
Se tivesse Clint Eastwood no papel principal, THE BIG RACKET (inédito no Brasil; traduzido literalmente, o título ficaria "O Grande Golpe" ou "O Grande Crime") poderia muito bem passar por "prequel" do clássico "Perseguidor Implacável", dirigido por Don Siegel em 1971, e que trazia Eastwood no papel do violento policial Dirty Harry. Enquanto o filme de Siegel já começava com Harry mostrando métodos pouco ortodoxos de combate ao crime e uma total falta de confiança na justiça convencional, THE BIG RACKET explica como um policial correto, determinado e honesto acaba se transformando numa versão macarrônica de Dirty Harry ao encontrar bandidos que usam as brechas da justiça para escaparem do merecido castigo.
Dirigido por Enzo G. Castellari em 1976, na esteira do sucesso de policiais violentos como "Operação França", o próprio "Perseguidor Implacável" e "Desejo de Matar", este ainda obscuro filme de ação italiano mostra porque não é nenhum pecado dizer que Castellari, um dos meus diretores preferidos, é a versão italiana do norte-americano Sam Peckinpah: com apurada técnica e muito estilo, Enzo dirige as (muitas) cenas de ação da obra como se estivesse coreografando um número de ballet clássico, usando e abusando de violentos e estilizados tiroteios, toneladas de slow-motion (a popular câmera lenta) e criativos movimentos e trucagens de câmera (como aquela que acompanha o personagem principal dentro de um carro capotando).
O policial correto, determinado e honesto da vez é o inspetor Nico Palmieri (interpretado pelo sempre simpático Fabio Testi). Junto com o parceiro e amigão Salvatore (Sal Borgese), Palmieri está caçando obsessivamente uma gangue de arruaceiros que usa violência e vandalismo para convencer comerciantes de Roma a pagarem por "proteção", como faziam os mafiosos dos anos 20-30. A seqüência de créditos iniciais inclusive mostra diferentes ações dos bandidos, destruindo mercadorias e arrebentando vitrines, sempre em câmera lenta.
Certo dia, enquanto segue a quadrilha de carro, o inspetor descobre que o problema é maior do que aparenta: os arruaceiros na verdade integram um grande esquema de pilantragem (o "racket" do título original), que pretende ampliar seus "serviços" para o país inteiro, unindo todas as famílias mafiosas italianas sob o comando de um misterioso gângster inglês (Joshua Sinclair). O bandidão pretende centralizar todas as atividades ilegais de Roma sob seu comando, mais ou menos como o Rei do Crime dos quadrinhos da Marvel.
Quando Palmieri é pego no flagra bisbilhotando, os implacáveis integrantes da quadrilha nem se importam com o fato de ele ser policial: simplesmente rolam seu carro até que despenque de uma colina (o próprio Testi protagoniza a arriscada cena, filmada com a câmera dentro do carro enquanto o veículo rola ladeira abaixo, fazendo com que o ator receba uma chuva de vidro moído!).
Nosso herói passa uns dias se recuperando no hospital, e quando sai intensifica sua ação sobre a quadrilha. Mas suas tentativas de botar os bandidos atrás das grades sempre esbarram na Justiça, já que os marginais são espertos o suficiente para usar as brechas das leis ao seu favor - chega a ser revoltante o fato de um batalhão de advogados sempre conseguir tirar os sujeitos da cadeia, mais ou menos como acontece até hoje no Brasil. Pior: quando Luigi (Renzo Palmer), um dos comerciantes agredidos por membros do "racket", finalmente aceita testemunhar contra a quadrilha, os bandidos seqüestram e estupram sua filha de 15 anos, que morre após a agressão.
E Palmieri vai agüentando tudo no osso, tentando fazer a coisa da forma certa, dentro da lei. Ele até coloca um informante no mundo do crime, um velho batedor de carteiras chamado Pepe (o norte-americano Vincent Gardenia), para tentar prever os passos do "racket". Mas fica sempre de mãos amarradas para agir. Até que Salvatore é friamente executado pelos bandidos com tiros de metralhadora.
Afastado da delegacia pelos seus superiores, já que estava "fechando um olho" para os roubos do seu informante Pepe, Palmieri resolve que vai acabar com a quadrilha à sua maneira. E, como se trata de um filme de Castellari, já sabemos qual é esta "maneira": sangrentos tiroteios em câmera lenta. Não é por nada que a frase do cartaz de cinema é: "Alguém vai ter que pagar!"...
O diferencial de THE BIG RACKET em comparação a outros filmes com policiais durões da época de ouro dos poliziotteschi é que Nico Palmieri não aparece como o exército de um homem só, tão bem representado em outras produções por atores como Franco Nero e Maurizio Merli. Assim, para eliminar o "racket", que é formado por dezenas de marginais, o herói resolve recrutar vítimas da quadrilha que também perderam algo valioso por causa dos bandidos, como sua ex-testemunha Luigi, o bandido Pepe e Giovanni (Orso Maria Gerrini), um atirador olímpico que teve a esposa estuprada e queimada viva pelos criminosos, entre outros, numa espécie de mistura de "Os Doze Condenados" com "Desejo de Matar". Juntos e com armamento pesado, eles partem para um último confronto com o "racket".
Em filmes de vingança, como este, a hora de dar o troco sempre é doce, para os personagens e para o espectador. Mas poucas vezes eu torci tanto pela morte dos antagonistas quanto neste filme. Os marginais do roteiro de Castellari, Massimo De Rita e Arduino Maiuri são um rascunho dos demônios do inferno. Além do cinismo com que cobram a proteção ("É como se você estivesse pagando taxas", minimiza um deles, ao ameaçar um comerciante), os bandidos são tão frios e sádicos que chega a dar nojo, como na cena em que um dos capangas mija sobre o corpo nu de uma mulher que acabou de estuprar, diante do olhar do marido atacado. Mais adiante, o chefão do "racket" orienta seus comandados que, se alguém não quiser pagar a proteção, basta matar um filho ou uma filha e ninguém mais irá se rebelar, isso com a maior frieza e naturalidade do mundo!
E como o roteiro deixa seus pobres heróis (incluindo Palmieri) com as mãos amarradas o tempo todo, chega a ser um alívio quando eles finalmente resolvem partir para o contra-ataque, com direito a quase pornográficas cenas em slow-motion dos bandidos sendo alvejados com tiros de grosso calibre (Peckinpah ficaria orgulhoso de ver o estilo que ele ajudou a popularizar atingindo a perfeição). E cada bandido que cai crivado de chumbo é um sorriso de satisfação a mais para o espectador!
Além do mérito de criar uma narrativa mais realista e pé no chão do que outros poliziotteschi do período, sem apelar para heroísmos exagerados dos protagonistas, THE BIG RACKET também tem o mérito de não negar fogo no quesito ação, com inúmeros tiroteios e pancadarias na narrativa. O único ponto fraco, pelo menos na minha opinião, é a desajeitada tentativa de incluir algumas cenas de artes marciais na narrativa (Nico e Salvatore ensaiam uns golpes contra os bandidos em duas cenas), talvez visando o público que curtia as produções de ação made in Hong-Kong. Mas a coreografia não convence (os atores ficam "duros" dando os golpes nitidamente ensaiados), e Fabio Testi parece um peixe fora d’água lutando kung-fu.
Outro ponto fraco é uma desnecessária revelação final sobre um segundo chefão do "racket", e que estaria envolvido diretamente com a polícia, mas que não faz muita diferença àquela altura do campeonato.
Fora isso, THE BIG RACKET é recomendadíssimo e um dos grandes filmes dos gêneros "vingança" e "men on a mission" já produzidos, de deixar envergonhados os responsáveis por recentes aventuras absurdas na mesma linha, como o exagerado e inverossímil "Sentença de Morte", com Kevin Bacon, que meio-mundo babou ovo. E como uma imagem vale mais que mil palavras, vou ficando por aqui, pois estes vídeos do YouTube que postei já são uma referência bem melhor que qualquer resenha minha.
Para quem não conhece o cinema de Castellari e quer um referencial, aqui está um dos seus filmes mais perfeitos e bem produzidos, antes que ele se entregasse à loucura das aventuras absurdas de baixo orçamento, tipo "Fuga do Bronx" e "Guerreiros do Futuro". Praticamente um western moderno, que Sam Peckinpah aplaudiria de pé.
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Il Grande Racket (1976, Itália)
Direção: Enzo G. Castellari
Elenco: Fabio Testi, Vincent Gardenia, Renzo
Palmer, Orso Maria Guerrini, Romano Puppo,
Joshua Sinclair e Sal Borgese.
4 comentários:
Mais um da série "tenho mais não vi", como já disse várias vezes por aqui. Tenho acumulado muitos filmes pra ver. Mas vou assistindo devagar, BRONX WARRIORS eu vi neste ultimo fim de semana. Filmaço!
MUITO GRANDE SEU TEXTO!!!!
Sou carrancudo ate nos comentarios....
HAHAHAHAHA!
Não ter poder de síntese é uma maldição... :-/
Infelizmente os vídeos da resenha estão indisponíveis .
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