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domingo, 8 de abril de 2012

HÉRCULES UNCHAINED (1959)


Ano que vem (2013) deve estrear o novo filme do Tarantino, "Django Unchained", e toda a crítica nacional vai ficar papagaiando como obra e diretor são geniais e bla-bla-bla. Mas muito poucos "jornalistas especializados" lembrarão que o chupão do Tarantino provavelmente roubou o título de seu novo filme de um épico italiano de 1959, HÉRCULES UNCHAINED! Portanto, o FILMES PARA DOIDOS faz o trabalho sujo para eles.

Na mitologia greco-romana, Hércules era um semideus, filho do poderoso Zeus com uma bela mortal. Enciumada, Hera, a esposa do grande deus do Olimpo, fez de tudo para matar o filho bastardo desde que ele ainda era um bebê. Mas o astuto Hércules sempre escapava graças à sua superforça, com a qual também cumpriu os lendários "Doze Trabalhos" - uma série de confrontos com criaturas monstruosas ou façanhas impossíveis para os mortais comuns.


Antes de virar astro de um popular desenho animado da Disney, Hércules também foi o grande herói de um ciclo bastante lucrativo de filmes produzidos na Itália, repleto de aventuras baratas cujos roteiros eram inspirados em histórias bíblicas ou na mitologia greco-romana.

Este ciclo ficou conhecido como "peplum" (o termo grego para as túnicas usadas na Grécia Antiga). E embora a italianada já fizesse filmes com heróis mitológicos e/ou bíblicos desde os primórdios do cinema - o excepcional épico mudo e em preto-e-branco "Cabiria", dirigido por Giovanni Pastrone em 1914, já trazia um guerreiro musculoso chamado Maciste, que fez sucesso e tornou-se protagonista de uma longa série de filmes -, os produtores da Terra da Bota só começaram a investir pesado no "peplum" para tentar faturar em cima de produções de Hollywood com os mesmos temas, como "Spartacus" e "Os Dez Mandamentos".


Aproveitando que muitos desses blockbusters gringos eram filmados na própria Itália ("Quo Vadis?" e "Ben Hur", por exemplo), os italianos espertalhões até economizavam uns trocados reaproveitando cenários e figurinos dessas produções!

Além de dar a primeira chance para gente talentosa como Ruggero Deodato e Sergio Leone, o ciclo do "peplum" também foi um belo filão de mercado, copiando a fórmula norte-americana de heróis musculosos e mocinhas sensuais e com pouca roupa, mas quintuplicando o erotismo - ainda menos roupa nas atrizes, embora os filmes ainda não mostrassem nudez.

HÉRCULES UNCHAINED é uma produção realizada no ápice da febre "peplum". O título original era "Ercole e la Regina di Lidia" (Hércules e a Rainha de Lídia), mas ganhou sua versão mais popular em inglês quando o distribuidor norte-americano Joseph E. Levine adquiriu os direitos para lançá-lo nos EUA.


Trata-se de uma continuação de "Hércules" (no Brasil, "As Façanhas de Hércules"), uma aventura dirigida pelo mesmo Pietro Francisci um ano antes, em 1958. A iniciação de Francisci no gênero foi com "Átila", de 1954, estrelado por Anthony Quinn no papel-título e Sophia Loren. Tanto este quanto o primeiro "Hércules" foram estrondosos sucessos de bilheteria no mercado norte-americano, transformando o diretor em nome quente para esse tipo de produção.

Com roteiro do próprio Francisci mais Ennio De Concini (responsáveis também pelo original de 58), HÉRCULES UNCHAINED é uma salada de personagens mitológicos, mas com pouca ou nenhuma relação com as histórias da mitologia greco-romana. Logo no começo, por exemplo, encontramos Hércules (Steve Reeves) viajando com sua amada Iole (Sylva Koscina) e um amigo, o jovem Ulisses (Gabriel Antonini).


O trio logo chega a uma caverna onde está o velho Édipo (Cesare Fantoni), o antigo rei da cidade de Tebas. Ele conta ao herói sua triste história: foi deposto do trono pelos próprios filhos, Etéocles e Polinice (respectivamente Sergio Fantoni e Mimmo Palmara). Obviamente, os rapazes acabaram entrando em conflito e Etéocles manteve-se como soberano único da cidade, expulsando o irmão - que, por sua vez, contratou um exército de mercenários para atacar e destruir Tebas.

Tentando evitar o inútil derramamento de sangue, Hércules resolve ser o mediador entre os dois irmãos. Mas, enquanto leva uma mensagem de trégua de um para o outro, o herói acidentalmente bebe a água da Fonte do Esquecimento (!!!) e perde a memória. No momento seguinte, é aprisionado pelo exército da cidade de Lídia junto com Ulisses (que, para não ser morto, finge-se de surdo-mudo).


A rainha de Lídia, Omphale (Sylvia Lopez), é uma bela ninfomaníaca que, de tempos em tempos, sequestra e seduz um valente guerreiro para ser seu amante, usando a tal água desmemorizadora (existe essa palavra?) para anular sua vontade. Porém, quando cansa do amante da vez, não dá um simples pé-na-bunda: pelo contrário, o pobre sujeito, além de trocado, é morto, mumificado e se transforma em estátua da coleção da sádica rainha!

A partir de então, HÉRCULES UNCHAINED segue duas linhas narrativas: a amada de Hércules, Iole, e seus amigos tentando evitar a iminente guerra entre os dois irmãos e a consequente destruição de Tebas, enquanto Ulisses, em Lídia, tenta fazer com que o herói recupere sua memória e escape das garras da rainha Omphale.


HÉRCULES UNCHAINED e a aventura anterior com o herói mitológico fizeram para o fisiculturista californiano Steve Reeves o que "Conan, O Bárbaro" fez para o austríaco Schwarzenegger mais de 20 anos depois: transformou-o em astro do "cinema com testosterona".

Nascido em 1926, Reeves tentou ser astro em Hollywood, mas só fazia escolhas erradas. Para o leitor ter uma ideia, ele recusou uma participação no épico "Sansão e Dalila", de Cecil B. De Mille, para fazer o policial classe C "Jail Bait", escrito e dirigido por Ed Wood!!!


A sorte do fortão só mudou quando ele interpretou Hércules na Itália, fazendo um sucesso estrondoso e abrindo o caminho para que outros fisiculturistas da época virassem astros de cinema, como Gordon Scott, Gordon Mitchell e Mark Forest, embora nenhum deles tivesse sequer chegado perto da popularidade do "original". Para dar uma ideia da fama de Steve Reeves naqueles tempos, Schwarzenegger e Lou Ferrigno disseram que só tentaram a sorte no cinema inspirados pela trajetória do fortão.

Obviamente, Reeves era uma vergonha como ator. Deixem-me reformular: Reeves era completamente INCAPAZ de atuar, e portanto os diretores tinham que ficar inventando desculpas para que ele aparecesse sem camisa e usando os músculos, ao invés de falando.


HÉRCULES UNCHAINED foi seu último filme no papel do herói mitológico. Depois, ele estrelou outras 12 aventuras épicas italianas, como "Golias Contra os Bárbaros", "A Guerra de Tróia" e "Il Figlio di Spartacus" (!!!), até que uma grave lesão no ombro forçou sua aposentadoria em 1968. Ele nunca voltou ao cinema, nem mesmo em participações especiais (o Tarantino marcou nessa), e morreu em 2000, aos 74 anos, praticamente esquecido.

Reeves até está bem na sua segunda "atuação" como Hércules, mas infelizmente o roteiro cria muitos conflitos e personagens, deixando pouco espaço para o herói mostrar seus dotes físicos. Ele passa pelo menos uns 40 minutos do filme como escravo da rainha de Lídia, e nesse tempo não luta nem destrói nada com as próprias mãos. É somente no ato final que finalmente vemos a "força" de Hércules em toda a sua glória.


Menos mal que o diretor compensa os tempos-mortos no meio da narrativa filmando diversas vezes a deslumbrante Sylva Koscina (acima), que interpreta Iole, a amada de Hércules. Essa maravilhosa deusa croata apareceu em mais de 120 filmes, incluindo "Lisa e il Diavolo", de Mario Bava, e "Santuário Mortal", de Jess Franco. Aqui, ela mostra seus "atributos" o tempo inteiro, pelo menos o que a moral e os bons costumes da época permitiam mostrar, aparecendo sempre com saínha curtíssima e um gigantesco decote.

Além do corpão da Sylva Koscina, uma das coisas que mais salta aos olhos, principalmente de quem tem um mínimo de conhecimento sobre mitologia, é a mistureba feita pelos roteiristas Francisci e De Concini. Não contentes em fazer um filme apenas sobre o mito de Hércules, eles colocaram no mesmo balaio uma série de outros heróis e vilões greco-romanos.


É o caso do "parceiro" de Hércules, ninguém menos que o herói grego Ulisses, criado por Homero como figurante em "A Ilíada" e alçado a personagem principal em "A Odisséia" - e que, até onde eu sei, nunca sequer encontrou Hércules nas lendas gregas.

Toda a trama envolvendo Édipo e seus filhos em guerra, Etéocles e Polinice, é inspirada nas peças "Édipo em Colono", de Sófocles, e "Sete contra Tebas", de Ésquilo. E embora o filme mostre Hércules resolvendo a situação, nas velhas tragédias gregas quem lutava para destronar Etéocles de Tebas eram Adrasto, Polinice, Anfiarau, Capaneu, Hipómedon, Partenopeu e Tideu.


Já a relação de Hércules com a Rainha Omphale vem da mitologia. Mas, ao contrário do que acontece no filme, nas lendas gregas o fortão ficava um ano como escravo sexual da governante de Lídia, e o casal inclusive tinha alguns filhos antes da libertação do herói!

Finalmente, logo no comecinho, Hércules luta com o gigante Anteu, que não tem absolutamente nada a ver com o resto do filme. Mas o confronto entre os dois também remonta às lendas greco-romanas.


Anteu era filho de Poseidon, o deus dos oceanos, com Gaia, a "mãe terra", e totalmente indestrutível enquanto permanecesse com os pés no solo. Na mitologia, Hércules simplesmente levantava Anteu acima do chão até que ele morresse de fraqueza; no filme, contenta-se em jogá-lo no mar, eliminando seus poderes.

Por sinal, Anteu foi interpretado por Primo Carnera, que era boxeador, foi campeão dos pesos pesados em 1933-34 e tentou a sorte no cinema, como outros fortões da época, porém sem sucesso - este foi seu último trabalho.


HÉRCULES UNCHAINED também foi um dos últimos trabalhos da modelo francesa e aspirante a atriz Sylvia Lopez, que interpreta Omphale. Ela sofria de leucemia e só conseguiu completar mais um filme ("Il Figlio del Corsaro Rosso"). Morreu aos 27 anos enquanto gravava "Voulez-vous Danser Avec Moi?", ao lado de Brigitte Bardot (suas cenas foram todas refilmadas com outra atriz, Dawn Addams).

Sylvia está linda aqui como a rainha de Lydia, mas, a exemplo de Steve Reeves, era totalmente incapaz de interpretar. A coitada arregala comicamente os olhões sempre que precisa demonstrar alguma emoção - seja paixão ou medo -, mas está no filme, como o protagonista Steve, para mostrar seus atributos físicos, e isso faz com louvor.


Como ela representa a tentação, ou a "mulher má" que tenta tirar o herói do caminho da virtude (algo bem comum nas moralistas aventuras da época), o figurino da rainha também é cheio de decotes e saias curtas BEM acima do joelho, uma verdadeira pornografia para aqueles tempos ingênuos. Vendo o filme, ficava imaginando aqueles moleques impúberes indo aos cinemas nos anos 50 e 60 porque era a única chance de verem coxas de fora, antes que minissaia e fio-dental virassem peças corriqueiras do vestiário feminino.

Assim, HÉRCULES UNCHAINED funciona, hoje, não apenas como aventura ingênua, mas também como divertido trashão involuntário. Além das interpretações pavorosas, o filme traz todo tipo de furo (ou rombo, se preferirem) de roteiro, como o fato de os soldados de Lídia prenderem Ulisses num calabouço, porém deixando-o com uma gaiola cheia de pombos-correio (!!!). Milagrosamente, o rapaz ainda encontra papel e tinta na cela (!!!) para escrever uma mensagem e enviá-la através de um dos pombos para chamar o resgate!


Também existe uma cena hilária em que Hércules enfrenta tigres ferozes numa arena. Qualquer pessoa com um mínimo de noção sobre montagem percebe a malandragem, já que não há um único frame com Steve Reeves e os tigres JUNTOS, apenas cortes rápidos de closes dos tigres para closes do ator. É hilário ver os animais reais sendo substituídos por tigres empalhados atirados comicamente sobre o ator. Ou Hércules dando uma gravata num tigre visivelmente dopado e adormecido antes das câmeras começarem a gravar!

Mas nem tudo é de quinta categoria em HÉRCULES UNCHAINED. Os cenários e figurinos são ótimos, com uma preocupação em criar ambientes luxuosos, repletos de estátuas gigantescas (dê uma espiada nas fotos abaixo, que coisa linda!). Pena que não dá pra elogiar muito, pois a italianada reaproveitava coisas de um filme em outro, então jamais saberemos o que foi feito EXCLUSIVAMENTE para esse aqui e o que foi "emprestado" de outra produção, quem sabe até de um blockbuster norte-americano!


E a fotografia é boa demais para um filme tão barato, abusando de luzes coloridas nos cenários grandiosos, que mudam conforme a emoção a ser transmitida pela cena. É trabalho de profissional, e destoa da produção barata e apressada desse tipo de aventura.

Quando você olha os créditos, percebe o porquê do contraste de qualidade: o responsável pela fotografia e pelos efeitos especiais foi simplesmente um tal de Mario Bava, pouco antes de estrear como diretor em "I Vampiri" (1956). Pois o mestre Bava trabalhou na equipe técnica de inúmeros "peplum" (e até dirigiu alguns, como "Hércules no Centro da Terra", de 1961), sempre marcando sua participação com a característica e inigualável fotografia multi-colorida.


Mas cuidado se for comprar um DVD do filme: como HÉRCULES UNCHAINED caiu em domínio público, já saiu pelo menos três vezes no Brasil por distribuidoras reconhecidamente pirateiras. A versão que eu vi era da Classicline: além da perda de imagem devido ao wide cortado para fullscreen (em certos trechos, atores, figurantes e até um batalhão inteiro de soldados desaparecem do enquadramento!!!), as belíssimas cores da fotografia de Mario Bava estavam lavadas porque era uma cópia visivelmente ripada de VHS (compare as versões full brasileira e wide importada nas fotos abaixo).

(Sinceramente, eu duvido que os outros dois DVDs nacionais - da Works e da Continental, com o título "Hércules e a Rainha de Lídia" - estejam melhores, portanto é melhor apelar para o bom e velho download.)






Ver HÉRCULES UNCHAINED hoje é mais do que um exercício de nostalgia ou trashice. Particularmente, encaro isso como uma forma de se desintoxicar das pavorosas aventuras épicas produzidas nos últimos anos, de "Tróia" ao remake de "Fúria de Titãs" (esse último eu nem vi, só o trailer já me bastou).

Aqui, ao invés de bonequinhos feitos por computador, você tem figurantes guerreando nas cenas de batalha. Ao invés de efeitos digitais para demonstrar a força de Hércules, vemos o sujeito erguendo imensas rochas de isopor ou entortando barras de metal feitas de alguma liga bem leve - MAS ISSO JÁ BASTA, não é necessário um efeito tosco em CGI do herói erguendo uma montanha inteira para me fazer acreditar que o cara é fortão!

E é sempre um alívio você ver aventuras épicas com gente de verdade e efeitos práticos no lugar de computação gráfica, pois, pelo menos para mim, isso aqui parece muito mais cinema do que videogame.


Após HÉRCULES UNCHAINED, e com Reeves deixando o papel-título, foram produzidos outros 17 filmes italianos com o herói, mas sem nunca alcançar o mesmo sucesso dos dois originais. Essas sequências "bastardas" saíram entre 1960 e 1965, por vários realizadores diferentes, e teve ano (1964) em que saíram seis aventuras de Hércules de uma só vez!

Atores como Gordon Scott, Kirk Morris, Mickey Hargitay e Brad Harris ocuparam o lugar de Reeves em filmes com títulos do naipe de "Ercole, Sansone, Maciste e Ursus: Gli Invincibili" e "Ercole Contro i Tiranni di Babilonia".


Vinte anos depois, com o sucesso de "Conan, O Bárbaro", os italianos voltaram a produzir aventuras baratas de capa e espada, mas bem diferentes daqueles ingênuos "peplum" como HÉRCULES UNCHAINED, agora sim abusando de violência explícita e nudez gratuita.

Por essa época, Luigi Cozzi ressuscitou o personagem nos divertidíssimos "Hércules" (1983) e "As Aventuras de Hércules" (1985), com Lou Ferrigno "interpretando" o herói e tramas misturando mitologia grega e ficção científica!

Mas isso é assunto para outra postagem...

Veja HÉRCULES UNCHAINED na íntegra



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Hercules Unchained / Ercole e la Regina di Lidia
(1959, Itália)

Direção: Pietro Francisci
Elenco: Steve Reeves, Sylvia Koscina, Gabriele Antonini,
Sylvia Lopez, Sergio Fantoni, Mimmo Palmara, Primo Carnera,
Patrizia Della Rovere e Carlo D'Angelo.