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sexta-feira, 27 de março de 2020

FASE 7 (2010)


Tendo nascido em 1979, já me considero um sobrevivente por ter escapado de algumas grandes epidemias ou pandemias, como o surto de cólera no Brasil no começo dos anos 1990, o ebola em 1993, a gripe aviária em 2005, a gripe suína (H1N1) em 2009, e a proliferação de chicungunha e zika pelo território brasileiro (em 2014 e 2015, respectivamente). Sem contar coisas não menos graves que seguem por aí de forma mais ou menos controlada, como dengue, sarampo, tuberculose, Aids, etc.

Mas, confesso, nunca vi nada sequer parecido com a COVID-19, a doença provocada pelo coronavírus que, enquanto escrevo estas linhas (março/2020), deixou o mundo inteiro em quarentena forçada – inclusive eu, pela primeira vez na vida. A facilidade de proliferação e a rapidez no contágio a tornam muito mais perigosa do que muitas das citadas no parágrafo anterior, especialmente porque o vírus afeta diretamente a nossa noção de sociedade (as atitudes de alguns poucos podem comprometer a saúde de outros muitos).

Ou seja, a única maneira de realmente estar seguro, como nos filmes de zumbis, é ficar trancado em casa e evitar qualquer contato com outras pessoas, sejam desconhecidos ou amigos próximos. E se vocês não acham isso único e assustador, não sei o que poderia lhes dar medo...


Ao redor do mundo, grandes cidades se tornaram grandes cidades-fantasma; vazias, com comércio fechado, transporte público parado e pessoas trancadas em suas casas tentando conter um inimigo invisível. Há prateleiras vazias nos supermercados e casos registrados de pessoas brigando, quase se socando, por um pacote de papel higiênico. E todos vivem numa sensação constante de medo ou paranóia: até alguns dias atrás, um simples espirro podia fazer com que você fosse expulso do ônibus, hostilizado no interior de um avião ou promover uma fuga em massa de pessoas próximas.

Nesse ponto ainda não dá nem para imaginar o que o futuro sob o pânico da COVID-19 nos reserva, pelo menos enquanto ainda não existir uma vacina ou cura eficiente para o vírus. Se formos nos basear pelo cinema, entretanto, é difícil manter o otimismo. Filmes sobre epidemias/pandemias costumam dar versões bastante tenebrosas do caos que se desencadeia quando um vírus mortal foge do controle, e as pessoas descabam para a selvageria no intuito de salvar a própria pele.


Da obra-prima “O Exército do Extermínio” (1973), de George A. Romero, ao banho de sangue de “Cabana do Inferno” (2002), de Eli Roth, passando por bombas fantasiosas como “Epidemia” (1995), de Wolfgang Petersen (onde uma cura milagrosa é descoberta em tempo recorde apenas para salvar a vida da namorada do protagonista), não faltam variações sobre um futuro negro para a humanidade frente ao perigo epidemiológico. Em meio a todos estes, poucos filmes foram tão visionários em prever o pânico provocado pelo coronavírus como um pequeno e praticamente desconhecido filme argentino chamado FASE 7, de 2010, dirigido por Nicolás Goldbart.

Eu já tinha escrito algumas poucas linhas sobre a obra após ver sua estreia no Fantaspoa – Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, em 2012. Na época, não só o considerei um filmaço como um dos melhores que vi naquela edição do festival.


Obviamente, pela data em que foi feito, FASE 7 foi concebido na esteira do surto de outro vírus, o da gripe H1N1; porém, revendo-o hoje, percebe-se que ele continua dialogando bastante bem com novas ameaças epidêmicas, tipo este nosso coronavírus. Até porque mudam sa ameaças biológicas, mas nós, seres humanos, continuamos exatamente os mesmos; nosso lado mais terrível enquanto “sociedade” aflora justamente em tais situações-limite.

A trama tem certa semelhança com “REC”, aquele brilhante terror found footage espanhol de Jaume Balagueró e Paco Plaza lançado em 2007: um edifício é colocado em quarentena e as pessoas no seu interior são obrigadas a se defender como podem frente ao medo de uma contaminação mortal.

Mas a semelhança fica por aí: enquanto “REC” logo apresenta infectados que agem como zumbis raivosos, FASE 7 prefere se concentrar não nos efeitos colaterais da doença ou nos infectados, e sim na maneira como a simples possibilidade de pegar um vírus mortal espalha o pânico e a paranóia no interior de um espaço confinado.


O filme começa com imagens das prateleiras cheias de um supermercado, pouco antes do caos começar. A localização nunca é identificada, mas provavelmente é Buenos Aires, a capital da Argentina.

Martín, sempre chamado pelo apelido Coco (Daniel Hendler), e a esposa Pipi (Jazmín Stuart), grávida de sete meses, estão fazendo o rancho e discutindo amenidades na fila do caixa quando repentinamente o mercado é invadido por dezenas de pessoas em pânico, muitas com máscaras cirúrgicas, todas elas prestes a esvaziar aquelas prateleiras outrora cheias.


O espectador já percebe que algo assustador está acontecendo, mas Coco e Pipi continuam desligados do mundo ao seu redor e perdidos em discussões completamente desnecessárias – sobre o fato de ele ser preguiçoso por não ter testado uma lâmpada antes de comprar, ou desleixado por usar sempre a mesma camiseta velha que já deveria ter sido jogada no lixo. Sem que prestem atenção no mundo ao seu redor, enquanto eles levam as compras para o carro mais pessoas desesperadas e mascaradas passam correndo por ambos, bem como inúmeras ambulâncias com a sirene ligada.


No caminho de volta para casa, Coco sugere que eles poderiam largar a vida na cidade grande para viver no campo. Pipi ri, alegando que ele é um rapaz da cidade e jamais conseguiria viver sem seu computador. Enquanto isso, novamente sem que qualquer um dos dois perceba, um carro abandonado sobre o meio-fio revela que o mundo civilizado está rapidamente indo para o vinagre.

É somente chegando em casa, e recebendo um telefonema da mãe de Coco, que eles descobrem sobre a seriedade da situação. Ao ligar a TV, nosso “herói” é informado que uma grave epidemia se alastra pelo mundo: o vírus já atingiu sete países e acaba de chegar à Argentina, por isso o caos testemunhado pouco antes no supermercado, com as pessoas amedrontadas correndo para estocar água e comida para uma possível quarentena. Numa escala de seis etapas para pandemias, a Organização Mundial da Saúde já considera o caso uma “fase 6”, a mais grave de todas.


Poucas horas depois, interrompendo o jantar de Coco e Pipi, um representante de cada apartamento é chamado a descer para o lobby do edifício. Lá chegando, os residentes encontram um cordão de isolamento e descobrem que estão impedidos de sair do local.

Médicos e soldados vestindo roupa anti-contaminação explicam que um casal de idosos que vivia no local foi internado com sintomas muito semelhantes ao do novo vírus, e portanto o prédio inteiro terá que ser colocado numa quarentena forçada para certificar-se que mais ninguém está infectado e evitar que a contaminação se alastre para o mundo exterior.

Em teoria, os restantes serão monitorados por uma equipe médica e poderão tirar dúvidas por um número especial de telefone. “Fiquem em seus apartamentos e mantenham o contato com os vizinhos ao mínimo”, sugere o porta-voz do lado de fora, antes de lacrar a entrada do edifício com plástico.


Imaginando que será algo temporário, os residentes não chegam a ficar muito assustados – inclusive sobem de volta para seus apartamentos dividindo o mesmo elevador, sem perceber que podem estar passando ou pegando o tal vírus. Coco e Pipi aproveitam os primeiros dias da quarentena para ler quadrinhos, ver filmes, divertir-se com jogos de tabuleiro. Ele tenta fazer um racionamento dos víveres, já que o casal não chegou a fazer grandes estoques para sobreviver a uma quarentena.

Pipi inicialmente ridiculariza a preocupação do marido, só que logo eles estão reaproveitando saquinhos de chá e ficando estressados com o confinamento. O filme não deixa claro quantos dias passaram desde o início do período de contenção, mas, após uma rápida elipse, Coco já ostenta uma barba enorme, que depois transforma num hilário bigodão apenas para provocar a esposa.


E é claro que as coisas não funcionam tão bem quanto todo mundo espera. Os médicos que deveriam monitorar os moradores do edifício somem ainda nos primeiros dias. Ninguém nunca atende no tal número de telefone de emergência, nem há como conseguir ligação para números externos. A internet não funciona e a TV sai do ar, passando a reproduzir em looping uma gravação com recomendações para evitar o contágio (ironicamente, as mesmas divulgadas agora em relação ao coronavírus: evitar espaços fechados, beijos e apertos de mão; evitar contato com quem quer que manifeste sintomas).


FASE 7 se transforma numa brilhante mistura de thriller paranóico com comédia de humor negro no momento em que surge a suspeita de que mais alguém no edifício em quarentena possa estar manifestando sintomas da doença. Trata-se de Zanutto, um velhote antissocial interpretado pelo veterano Federico Luppi (de “A Espinha do Diabo” e “O Labirinto do Fauno”, que aqui está visualmente parecido com o diretor italiano Ruggero Deodato!).

Dois outros moradores, Guglierini (Carlos Bermejo) e Lange (Abian Vainstein), alegam que o velhote passa a noite tossindo. E como ele vive exatamente no meio do prédio, decidem movê-lo “de livre e espontânea pressão” para algum outro apartamento no andar mais acima, evitando que possa espalhar a doença – que eles nem sabem se o sujeito tem – pelo edifício. Enfurecido com a sugestão, Zanutto se recusa a sair do apartamento que divide com o cachorrinho de estimação.


O episódio acaba dividindo o prédio em duas facções. Sem querer, Coco é recrutado como aliado do seu vizinho de porta, Horacio (Yayo Guridi), um psicótico que acredita em teorias da conspiração e tem o apartamento cheio de armas – se um dia fizeream um remake brasileiro de FASE 7, provavelmente Horacio será um bolsominion. Ele presenteia Coco com uma roupa anti-contaminação e uma pistola carregada, e alerta aos demais que fiquem longe do quarto andar, onde os dois vivem: “O quarto andar agora é área restrista. Se algum de vocês se aproximar, isso será considerado um ato de guerra!”.


A situação vai progressivamente saindo do controle e ficando cada vez mais absurda, gerando momentos em que o espectador não sabe se ri de nervoso ou fica estupefato diante do que vê. Horacio começa a espalhar bombas de efeito moral nos acessos ao quarto andar (enquanto, ironicamente, se queixa que sempre lhe consideraram um “paranóico”). Isso acaba deixando Coco e Pipi ainda mais confinados, aumentando a sensação de isolamento e claustrofobia.

E Guglierini e Lange, na sua insistência de tentar tirar Zanutto à força de seu apartamento, acabam levando o velhote a tomar uma atitude radical: armado com uma espingarda de dois canos, ele aceita a declaração de guerra de Horacio e sai pelos corredores a matar quem quer que cruze seu caminho!


FASE 7 é o primeiro longa de Goldbart, que assina ainda o roteiro, a coprodução e a edição. Ele já trabalhava na área, como editor, desde 1995, tendo atuado em quatro dezenas de filmes, documentários, produções televisivas e curtas-metragens.

E sua experiência neste departamento pode ser constatada tanto na edição dinâmica do longa, que nunca perde o ritmo, quanto na administração do baixo orçamento, pois o diretor já tinha suas cenas esquematizadas desde o início, pensando na montagem, e pôde economizar dinheiro. Eu conversei com ele durante o Fantaspoa 2012, logo depois de ver a estreia do seu filme, e gravei uma entrevista que está no YouTube (veja link abaixo).


Entrevista com Nicolás Goldbart


Como “REC”, toda a narrativa se passa no edifício em quarentena, com algumas rápidas cenas externas no início e no final que nem de longe aliviam o clima de opressão e claustrofobia. Os personagens interagem em apartamentos reduzidos, dos quais vemos pouquíssimos cômodos, ou nos corredores e escadarias ainda mais apertados do prédio, que ajudam a passar a ideia de que o cerco está se fechando e não há para onde escapar. Para piorar a sensação de clausura, a câmera às vezes enquadra seus personagens através de “molduras” ainda menores, como o olho mágico da porta, janelas ou portas abertas que filtram luz para cômodos escuros.


Goldbart foi bem-sucedido em passar a ideia de que existem dois mundos distintos dentro deste universo que é o edifício lacrado: os apartamentos são os raros locais em que os personagens têm uma (às vezes falsa) sensação de segurança, já que em teoria podem trancar seus oponentes do lado de fora; já nos corredores e áreas de uso comum foi declarada guerra e não é mais seguro circular.

A situação atinge o ápice do absurdo quando Horacio e Coco, vestindo seus trajes e armados até os dentes, saem para “explorar” – ou seja, investigar os demais pisos do prédio como se fosse uma terra desolada, e invadir apartamentos alheios para roubar comida e medicamentos!


Por ironia, considerando o filmaço que saiu, Nicolás contou que FASE 7 foi uma espécie de tapa-buraco que ele teve que inventar para resolver uma obrigação contratual, depois de ter se comprometido com um projeto mais ambicioso que não conseguiu fazer – sobre um argentino que era preso num aeroporto dos Estados Unidos e acabava por acidente em um presídio de segurança máxima. Daniel Hendler também seria o astro deste projeto, mas Goldbart percebeu que, devido a uma série de dificuldades, não poderia fazer o filme com o orçamento que tinha à disposição.

Sua solução, para não ficar mal com os investidores (um dos produtores-executivos é o norte-americano Steven Schneider, que produziu as franquias “Atividade Paranormal” e “Sobrenatural”), foi sugerir um outro projeto possível de filmar com baixo orçamento. Como na época (2009) o mundo enfrentava o surto de gripe H1N1, ele inspirou-se no clima de medo e paranóia que via nas ruas da Buenos Aires de então para propor a história que se tornaria FASE 7.


Originalmente, seria um filme ainda menor, com uma estrutura quase teatral: dois personagens em uma única locação, enfrentando as agruras de uma quarentena forçada. À medida que ia escrevendo, Goldbart resolveu ampliar a história para todo o edifício, mostrando as interações dos personagens principais com os vizinhos, e assim surgiu a versão final do filme.

“Estávamos em plena Gripe A em Buenos Aires e me parecia que o que estávamos passando era ao mesmo tempo algo trágico, porque havia gente ficando doente e morrendo, e também cômico, absurdo”, me disse o diretor, naquela entrevista de 2012. “Pela falta de informações, e por não saber bem o que acontecia, aquilo gerou um pânico que talvez tenha sido pior e mais perigoso que a própria doença. E me pareceu que ali havia uma boa ideia para um filme.”


Assim como George Romero em “O Exército do Extermínio” (uma das inspirações confessas de Goldbart), o vírus e a epidemia são usados como uma desculpa para tratar temas maiores, como a incapacidade do Estado de lidar com uma situação-limite (não consegue proteger meia dúzia de famílias no interior do edifício em quarentena, e menos ainda as pessoas no mundo exterior), as relações humanas durante uma crise (algo que, de certa forma, parece remeter à gravíssima crise econômica na Argentina na virada dos anos 2000) e até masculinidade tóxica, já que as mulheres do prédio são deixadas de lado em todas as decisões e, trancadas cada qual em seu apartamento, nem imaginam que seus maridos e companheiros estão se matando pelos corredores.


E há um tantinho de crítica social velada; nada tão escancarado e esfregado na cara quanto certos diretores brasileiros adoram fazer, mas há. Quando as autoridades sanitárias perguntam o número de moradores do edifício, por exemplo, um dos residentes responde sem se dar conta: “Somos 16 pessoas e uma empregada doméstica”.

Supostamente também existe uma “família de chineses” no décimo andar, que ninguém sabe se está em casa; ao mesmo tempo, ninguém parece se importar com a segurança ou mesmo com a existência dos orientais – outra coincidência que remete a “REC”, onde havia uma família de japoneses, raramente vista, a quem alguns dos moradores atribuíam a culpa pela contaminação.


Neste cenário que vai avançando rapidamente para a barbárie, o tal vírus mortal é o menor dos problemas. E, espertamente, o diretor não perde tempo comprovando se personagem X ou Y realmente está contaminado ou se é apenas paranóia dos demais.

Uma única pessoa aparece morrendo em decorrência da doença, enquanto as outras vítimas são abatidas por tiros que certamente não foram disparados por nenhum vírus. Como disse Nicolás na entrevista, “o vírus mata, mas não tanto quanto as pessoas! Não me interessava que o filme fosse uma história sobre a Gripe A. É sobre uma situação-limite e como as pessoas reagem a ela”.


Num filme com poucos personagens, o cineasta teve a sorte de contar com um elenco incrível. Daniel Hendler está incrível como o protagonista preguiçoso e pamonha, um “herói improvável” na linha do Ash de Bruce Campbell ou do Shaun de Simon Pegg, embora radicalmente diferente de ambos – ele é incapaz de fazer mal a uma mosca e se revela um fracasso com armas, embora por ironia imite os trejeitos de gângsters de cinema diante do espelho quando corta a barba.

Jazmín Stuart, como a esposa que sequer imagina o banho de sangue que está se passando do lado de fora da porta de seu apartamento, alia ingenuidade com maturidade – ela é uma das poucas pessoas sensatas do filme. E Federico Luppi consegue mudar, em questão de segundos, de velhinho simpático e bonachão para louco homicida perigoso.


Mas quem rouba o filme é o pirado e paranóico Horacio, interpretado por Yayo Guridi. Praticamente desconhecido no Brasil, Yayo é um comediante de sucesso da TV argentina, e esta é sua estreia no cinema (embora ele tenha feito, pouco antes, uma participação ‘as himself’ na comédia “Bañeros 3: Todopoderosos”, de 2006). Seu personagem em FASE 7 não é exatamente engraçado, embora lá e cá seus rompantes de raiva ou ações absurdas provoquem risos pelos motivos errados.

E é de suas maluquices que vem o título do filme: “Fase 7” é o nome de um plano conspiratório, que Horacio acredita estar em curso, para fazer uma redução controlada da população e melhorar a economia global. Qualquer semelhança com as ridículas teorias da conspiração que agora circulam em relação à China e ao coronavírus não passa de mera coincidência, mas percebam como o filme argentino foi visionário até nisso!


Além do já citado “O Exército do Extermínio” (de quem emprestou o plot do vírus fora de controle e as roupas anti-contaminação), FASE 7 também tem inspiração confessa no cinema de John Carpenter, especialmente o ambiente de claustrofobia e clausura de “Assalto à 13ª DP” (1976), um dos filmes preferidos do diretor Goldbart. Nicolás me confidenciou que, na hora de editar o filme, usou as trilhas de “Fuga de Nova York” e “Eles Vivem” como música de referência, dando a Guillermo Guareschi as indicações para compor uma autêntica trilha “Carpenteriana”, que parece até ser trabalho do próprio mestre. E a obra-prima “Fase IV – A Destruição” (1974), de Saul Bass, que a produção argentina homenageia em seu título, está passando na TV num momento do filme – simbolicamente, um momento em que os personagens na telinha também estão usando roupas anti-contaminação.


Embora FASE 7 tenha surgido como um projeto mais “simples”, Goldbart e sua equipe passaram por uma filmagem infernal. “Foram semanas de gente trancada num mesmo lugar, uma filmagem muito cansativa”, lembrou ele. “Na primeira semana foi tudo muito fácil, porque filmei as cenas do casal no apartamento. E foi mais agradável, só com dois atores, próximo daquela minha ideia inicial de só ter dois personagens num apartamento. Mas quando tivemos que sair, já no primeiro dia com os trajes eu percebi que seria muito complicado, e ainda tínhamos quatro semanas daquilo!”.

O diretor lembra que, por filmarem em espaços pequenos e nos corredores do edifício, com uma equipe completa ao redor, a temperatura subia e tornava o uso dos trajes um pesadelo, principalmente porque o visor das máscaras ficava embaçado! O primeiro a se enfurecer com a situação foi Yayo, que iniciou um motim e disse que não conseguiria trabalhar vestindo aquilo. Assim, Goldbart teve que filmar as cenas de Horacio com o traje (e o personagem usa o traje durante a maior parte do filme!) dependendo do humor do ator; em vários momentos, para poupá-lo, o próprio diretor vestiu a roupa anti-contaminação e assumiu seu lugar em cenas onde não se via o rosto do ator.


Embora seja, repito, um filmaço, FASE 7 é o tipo de produção de baixo orçamento que infelizmente acaba ficando restrita ao circuito de festivais, com um lançamento comercial muito limitado nos cinemas antes de sair em DVD. Dez anos depois, para a surpresa de seu diretor, o coronavírus tornou a colocar o filme em evidência: principalmente na Argentina, pessoas começaram a redescobrir FASE 7 como se a trama tivesse profetizado o clima de paranóia e isolamento que estamos vivendo AGORA, e não na época da H1N1 que inspirou a história em primeiro lugar.

“Eu nunca podia imaginar algo assim, é tudo uma loucura”, resumiu o diretor Nicolás Goldbart semana passada, quando trocamos mensagens pelo Facebook. As filmagens de seu segundo longa-metragem inclusive foram canceladas por causa da nova pandemia, ao mesmo tempo em que FASE 7 ganhou capa e matéria de página inteira no Clarín, o maior jornal argentino, onde foi chamado de “filme premonitório” (ao lado).

Como diz a sabedoria popular, a vida muitas vezes imita a arte. Basta saber que, em algumas cidades norte-americanas, as pessoas formaram longas filas em LOJAS DE ARMAS para comprar e estocar munição, e não água e comida! Assim, só por via das dúvidas, convém dar uma conferida em FASE 7 para saber como comportar-se nesta quarentena forçada a qual TODOS, e não apenas os moradores de um pequeno edifício argentino, estamos confinados.

E, só por via das dúvidas, evite MESMO ter qualquer contato com os vizinhos – seja por medo do coronavírus, seja por medo de um tiro de doze no meio da cara...


Trailer de FASE 7

sábado, 21 de março de 2020

KILLDOZER (1974)


Bulldozer é o termo em inglês para designar o veículo conhecido, no Brasil, como trator de esteira – embora seja popularmente chamado de escavadora/escavadeira.  Ela se difere de uma retroescavadeira, como a recentemente usada por Cid Gomes para enfrentar PMs amotinados no Ceará, por ter apenas uma lâmina frontal usada para empurrar ou colher o que vier pela frente, seja terra ou entulhos. A retroescavadeira, por sua vez, tem ainda um braço com pá, que pode ser frontal, traseiro ou lateral, capaz de puxar o material em direção ao veículo.

Existem vários modelos, mas uma bulldozer de tamanho médio – a D-9, por exemplo – é um trambolho que pesa quase 50 toneladas. Obviamente, para o propósito a que se destina, tal peso é fundamental. Mas as 50 toneladas também limitam bastante a velocidade do veículo, que se desloca a uma média de 10km/h – enquanto um homem adulto pode atingir, com pouquíssimo esforço, uns 13km/h.


Concordemos, portanto, que uma bulldozer não é exatamente a ameaça mais terrível a ser enfrentada, a não ser que você esteja com as duas pernas quebradas e diretamente no caminho de uma. Ou no interior de uma cabana que um sujeito descontrolado com uma bulldozer está prestes a demolir.

Mas os autores de histórias de horror e roteiristas de cinema sempre tiveram um talento no limite do ridículo para transformar em vilões algumas criaturas ou objetos que não representam uma ameaça em nosso mundo real, como brinquedos, biscoitos, formigas, lesmas e por aí vai. Era questão de tempo para alguém pensar numa bulldozer assassina, e voilà... surgiu KILLDOZER, uma daquelas desgraças inacreditáveis que, mesmo tendo sido produzida a sério, hoje é celebrada como uma hilariante comédia involuntária!


KILLDOZER é o filhote característico de uma época (a década de 1970) e de um formato (produções realizadas exclusivamente para exibição na TV). Num período em que ainda não havia videocassetes e a internet era um sonho, a televisão tentou impor uma existência paralela ao cinema. A ordem era manter no sofá de casa aquele espectador que não queria se arriscar a sair de casa para ir ao cinema e pagar ingresso para ver um filme que talvez nem fosse bom.

Até o começo dos anos 1970, as emissoras de TV norte-americanas exibiam ou seriados de produção original, ou filmes do arco-da-velha que todo mundo já tinha visto no cinema. Foi quando surgiu a ideia de produzir filmes especialmente para a televisão. Tais telefilmes eram produções mais baratas, com seu próprio star system (geralmente atores de seriados), e competiam diretamente com o que os grandes estúdios produziam – embora a televisão ainda não pudesse mostrar nada muito ousado em termos de sexo e violência, ao contrário do que faz hoje.


Como ainda existia o costume de reunir a família toda diante de um televisor na sala de casa, havia uma audiência cativa. O espectador não pagava ingresso, como no cinema; ao mesmo tempo, era bombardeado com publicidade a cada 10 minutinhos, fazendo com que grandes marcas e empresas investissem fortunas em publicidade no horário. Virou um negócio tão bom que alguns grandes estúdios até abriram divisões televisivas, só para produzir telefilmes. E logo perceberam o potencial das histórias de horror e ficção científica para segurar o telespectador na poltrona.

Gerações inteiras cresceram traumatizadas por telefilmes como “Satan’s Triangle” ou “Trilogy of Terror” (ambos de 1975), porque eles possuíam um clima verdadeiramente sinistro no lugar da violência explícita ou dos efeitos especiais milionários. Jovens cineastas que não conseguiam espaço na telona, como um certo Steven Spielberg, fizeram seus primeiros trabalhos para a telinha – no caso de Spielberg, o thriller “Encurralado” (1971) e o horror “Something Evil” (1972), ambos originalmente produzidos para a TV.


A exemplo da maioria dos telefilmes de então, KILLDOZER sugere mais do que mostra, abusa da seriedade mesmo quando os protagonistas se deparam com o ridículo, e traz em seu elenco várias caras conhecidas da TV gringa, incluindo nomes que nunca tiveram grandes chances no cinema.

Dane-se se o argumento (uma bulldozer assassina!) era absurdo; afinal, o telefilme era produzido para uma exibição única e no máximo uma reprise, ninguém imaginava que no futuro teríamos primeiramente videolocadoras e depois compartilhamento de arquivos para que essas tosquices se tornassem eternas e blogs sem noção, como o Filmes para Doidos, perdessem tempo escrevendo sobre elas!

KILLDOZER foi exibido pela primeira vez em 2 de fevereiro de 1974, como o “Filme da Semana” da emissora norte-americana ABC. Quem cresceu no Brasil dos anos 1980 pode até ter visto alguma das reprises do filme, primeiro pela Record com os títulos “Desespero” e “83 Horas de Desespero”, depois pelo SBT, que o rebatizou como “A Máquina Assassina”.


Produzido pela divisão televisiva da Universal, KILLDOZER é a adaptação para a telinha de uma novela de Theodore Sturgeon, autor relativamente respeitado no mundo da literatura fantástica. Novela esta que não existiria se não fosse pela Segunda Guerra Mundial: em 1941, após perder o negócio da família por causa do conflito, o escritor foi trabalhar para o Exército americano como mecânico de veículos militares.

Numa estação de abastecimento em Porto Rico, Sturgeon foi operador de bulldozer até o fim da guerra, em 1944, quando mudou-se para St. Croix, no Caribe, e escreveu “Killdozer” inspirado na sua experiência com estes veículos. A novela foi publicada numa revista de pulp fiction, a Astounding Science-Fiction de novembro de 1944 (ao lado), rapidamente tornando-se um de seus trabalhos mais populares.

A história de Sturgeon era ambientada durante a Segunda Guerra, quando oito homens estão trabalhando num posto de abastecimento do exército em uma pequena ilha. Enquanto usam uma bulldozer para preparar o terreno para uma construção, eles desenterram um templo milenar que abriga uma energia misteriosa capaz de animar objetos mecânicos. Esta energia “possui” a escavadeira e faz com que o veículo se volte contra os seres humanos, matando cinco deles. Dos três sobreviventes, um enlouquece e os outros dois conseguem destruir a máquina assassina. Enquanto discutem como irão relatar sua excêntrica aventura ao alto comando sem parecerem completamente loucos, um bombardeio inimigo destrói completamente a base e o que sobrou da bulldozer psicopata, tornando desnecessário contar a verdadeira versão dos fatos. Fim.

Trinta anos depois da publicação da novela, o próprio Sturgeon foi contratado pela Universal para trabalhar na sua adaptação para a TV, juntamente com o roteirista de primeira e única viagem Ed MacKillop. Jerry London, um jovem cineasta vindo de seriados inofensivos como “A Família Dó-Ré-Mi” e “The Brady Bunch”, ficou a cargo da direção.


KILLDOZER, o filme, elimina o longo prólogo da novela de Sturgeon, em que o autor explicava que uma avançada e antiquíssima civilização povoou a Terra na aurora dos tempos, mas foi destruída após uma guerra terrível. Os caras tinham criado uma forma de energia que “possuía” os veículos inimigos para destruí-los, e que obviamente fugiu do controle e acabou por eliminar toda esta antiga civilização. E o negócio ficou adormecido num velho templo durante bilhões de anos até ser desenterrado pelos peões nos anos 1940, dando início à balbúrdia.

Na adaptação para a telinha, até para evitar gastar demais com efeitos especiais mostrando a tal guerra entre povos de uma civilização avançada, toda esta explicação foi eliminada e vemos apenas um misterioso meteoro entrando na órbita do planeta e caindo numa ilha afastada, onde permanece enterrado por tempo não-determinado – anos? décadas? séculos?


Finalmente, no “presente” de 1974, uma equipe da companhia petrolífera Warburton está trabalhando na mesma ilha, preparando o terreno para a futura construção de um campo para extração de petróleo. Ao contrário dos oito homens da novela, aqui temos seis para cortar custos, e todos interpretados por nomes populares da TV norte-americana da época – incluindo um jovem Robert Urich em início de carreira, ele que depois ficaria razoavelmente conhecido como protagonista de seriados que ninguém mais lembra, como “S.W.A.T.”, “Vegas” e “Gavilan”.

Logo de início, uma sequência ininterrupta de diálogos expositivos constrangedores bombardeia o espectador para explicar, didaticamente, o motivo para aqueles seis homens estarem ali (“Vocês estão sendo pagos para trabalhar na construção da base de perfuração da Warburton, e não para ficar passeando”), o fato de estarem distantes do continente (“Estamos a 200 milhas da costa da África, o que você esperava?”) e conectados à civilização apenas por um equipamento jurássico de rádio que quase nunca funciona (“Parece que estamos na Lua!”).


Zanzando pela ilhota, os velhos amigos Dutch (James Wainwright) e McCarthy (o já citado Urich) encontram um velho posto de abastecimento dos tempos da Segunda Guerra, numa provável referência à ambientação original da novela que inspirou o filme. O local ainda tem alguns armários e até uma foto da atriz e sex symbol Veronica Lake (“Essa garota era cool antes de inventarem a palavra”, explica Dutch ao jovem colega).

Logo os dois são localizados pelo capataz da obra, Lloyd (Clint Walker, protagonista do seriado de faroeste “Cheyenne” nos anos 1950). Ele os adverte para que parem de perder tempo e prossigam com sua tarefa de demolir o barracão. Mac assume o comando da famigerada Caterpillar D-9 e coloca a estrutura no chão, numa cena que também serve para apresentar ao espectador a força e capacidade destrutiva de uma bulldozer. De repente, porém, a lâmina do veículo fica presa num estranho pedregulho azulado – que vem a ser o meteoro que vimos cair na Terra na cena inicial.


O próprio Lloyd assume o comando da escavadeira para mostrar como se faz, toma impulso e arremete contra a rocha, que parece emitir um estranho zumbido. A pá da bulldozer parte o meteoro e uma misteriosa energia azulada passa da rocha para o veículo. O pobre Mac, que observava a cena, também é atingido pela luz, que lhe provoca graves queimaduras de radiação.

O rapaz é levado para o acampamento, onde Lloyd não consegue explicar para o resto da equipe o que aconteceu, dando origem a um motim entre os trabalhadores, que acreditam que o capataz foi negligente. O restante do grupo é formado por Dennis (Carl Betz, protagonista da série “Judd for the Defense”), Beltran (James A. Watson Jr., de “Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu! 2ª Parte”, único do elenco que seguia vivo até março/2020) e o mecânico Chub (Neville Brand, figurinha carimbada em filmes B dos anos 1970-80).


Sem conseguir contato com qualquer avião ou barco passando pelas redondezas, e impossibilitados de levar Mac a um médico, os cinco homens só podem observar enquanto o rapaz morre; suas últimas palavras são um alerta a Lloyd: uma misteriosa luz azulada saiu do meteoro para a bulldozer.

Enquanto Mac é sepultado à beira da praia, Lloyd vai até o local do acidente para recuperar o veículo, deixado para trás no tumulto. É quando o monstrengo mecânico, animado pela tal energia alienígena, começa a funcionar por conta própria e deixa de responder aos comandos do seu motorista humano. Lloyd ainda tenta cortar o cabo de combustível para forçar o motor a parar, mas por pouco não acaba esmagado pela enorme pá da escavadeira, que repentinamente pára.


Descobrimos, por meio de outro diálogo expositivo, que o capataz é um alcoólatra em recuperação, e aquele trabalho é a última chance que ele recebe da empresa para mostrar serviço. Isso cria uma situação complicada para nosso protagonista: sendo a única testemunha da misteriosa morte de um de seus homens momentos antes, ele agora não pode contar ao restante do grupo que viu a bulldozer funcionando sozinha, caso contrário seu passado de bebum será trazido à tona e ninguém vai levá-lo a sério (o que lembra muito a situação de Jack Torrance em “O Iluminado”, o livro de Stephen King publicado três anos DEPOIS, em 1977).

Na manhã seguinte, o veículo é finalmente recuperado e levado ao acampamento da equipe, onde passa por uma investigação completa nas mãos do mecânico Chub. Ele não encontra absolutamente nada de errado, embora o misterioso som vindo da pá da escavadeira chame sua atenção. Claro que a monstruosa bulldozer está apenas esperando o momento propício para eliminar os homens um por um: primeiro ela destrói o rádio para cortar a comunicação (já precária) com o continente, depois o acampamento e os suprimentos, e finalmente passa a persegui-los sem descanso pela diminuta ilha.


Uma hilária resenha gringa de KILLDOZER refere-se à escavadeira assassina como “Christine depois de tomar esteróides”, numa citação ao famoso carro assassino criado pelo já mencionado Stephen King. É mais ou menos por aí, já que obviamente o peso e a capacidade de destruição da bulldozer a classificam como uma espécie de “versão bombadona” desses filmes sobre veículos que adquirem vida e perseguem seres humanos.

O problema é que... Bem, como já foi escrito mais para cima, uma bulldozer não é exatamente a mais ágil das ameaças. Se numa narrativa literária, como a novela de Sturgeon, você até consegue administrar a situação através da prosa, num filme, quando isso é traduzido em imagens, fica evidente que qualquer um dos personagens poderia facilmente escapar correndo da escavadeira assassina, e que ela só consegue eliminar suas vítimas porque os sujeitos agem como completos imbecis.


Perseguido por meros cinco minutos pela monstrenga, por exemplo, um dos personagens busca abrigo DENTRO DE UM CANO DE METAL FINÍSSIMO, onde obviamente o gênio será transformado em burrito humano pela bulldozer de 50 toneladas (fico imaginando o trabalho para tirar o cadáver dali depois; ele provavelmente foi sepultado dentro do cano achatado mesmo!).

Mais tarde, um sujeito tenta fugir de jipe enquanto a bulldozer se aproxima “ameaçadora” – e uso aspas porque na verdade a bicha está se locomovendo a nada ameaçadores dez por hora. Por ironias do destino ou Lei de Murphy, o motor do jipe não quer pegar de jeito nenhum. Aí a montagem tenta criar algum suspense (inexistente, óbvio) ao intercalar planos do cara tentando ligar o jipe com contraplanos da bulldozer se aproximando a 10km/h. O infeliz teria tempo mais do que suficiente para pular da porra do jipe e sair na pernada, mas simplesmente se rende, fecha os olhos e aceita ser esmagado sem reagir! Parece até aquela cena do primeiro “Austin Powers”, em que um capanga do Dr. Evil fica gritando desesperado diante da aproximação de um rolo-compressor lentíssimo quando poderia facilmente fugir ou pelo menos sair da frente!


O ritmo de KILLDOZER é tão lento e arrastado quanto seu monstro, com inúmeros tempos mortos (num filme de 70 minutos!!!) em que nada acontece. Os personagens pouco fazem para tentar contornar a situação inacreditável em que se encontram, e ainda aceitam com naturalidade o fato de estarem sendo perseguidos e mortos por uma gigantesca escavadeira que se autopilota!

O único que pelo menos tenta questionar o que está acontecendo é um semi-enlouquecido Dutch, que acredita que “espiões estrangeiros“ estejam pilotando o veículo por controle remoto (tempos de Guerra Fria, sabe como é...). “Tem que haver uma explicação lógica!”, protesta ele, mas seus companheiros de agonia não dão muita bola.


Enfim, o filme se leva um bocadinho mais a sério do que deveria (UMA BULLDOZER ASSASSINA, CARAMBA!!!), o que ajuda a transformá-lo numa comédia. Com destaque absoluto para o momento em que seu astro Clint Walker “encara” a escavadeira mutante assassina, pé-de-cabra na mão contra um monstro metálico de 50 toneladas, e provoca: “C’mon dozer, c’mon and get me!”. Se já não fosse ridículo o bastante ver uns marmanjos com mais de quarenta na cara correndo de uma escavadeira assassina, eles ainda tentam FALAR com ela! Rapaz, que mico...

Há um momento que sintetiza perfeitamente a tragédia que é KILLDOZER, quando os dois únicos sobreviventes finalmente resolvem usar a cabeça e combater fogo com fogo, ou aço com aço: eles sobem numa retroescavadeira – que, como já expliquei, é diferente e maior que a “simples” escavadeira – e usam o braço da máquina para golpear e tentar conter os avanços da bulldozer. Mas se um veículo do tipo já é lento e desajeitado, imagine ver DOIS deles “lutando”! O resultado é um confronto tão sonolento e pouco emocionante quanto assistir à corrida entre uma tartaruga e uma lesma!


Em defesa do pobre diretor Jerry London, porém, ressalto que o coitado pelo menos tenta tirar algo do material pobre de que dispunha. À época ele estava com 27 anos e era da mesma geração de Spielberg. Apenas três anos depois de “Encurralado”, London também tentou usar curiosos ângulos de câmera e recursos cenográficos para fazer da sua bulldozer um vilão minimamente assustador, como o caminhão no telefilme do Spielberg.

A maneira como a escavadeira anda com os faróis acesos mesmo de dia, e a pá levemente erguida, dá a impressão de uma face inexpressiva, com olhos luminosos e uma enorme bocarra. E os efeitos de manivelas que se movem sozinhas, acionadas pelo próprio veículo, são até convincentes.


Mas é simplesmente absurdo e estúpido que uma bulldozer, um veículo que faz o maior barulhão para se locomover, e ainda anuncia sua passagem pela fumaça negra que solta, consiga pegar suas vítimas “de surpresa”. O caminhão de Spielberg, que também pesava toneladas, pelo menos atingia uma velocidade considerável e parecia um adversário de respeito.

Já a bulldozer de London é um negócio extremamente limitado, do qual você pode fugir caminhando rápido (nem precisaria correr). Ou ficar sentado confortável num ponto inacessível a um veículo tão pesado e desajeitado. Não faltam morros na ilha de KILLDOZER, mas o roteiro tenta nos convencer de que nem isso iria parar a máquina diabólica – quando os sobreviventes buscam refúgio no topo de uma colina, um deles comenta: “Não podemos ficar aqui, ela pode abrir uma estrada para onde quiser ir!”.


Lá pelas tantas, a bulldozer dá uma de esperta e usa sua lâmina frontal para provocar um deslizamento, empurrando toneladas de pedras sobre os protagonistas, que precisam fugir para não morrer esmagados. Não é uma cena particularmente tensa, ou mesmo bem feita, mas pelo menos mostra que a vilã poderia ter sido aproveitada de outra maneira, usando mais a inteligência do que a força bruta (sim, eu também não acredito que acabei de escrever isso, que uma retroescavadeira poderia ser mais inteligente!). Porque quando seu “monstro” se locomove a velocidade de tartaruga, seria mais lógico colocá-lo para pegar as vítimas de surpresa do que persegui-las a 10km/h!


A ambientação numa ilha afastada tenta criar um clima de isolamento para os personagens, como se não houvesse para onde fugir e eles fossem obrigados a enfrentar a bulldozer assassina até o último homem. Mas é simplesmente estúpido que nenhum deles tenha sequer pensado em fugir nadando mar adentro, já que obviamente um veículo tão pesado não poderia persegui-lo por ali – mais fácil que ficasse atolado na areia úmida.

Embora seu filme de veículo assassino passe bem longe da obra-prima que é “Encurralado”, London faria coisa bem melhor depois, tipo a minissérie “Shogun”, estrelada por Richard Chamberlein, e o telefilme “O Escarlate e o Negro”, com Gregory Peck. Ao contrário de Spielberg, porém, ele não conseguiu migrar da telinha para a telona, assinando algumas poucas produções para o cinema, como “Um Tira de Aluguel” (1987), com Burt Reynolds.

Será que sua carreira teria sido diferente se esta sua estreia estivesse mais para “Encurralado” do que para KILLDOZER?


Bem, pelo menos um integrante da equipe desta desgraça acabou alçando voos maiores, inclusive trabalhando com o supramencionado Steven Spielberg. Trata-se de Ben Burtt, que sequer recebeu crédito em KILLDOZER (talvez tenha sido esta a sua sorte!).

Na década de 1970, Burtt tentou seguir carreira na área dos efeitos visuais. Alguns de seus trabalhos semi-amadores em 16mm chegaram à Universal, que resolveu contratá-lo para fazer aquela cena inicial com o meteoro chegando à Terra, com a condição de que o fizesse rápido e barato (até porque a ideia original do estúdio era reaproveitar uma cena parecida de um velho filme de 1955, “This Island Earth”, para economizar). Burtt matou a charada filmando um pedaço de esponja pintado para simular o meteoro, num efeito improvisado que parece bom até hoje (veja a imagem abaixo e tire suas próprias conclusões)!


Alguns anos depois de KILLDOZER, ele foi contratado para trabalhar como designer de som e criar todos os efeitos sonoros de um pequeno filme de ficção científica chamado... “Star Wars”! Sim, o “Guerra nas Estrelas” original de 1977! Então da próxima vez que você ouvir o som de um sabre-de-luz, ou os barulhinhos do R2-D2, lembre-se que um dos responsáveis por eles foi um cara recém-saído de um thriller tosco sobre uma escavadeira assassina!

Burtt trabalhou com Spielberg nos filmes do Indiana Jones e em “E.T. – O Extraterrestre”, e ganhou quatro Oscars da categoria! Nada mal para quem começou tão por baixo...


Por pior que seja (e é mesmo bem ruim), KILLDOZER também foi um dos pioneiros (se não “o” pioneiro) em matéria de filmes sobre veículos assassinos movidos por alguma força alienígena ou sobrenatural. Até então, carros animados eram um recurso mais comum em comédias, como a série da Disney “Se Meu Fusca Falasse”.

Passados dois anos, em 1976, Charles Band produziu e dirigiu “Crash! – O Engavetamento do Século”, sobre um veículo que sai pela estrada sem motorista, em busca de vingança depois que sua proprietária quase morreu num acidente. Em 1977 chegou aos cinemas “O Carro – A Máquina do Diabo”, de Elliot Silverstein, e em 1980 foi a vez de “O Carro Sinistro”, de George Bowers, sobre um carro-funerário assassino!


Mas o veículo demoníaco mais famoso de todos, o Plymouth 1958 de “Christine – O Carro Assassino”, criado por Stephen King, só apareceu quase uma década depois (o livro e a adaptação para o cinema de John Carpenter saíram no mesmo ano, 1983). Vale lembrar que King já tinha escrito uma história sobre caminhões que se autoconduziam, “Trucks”, em 1973, um pouquinho antes de KILLDOZER estrear na TV norte-americana.

“Trucks” também foi a história escolhida pelo escritor para fazer sua estreia no cinema como diretor em “Comboio do Terror” (1986), uma bomba atômica cujo resultado desastroso fez King jurar que jamais dirigiria qualquer outra coisa. Curiosamente, o filme tem um momento incrível que parece remeter a KILLDOZER: aquele em que um rolo-compressor animado esmaga uma criança!


Passados quase 50 anos da sua estreia na TV norte-americana, fica difícil saber como foi a recepção de KILLDOZER então. Terá sido levado a sério, ou já era considerado ridículo naqueles tempos? (Quem viu na Record/SBT aqui no Brasil, na década de 1980, está convidado a dar seu depoimento nos comentários!)

O que se sabe com certeza é que a obra virou um cult instantâneo. Em abril de 1974, dois meses depois da exibição do filme na ABC, a Marvel Comics publicou uma quadrinização da novela para tentar faturar com a popularidade da produção. Saiu no nº 6 da Worlds Unknown (ao lado), revista especializada em adaptar contos de horror e ficção científica. Gerry Conway e Richard Ayers ficaram responsáveis pela adaptação, que resgatava aquele prólogo de Sturgeon com a guerra numa civilização tecnologicamente avançada do nosso passado. O mais marcante é a capa absolutamente mentirosa, que inclui uma garota (ela não aparece na novela e nem na própria HQ!) e uma versão “demoníaca” e falante da escavadeira.

“Killdozer” também virou o nome de uma banda de punk rock dos anos 1980, confessadamente batizada por causa do filme, e a alcunha de um bizarro caso policial acontecido no Colorado em 4 de junho de 2004, quando um sujeito chamado Marvin John Heemeyer despirocou – aparentemente por causa de multas recebidas da prefeitura da cidade – e saiu pelas ruas demolindo prédios públicos com uma bulldozer reforçada! Depois de derrubar a própria sede da prefeitura e a casa do prefeito, entre outros edifícios, Heemeyer cometeu suicídio com um tiro na cabeça para escapar da prisão. O caso ficou conhecido popularmente como “The Killdozer Rampage”, provavelmente também em referência ao filme. (E vejam só que timing: em fevereiro/2020 estreou “Tread”, um documentário de Paul Solet narrando esta história curiosa.)


Tudo considerado, KILLDOZER é um filme que talvez se beneficiasse de uma refilmagem contemporânea, onde o diretor pudesse colocar todo o sangue e violência que Jerry London jamais poderia mostrar na rigorosa TV norte-americana dos anos 1970.

Uma versão moderna pelo menos poderia mostrar vítimas sendo achatadas pela bulldozer, ou decapitadas e partidas ao meio pela lâmina do veículo, permitindo toda uma variedade de efeitos sangrentos. A tecnologia já avançou o suficiente para garantir que a escavadeira pareça mais ágil e ameaçadora do que seria na “vida real”, quem sabe até dar-lhe mais “expressões”.

Com o tanto de filme bom que vem ganhando remakes ruins ultimamente, seria uma boa hora para começar a variar e tentar fazer refilmagens boas de filmes ruins...


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