" do Mario Van Peebles possui todas as características que os "cult-cinéfilos" tanto idolatram, tais como metalinguagem, intertextualidade, narrativa documental e etc...
Porém, como esse filme foi feito pelo Mario Van Peebles e não pelo James Cameron ou Pedro Almodóvar, os "críticos detentores do bom gosto" o ignoraram completamente.
Outra coisa: o Mario Van Peebles, quando ainda era um garotinho imberbe e serelepe, atuou em algumas cenas nesse filme feito pelo seu pai, que foi um dos que inaugurou a onda de "blackspoitation"
que coincidencia, eu acabei de ver Race With The Devil...blaxploitation não é meu gênero "exploitation" preferido, mas interessante saber que o diretor foi o mesmo...
Slaughter´s Big Rip Off tem a trilha-sonora de James brown, fantástico.
Vou ver se acho esse ai,achei bem interessante... pra não falar doido rsrsrs
Felipe, já viu Black Dynamite (ou algo do tipo)?
Felipe: Ao ver esta resenha, só me faz voltar ao tempo em que era tão bom ir ao cinema poeira ver filmes como este, EXEMPLAR CARIMBADO DA BLAXPLOTATION, viva seus iconen, com Fred Williamson. Jim Kely, Pam Grier, Gloria Hendry(que ja foi bond girl), Jim Browm, Richard Rountree, entre tantos outros...Um Abraço Laurindo Junior.
Não fazem mais filmes como antigamente .
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