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sábado, 13 de dezembro de 2008

99 AND 44/100% DEAD (1974)


99 AND 44/100% DEAD é uma daquelas obras anos à frente do seu tempo. Quando foi lançado, em 1974, o filme foi massacrado pela crítica e ignorado pelo público, tornando-se um fiasco de bilheteria e uma mancha na carreira promissora do diretor John Frankenheimer, que só se recuperou do desastre ao concordar em dirigir a seqüência "Operação França 2", no ano seguinte. E não é difícil de entender o espanto de público e crítica: escrito por Robert Dillon (roteirista do excêntrico "A Marca da Brutalidade", com Lee Marvin), é um filme policial narrado em ritmo de paródia, às vezes sério e sombrio, às vezes cômico e absurdo como uma boa história em quadrinhos.

Seus protagonistas são gângsters durões, porém simpáticos, que pensam que atirar desafetos no rio com blocos de concreto nos pés é um trabalho como qualquer outro, e que adoram falar bobagem entre um tiroteio e outro. Enfim, é a idéia básica de "Pulp Fiction", só que 20 anos antes. Mais ou menos como no premiado filme de Tarantino, aqui também temos uma visão cartunesca, caricatural, sobre o mundo do crime. Visão esta que antecede em pelo menos duas décadas o trabalho de Tarantino, Guy Ritchie, Joe Carnahan e outros cineastas contemporâneos que fazem a mesma coisa. Em outras palavras, é um filme incompreendido, que certamente faria o maior sucesso se fosse lançado hoje.


Frankenheimer não é um dos meus diretores prediletos (embora tenha assinado alguns filmaços), e eu confesso que não conheço boa parte da sua filmografia. No caso específico deste filme, nunca encontrei referências que me deixassem curioso para vê-lo, até ler um breve comentário no blog Viver e Morrer no Cinema, do Leandro Caraça, falando justamente sobre a dificuldade para obter uma cópia. Aí resolvi ir atrás, e quem me conseguiu a cópia VHS-Ripada foi o Zebu, do finado blog Boizeblog, pois até na rede é difícil de encontrar o filme para baixar!!!

Enfim, agora, depois de finalmente conferir o polêmico trabalho de Frankenheimer, fico imaginando como os espectadores lá dos anos 70, acostumados a filmes policiais mais sérios e violentos, encararam 99 AND 44/100% DEAD...

A relação com os quadrinhos começa já pelo pôster de cinema, que traz uma artezinha estilizada e a frase de duplo sentido "Todos estão morrendo para conhecer Harry Crown", e segue pelos créditos de abertura, mostrados através de animações com bonequinhos coloridos (cuja arte lembra o trabalho do brasileiro Ziraldo). Em seguida, o espectador é surpreendido com uma introdução maluca que mostra uma dupla de gângsters jogando um inimigo no rio com os pés presos a um bloco de cimento. O homem afunda feito chumbo e, ao atingir o fundo do rio, a câmera mostra dezenas de outros cadáveres na mesma situação, alguns já transformados em esqueletos, ao som de uma musiquinha em tom cômico composta por Henry Mancini, que transforma aquela visão mórbida em piada!


O filme não demora a situar o espectador no universo fantasioso da sua narrativa: há uma grande cidade (não-identificada) sendo disputada pelos chefões de duas quadrilhas rivais, a do "Uncle" Frank Kelly (Edmond O'Brien) e a do jovem e arrogante Big Eddie (Bradford Dillman). Um anda invadindo os negócios do outro, e o conflito entre ambos está se transformando num banho de sangue, com alta contagem de cadáveres. Até que Kelly resolve contratar os serviços de um famoso pistoleiro, Harry Crown (interpretado por Richard Harris, com um corte de cabelo que lembra Michael Caine em "Carter - O Vingador"), para botar ordem na casa.

Crown chega à cidade, reencontra um velho amor, Buffy (Ann Turkel), e logo descobre que a quadrilha de Big Eddie também contratou reforços; neste caso, o matador Marvin "Claw" Zuckerman (Chuck Connors!!!), que, como o nome já diz, tem um gancho numa das mãos - que foi decepada pelo próprio Crown em outra oportunidade, tornando o duelo entre os dois pistoleiros bastante, digamos, "pessoal".

Feitas as apresentações dos personagens, e de quem joga para o lado de quem, pode esquecer qualquer tentativa de acompanhar um roteiro plausível: 99 AND 44/100% DEAD transforma-se num longo conflito entre os gângsters, sem muita história para contar, até chegar ao barulhento tiroteio final. É quase como uma versão adulta de um desenho tipo o do Tom & Jerry - o que fica ainda mais evidente na cena em que um capanga de Big Eddie surge com uma ridícula banana de dinamite fumegante muito parecida com aquelas produzidas pelas "Indústria Acme".


O que se percebe é que, nesta mistura debochada de gêneros e estilos, todos, do diretor aos atores, parecem estar se divertindo horrores. Nunca me esqueço de que tinha um amigo dono de videolocadora que não sabia em qual prateleira guardar a fita do "Pulp Fiction": comédia, policial, drama ou aventura? Ele enfrentaria o mesmo problema com 99 AND 44/100% DEAD: não tem como chegar a um consenso sobre o gênero do filme, que às vezes é comédia (regada a muito humor negro, claro), às vezes é policial sério (com perseguições de carro, tiroteios, emboscadas), e às vezes, ainda, é simplesmente uma bobagem sem pé nem cabeça.

Claro, o mais importante é não levar o filme a sério, como fizeram os críticos e espectadores lá nos anos 70. Afinal, esta é a história de um pistoleiro chamado Harry Crown que usa uns óculos ridículos que lhe dão um ar constrangedor de CDF, mas, sempre que os tira do rosto, é porque vai fuzilar ou quebrar a cara de alguém - e passa de bobão a durão em questão de segundos, graças à ótima interpretação do falecido Richard Harris.

O mesmo Harry Crown anda sempre com duas pistolas automáticas que têm desenhos de flores gravados nas coronhas (!!!), namora uma garota que de dia é professora, e de noite é stripper (!!!), e adota como ajudante um garoto inexperiente que é capanga de "Uncle" Frank. E se o "mocinho" já é fora do convencional, o que dizer do "vilão de filme do 007" personificado por Chuck Connors, que tem diferentes próteses para encaixar na mão que lhe falta, de tesouras e ganchos a saca-rolhas (!!!) e chicotes?


Novamente, fico imaginando os espectadores lá dos anos 70 vendo esse filme esquisitíssimo, principalmente uma cena que se inscreve nos anais do absurdo: Crown foge em disparada pela rua sendo alvejado pelos disparos de um assassino com um rifle de mira telescópica, posicionado no topo de um prédio; finalmente, o herói busca abrigo atrás do carro blindado do seu contratante, Kelly, e, enquanto as balas do "sniper" ricocheteiam na blindagem do veículo, os dois começam a papear normalmente como se nada estivesse acontecendo!

Por essas e por outras, 99 AND 44/100% DEAD definitivamente é um filme que se passa no universo dos quadrinhos ou desenhos animados, e não no mundo real. É um universo absurdo em que dezenas de cadáveres são afundados por gângsters no rio e nunca localizados pela polícia (que, aliás, nunca dá as caras em momento algum da trama); em que há crocodilos nos esgotos (!!!), e ninguém parece estranhar o fato; enfim, um mundo maluco em que todos os gângsters estão o tempo inteiro vestidos com ternos pretos e chapéus, sempre padronizados, como se fossem inimigos de algum antigo jogo de videogame!

Há um charme em toda esta balbúrdia, mas claro que não é para todos os gostos. Trata-se de um autêntico FILME PARA DOIDOS, com um tom estranho de humor negro e um olhar caricatural do mundo dos gângsters, o que, aliás, levou muitos críticos da época a condenarem o diretor Frankenheimer, taxando-o de "sádico" por brincadeiras como a dos cadáveres no fundo do rio - imagine agora o que esse mesmo pessoal diria após assistir "Pulp Fiction" ou "Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes"!!! E isso que o filme de Frankenheimer nem é exatamente violento: apesar dos diversos tiroteios, não se vê uma única gota de sangue.


É uma pena que o fracasso de público e crítica tenha condenado 99 AND 44/100% DEAD a desaparecer na obscuridade. Até hoje, o filme permanece inédito no Brasil, e nos EUA só foi lançado em VHS (nada de uma segunda chance em DVD por enquanto). Continua, também, como uma mancha no currículo de Frankenheimer, sendo dificilmente citado em biografias e perfis do diretor (que, ironicamente, não deixam de fora os filmes verdadeiramente ruins assinados pelo cineasta, como "A Semente do Diabo" e "Amazônia em Chamas").

Talvez ainda demore um pouco, mas tenho certeza que 99 AND 44/100% DEAD um dia vai receber sua merecida segunda chance como o filme divertido que é, especialmente agora que público e crítica já estão mais acostumados com extravagências como esta. E é óbvio que os "novatos" Tarantino, Ritchie e Carnahan teriam muito a aprender com esta pérola esquecida - embora às vezes já pareçam estar copiando-a descaradamente!

PS: Não tente entender o título, que é tão inexplicável quanto o próprio filme. Trata-se de uma brincadeira intraduzível com uma marca de sabonete da época, que anunciava "99 - 44/100% Puro".

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99 and 44/100% Dead (1974, EUA)
Direção: John Frankenheimer
Elenco: Richard Harris, Chuck Connors, Ann
Turkel, Edmond O'Brien, Bradford Dillman, David
Hall, Constance Ford e Karl Lukas.

19 comentários:

Ronald Perrone disse...

Putz, de novo!? Preciso dizer que tenho o filme aqui e não vi? hahah

Realmente foi bem difícil achá-lo.
E o texto ficou excelente!

Anônimo disse...

Aposto que o Taranta deve ter visto esse filme várias vezes.

Você já pensou em escrever sobre o clássico "O Desafio das Águias"? Tá legal que não é bem um "Filme pra doidos", mas no Multiply, quuem sabe...

Felipe M. Guerra disse...

RONALD - Pára o que você está fazendo e assiste pelo menos este e o The Big Racket. Mas entendo o seu drama: estou com uns 300 filmes baixados e gravados em DVD para assistir...

MATHEUS - Por enquanto estou curtindo o fim de ano com filmes mais "light" e menos seriedade. Mas em 2009 veremos.

Anônimo disse...

Fala, Felipe! Coloquei um link para o seu blog lá no B Movie Blues.

Quem sabe você faz um "Especial David Warbeck"??

Um abraço!

Ronald Perrone disse...

Beleza. Vou dar prioridade a esses dois.

Quanto ao JCVD, eu respondi lá no meu blog. Espero que encontre.

Anônimo disse...

Esse sensacional filme foi exibido em 2000 no Telecine Action como "Até o Último Disparo". Na mesma época também assisti nesse canal, pela primeira vez, "Síndrome Mortal" do Argento e "De Volta ao Vale das Bonecas". Volta, Telecine, volta !

Ronald Perrone disse...

Lembro dessa época. Assisti DE VOLTA AO VALE DAS BONECAS pela primeira vez no Telecine também, e muitas outras coisas boas...

Felipe M. Guerra disse...

O Telecine realmente já teve dias melhores: nesta mesma época que vocês citaram, passava "Up in Smoke" e "Humanoids from the Deep" toda hora!

Anônimo disse...

Dê uma chance ao Frankenheimer. Ele tem uma série de filmes hoje obscuros mas que merecem ser redescobertos : I WALK THE LINE, THE HORSEMAN, THE CHALLENGE, DOMINGO NEGRO, A QUARTA GUERRA ... Assim como a versão completa de JOGO DURO ou últimos telefilmes que dirigiu em vida. E eu gosto de SEMENTE DO DIABO e A ILHA DO DR. MOREAU. Só porque não são dirigidos por Sergio Martino ou Ruggero Deodato quer dizer que não posso me divertir com eles ? :)

Felipe M. Guerra disse...

Hahahaha. Na verdade eu gosto dos dois filmes, Moreau e Semente do Diabo, mas vamos admitir que ambos são bem ruins, só valem mesmo como diversão trash. "A Semente do Diabo" principalmente, com aquela pose de seriedade, de "filme-denúncia", e descamba para aquele ursão assassino mal-feito... Dos filmes do Frankenheimer que eu vi, os únicos que achei intragáveis foram "Amazônia em Chamas" e o "Jogo Duro", esse é difícil de engolir!

Anônimo disse...

Afinal,o que Tarantino quis ensinar em PULP FICTION?Que a há tanta violencia neste mundo que agora nós já nos acostumamos a ela e ela faz parte da rotina do dia-a-dia?

Anônimo disse...

Ensinou como se faz cinema pós-moderno de qualidade.

Anônimo disse...

Ah,isso que voce disse é verdade...

Anônimo disse...

Se ele quis mostrar a banalidade da violência eu não sei, mas até hoje acho aquele tiro acidental dentro do carro um lance nada a ver.

E olha que eu adoro o filme !

Felipe M. Guerra disse...

Leandro, você já leu o roteiro original do Tarantino? O tiro acidental pegava no pescoço do rapaz, e ele ficava um tempão agonizando enquanto Jules e Vincent decidiam o que fazer. Só depois de muito bla-bla-bla e xingamentos é que o Vincent disparava o "tiro de misericórdia" na cabeça do sujeito. Acho que a cena inteira nem chegou a ser gravada, pois não está nas cenas excluídas do DVD.

Anônimo disse...

Não sabia dessa. Acho que iria gostar mais desse jeito. ;)

Anônimo disse...

Será que Tarantino realmente precisa aprender com Frankenheimer? Na minha opinião ele, como o nerd que é, deve ter não só essa fita guardadinha na casa dele como também a filmografia inteira do diretor de "Ronin". Eu sempre achei que nos filmes dele tinha uma homenagem a esse cineasta. Tarantino tem várias influências e colcoa algumas delas de maneira discreta, coisa de fã nerd mesmo. Pelo menos em "Jackie Brown" há uma parte que lembra bem "Operação França 2" e em "Planeta Terror" (que é do Rodriguez, mas que ele estava co-produzindo) os bichões lembram um pouco o monstrão de "Semente do Diabo". Ou é isso ou estou ficando maluco! rsrsrs
Abraços.

sitedecinema disse...

Um dos filmes q o Frankenheimer dirigiu depois do exílio dele na França (onde virou chef), que eu mais gosto é 52 PICKUP(acho q o título em vhs no Brasil era A HORA DA BRUTALIDADE), produzido pelos primos israelenses Golan-Globus (e com vários atores pornÔs em pontas).
GRANDE longa baseado em obra do Elmore leonard (e com roteiro coescrito por ele)

Felipe M. Guerra disse...

Também gosto muito desse filme, que em VHS foi lançado como NENHUM PASSO EM FALSO - A HORA DA BRUTALIDADE. Em breve publicarei uma resenha sobre ele, mas quero antes ler o livro do Elmore Leonard (Os Chantagistas) para poder opinar sobre a fidelidade da adaptação.