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segunda-feira, 30 de julho de 2012

LIQUID SKY (1982)


São raros os filmes que você ama apaixonadamente ou odeia profundamente, e não consigo pensar em exemplo melhor do clichê "ame ou odeie" do que LIQUID SKY, uma bizarríssima produção independente do começo dos anos 1980. Já tive a oportunidade de conversar sobre ele com vários amigos, cinéfilos ou não, e a opinião é sempre para o céu ou para o inferno: ou o cara adora, ou diz que foi o pior filme que viu na vida.

Não há meio-termo nem mesmo nas resenhas encontradas internet afora: você não vê ninguém dizendo que achou o filme "mais ou menos", ou "bonzinho"; é ou paixão arrebatadora ou fúria virulenta!


O que posso dizer é que LIQUID SKY realmente merece esse rótulo do "ame ou odeie". E embora eu esteja do lado dos apaixonados, entendo perfeitamente sempre que alguém diz que odiou - e nunca, jamais, tento fazê-lo mudar de ideia. Ame ou odeie, entretanto, a experiência de ver LIQUID SKY é única e nunca vi nada sequer parecido com esse filme.

Para sintetizá-lo numa única frase, e assim você pode parar de ler a resenha e procurar pelo filme para ver se ama ou odeia, vou pegar emprestada a definição de uma crítica escrita lá em 1982, quando a obra chegou aos cinemas: "The funniest, craziest, dirtiest, most perversely beautiful science-fiction movie ever made". Ou, em bom português, "o mais divertido, maluco, sujo e perversamente bonito filme de ficção científica já realizado".


É por aí? É. Principalmente na parte do "craziest", considerando que o filme traz um pouco de tudo: OVNIs, cientistas loucos, drogas, sexo, estupro, lesbianismo, androginia, assassinatos e até uma rápida insinuação de necrofilia! Só que é muito fácil se desiludir com LIQUID SKY, especialmente se você não estiver preparado para o que vem pela frente. Embora a trama envolva discos voadores e alienígenas, o filme passa longe de ser uma ficção científica "padrão", e quem for assistir esperando por isso quebrará a cara.

Afinal, mais que uma história de ficção científica, LIQUID SKY é um retrato multi-colorido e psicodélico do universo junkie/pós-punk/new wave da Nova York do começo dos anos 80. A música, os clubes "alternativos", o jeito de agir, falar, se vestir e se comportar, tudo remete àquele período e local específico, de maneira que o filme pode ser visto praticamente como um documento histórico da época.


Trata-se da história de Margaret (Anne Carlisle), uma modelo new wave bissexual que vive numa cobertura em Manhattan com a namorada traficante, Adrian (Paula E. Sheppard, de "Comunhão", aqui em seu segundo e último trabalho). Certa noite, enquanto as duas participam de um desfile de moda, um disco voador de dimensões reduzidas - mais ou menos do tamanho das modernas antenas de TV por assinatura - pousa exatamente no teto do apartamento das moças.

Logo descobriremos que o alienígena no interior da nave (nunca mostrado ao espectador) está na Terra em busca de um alimento ou droga rara em seu planeta: a substância produzida pelo cérebro humano no momento do orgasmo, que, para o ET, tem o mesmo efeito da heroína para os humanos!


Mesmo tendo uma parceira fixa, Margaret leva uma vida sexual bastante intensa com homens e mulheres - embora, ironicamente, nunca consiga atingir o orgasmo. E é claro que o alienígena vai aproveitar a rotina devassa da modelo para conseguir seu alimento/droga, com um "pequeno" efeito colateral: o "doador" da substância morre na hora do gozo!

Pode parecer simples na essência, mas, acredite, LIQUID SKY é aquele tipo de filme sem-noção que parece gritar "cult movie!" em cada frame. Outros personagens começam a entrar e sair da trama, envolvendo-se com Margaret e seu alienígena junkie. O mais importante deles é Johann Hoffman (Otto Von Wernherr), um cientista alemão que vem seguindo o disco voador e chega a Nova York em busca de um contato imediato de qualquer grau.


No início, Johann vasculha a cidade do alto do Empire State com seu potente telescópio até descobrir onde está o pequeno OVNI. Quando seu único amigo nos Estados Unidos lhe deixa na mão, ele precisa pedir a ajuda de uma moradora do prédio em frente para usar seu apartamento e vigiar as ações do alienígena.

A tal moradora é Sylvia (Susan Doukas), uma produtora de TV que passa a noite inteira tentando seduzir o alemão enquanto ele se limita a vigiar o alien e os assassinatos cometidos por ele - uma situação que muitos críticos da época compararam com "Janela Indiscreta", de Hitchcock, talvez com certo exagero.


Perto dali, também vive o casal Katherine (Elaine C. Grove) e Paul (Stanley Knap). Ele é um escritor fracassado que afoga as mágoas em heroína, apesar dos protestos da esposa. Aos 10 minutos do filme, Paul é o responsável por justificar o título ao explicar que "liquid sky" (céu líquido) era uma gíria oitentista para a droga.

Por último, mas não menos importante, temos um modelo junkie chamado Jimmy, que vive uma relação de amor e ódio com Margaret - é seu rival nas passarelas, mas ao mesmo tempo nutre um amor platônico pela garota. O irônico de tudo é que Jimmy é interpretado pela mesma Anne Carlisle que faz a própria Margaret (veja as imagens abaixo), num toque de gênio do filme. E, graças à magia da montagem, Anne contracena e até transa com ela mesma em algumas cenas, algo que hoje seria feito facilmente com CGI.


Uma das coisas mais curiosas de LIQUID SKY é que esses personagens aparentemente tão diferentes estão ligados uns aos outros e em algum momento do filme irão se encontrar. Por exemplo, Jimmy é filho de Sylvia e Paul compra sua heroína de Adrian; já o único amigo norte-americano do cientista alemão é Owen (Bob Brady), professor de teatro que calha de ser ex-amante de Margaret!!!

Mas o que, afinal, torna LIQUID SKY um filme tão único e diferente? Ufa, isso vai ser cansativo...


Para começo de conversa, esta produção independente de apenas 500 mil dólares foi dirigida por um emigrante soviético, Slava Tsukerman. Em plena Guerra Fria entre URSS e EUA, Slava foi o primeiro russo a escrever, produzir e dirigir um longa-metragem nos Estados Unidos, com uma equipe formada por mais três soviéticos: sua esposa Nina V. Kerova, co-produtora e co-roteirista (também faz uma ponta como designer); o diretor de fotografia Yuri Neyman e o operador de câmera Oleg Chichilnitsky.

Após uma bem-sucedida carreira como diretor de programas de TV e comerciais na extinta União Soviética, Slava abandonou o país e o regime comunista em 1972 e foi viver em Israel; quatro anos depois, em 1976, mudou-se para Nova York, onde começou a preparar um roteiro de ficção científica, que eventualmente transformou-se em LIQUID SKY exatos dez anos depois de sua saída da URSS.


Fica difícil acreditar que atrás da câmera está um cara que passou 33 anos da sua vida em pleno Regime Comunista quando o espectador constata a maneira bastante particular com que o filme retrata um universo e um comportamento tipicamente norte-americanos - e também suas gírias e a cultura daquele momento.

Talvez a responsável por essa mágica seja a atriz Anne Carlisle, que também assina como terceira roteirista e teria ajudado na criação do universo new wave de LIQUID SKY - em entrevista da época, ela revela que Margaret é uma personagem auto-biográfica.

Anne também era uma musa new wave no começo da década de 80, e usava seu visual andrógino para ter relações com homens e mulheres, como Margaret faz no filme. Personagem e atriz também vieram de uma cidade pequena e careta, e despirocaram ao mergulhar no universo cultural "alternativo" da cidade grande.


Tentando explicar como o filme ficou do jeito que é, o diretor Slava saiu-se com uma explicação mirabolante numa entrevista daquela época: "O filme foi construído como uma combinação de mitos contemporâneos - discos voadores, cientistas alemães, invasores do espaço, sexo, violência, drogas. Desde os tempos de Hoffmann, as fábulas são construídas com uma combinação de mitos contemporâneos. LIQUID SKY é uma anti-fábula, e Margaret uma anti-Cinderela. Seu príncipe encantado era um advogado com quem poderia viver feliz para sempre na sua cidade-natal, mas que não lhe interessa. No final, seu príncipe vem de outro planeta".

Não sei se a descrição do diretor faz muita justiça ao resultado final do filme. O próprio resumo da trama não dá a menor pista do que realmente é LIQUID SKY, para quem nunca assistiu.


Eu lembro de ter lido pela primeira vez sobre ele no velho Guia de Vídeos Nova Cultural, no final dos anos 80, quando ainda era moleque. Nunca encontrei a fita do filme (uma das tantas raridades do nosso mercado de VHS), e só fui vê-lo há alguns anos, já adulto. Foi um verdadeiro choque, porque nesses quase 25 anos entre "querendo ver" e "finalmente ver", eu imaginei umas 20 formas diferentes de como LIQUID SKY seria, quando na verdade ele é o oposto de todas elas!

Embora trate de alienígenas e discos voadores, o cult movie de Slava está mais para o climão de "Blade Runner", também de 1982, do que para dois outros filmes sobre alienígenas feitos no mesmo ano, "ET - O Extraterrestre" e "O Enigma do Outro Mundo".


Em comum com o clássico de Ridley Scott, LIQUID SKY também traz uma metrópole anos 80 com cara de futurista, noturna e repleta de neon; ao contrário de "Blade Runner", porém, LIQUID SKY não é "dark", mas sim exageradamente colorido em roupas, cenários, maquiagens e cabelos.

A verdade é que a obra vale menos pela trama do alienígena (que fica em segundo, até terceiro plano) e mais pelo recorte sócio-cultural. Ele é muito mais um "drug movie", com seus personagens consumindo heroína e cocaína tão normalmente quanto bebem um copo d'água; e é ainda mais um painel do cenário cultural e comportamental daquela década.


Eu até entendo quando alguém me diz que odiou LIQUID SKY, porque seu visual e formato narrativo são muito esquisitos mesmo nos dias de hoje, quando o espectador já está acostumado até com filmes narrados fora da ordem cronológica ou de trás para frente.

A montagem de Sharyn L. Ross e do diretor Slava é algo difícil de digerir na primeira vez em que se assiste, e eu confesso que me senti perdido em alguns momentos - uma reassistida posterior deixou a narrativa mais clara. Acontece que eles ficam intercalando pedaços de cenas diferentes antes que uma ou outra termine.


Vou dar um exemplo: temos dois grupos de personagens conversando em lugares diferentes; ao invés de terminar o diálogo entre um grupo para passar ao outro, Sharyn e Slava invadem um diálogo com pedaços do outro.

Assim, um grupo de personagens está conversando e o filme corta para o outro grupo conversando, depois volta para o primeiro na mesma conversa, depois volta para o segundo, e assim sucessivamente, de maneira que o espectador nunca sabe se uma cena realmente terminou ou se o diretor vai voltar a ela em alguns minutos. Até mesmo o estupro de uma das personagens foi editado em paralelo com takes do cientista alemão chegando nos Estados Unidos, algo sem nenhuma relação com o crime em si!


Uma bela maneira de testemunhar essa incômoda montagem paralela é assistir os cinco minutos iniciais no vídeo abaixo - até porque este é um belo teste para você saber se vai aguentar ver o filme inteiro ou não, pois o resto dele é todo nessa mesma pegada.

Repare como a cena dentro do apartamento de Adrian e Margaret corta de repente para um night club, mas depois volta para o apartamento, e a música num lugar e em outro é completamente diferente - a impressão de "corte seco" chega a gerar uma sensação de estranhamento e incômodo no espectador!

Cena inicial de LIQUID SKY



Um outro elemento "amar ou odiar" é a trilha sonora de Brenda I. Hutchinson, Clive Smith e, mais uma vez, Slava Tsukerman (que, pelo jeito, estava realmente determinado a fazer um "filme de autor", participando de todas as etapas do processo).

Ao invés de usar a música punk ou new wave que se ouvia naquele momento, o trio optou por uma estridente e repetitiva, porém impressionante, trilha eletrônica composta com sintetizador (incluindo até versões para composições barrocas de Carl Orff e Heinrich!). A coisa é tão doida que já ouvi e li comentários tanto idolatrando quanto abominando a música - que eu, em particular, acho estranhamente hipnotizante. Quer baixar a trilha para julgar por si mesmo? Então clique aqui!


LIQUID SKY transformou-se em febre já na época do seu lançamento. Entre 1982 e 84, você não era um sujeito descolado se não tivesse visto pelo menos uma vez. Por isso, a pequena produção de 500 mil dólares ficou por até três anos passando direto em alguns cinemas dos Estados Unidos, além de ganhar prêmios em vários festivais de cinema fantástico.

Ironicamente, se LIQUID SKY tornou-se um filme cultuado até hoje, a carreira dos seus envolvidos não teve muito futuro. Saudado como grande promessa na época, o russo Slava não fez mais nada pelas próximas duas décadas. Ele alega que passou esse tempo todo tentando tirar do papel um ambicioso roteiro de ficção científica de sua própria autoria - David Cronenberg seria um dos interessados em dirigir -, mas nunca conseguiu encontrar um produtor para bancá-lo. Slava só voltou a dirigir em 2000, e desde então só fez dois filmes e um documentário. O último deles é "Perestroika", de 2009. Nenhum dos trabalhos posteriores teve a mesma repercussão do seu filme de estréia nos EUA.


O mesmo aconteceu com a estrela e "musa new wave" Anne Carlisle. Ela chegou a aparecer na Playboy em 1984 sob a manchete "Cult Queen", e, mesmo que ela mostre os peitos e a perereca nas fotos (coisa que não faz no filme), o ensaio apenas comprova aquela esquisita beleza andrógina que a moça já tinha exibido em LIQUID SKY.

Anne apareceu "mais normal" em "Inocência Fatal", de Larry Cohen, e fez pequenos papéis em "Procura-se Susan Desesperadamente" e "Crocodilo Dundee". Quando o new wave saiu da moda, a moça também sumiu do mapa. Seu último trabalho no cinema é de 1990, e em 1987 ela assinou uma novelização do roteiro de LIQUID SKY, hoje praticamente impossível de achar.


Os outros atores também despencaram direto para a obscuridade, mas um caso curioso é o de Paula E. Sheppard (a traficante Adrian), uma jovem e talentosa atriz que já havia roubado a cena seis anos antes interpretando a pequena irmã de Brooke Shields no horror "Comunhão". Pois a moça literalmente desapareceu depois desse seu segundo e último filme, e um fã chegou a criar uma home page sobre a curta carreira da atriz, porém sem conseguir descobrir maiores informações do seu paradeiro atual.

Ok, concordamos que LIQUID SKY é um filme esquisito. Mas podemos dizer também que está à frente do seu tempo? Considerando que os figurinos e maquiagens escalafobéticas usados pelos personagens aparecem, hoje, como elementos futurísticos nos clipes da Lady Gaga, talvez Slava e sua trupe estivessem mesmo uns 30 anos adiantados!


O filme também ficou tão marcado na cultura popular que podemos perceber sua influência em diversas outras produções, ainda que involuntariamente: em "O Milagre Veio do Espaço", produzido por Steven Spielberg, a nave dos visitantes alienígenas que pousa num velho edifício é tão pequena quanto a do extraterrestre de LIQUID SKY; já a aventura "O Grande Anjo Negro" mostra Dolph Lundgren caçando um alien que mata humanos injetando-lhes heroína para alimentar-se de uma substância produzida pela droga nos seus cérebros!

Bem, eu já perdi a conta de quantas vezes usei as expressões "estranho", "maluco" e "bizarro" nesta longa resenha, mas não consigo encontrar outra forma de descrever LIQUID SKY sem usar essas palavras. E talvez aí resida o grande charme desse cult movie por excelência: ele me lembra a clássica revista em quadrinhos Heavy Metal, cujas histórias chamavam a atenção mais pelo visual, pela arte e pela doideira do que propriamente pelas tramas narradas.


É por isso que, ame ou odeie no final, ver LIQUID SKY pela primeira vez, sem saber exatamente o que vem pela frente, é um verdadeiro choque para o espectador. Mas, ame ou odeie, também é impossível ficar indiferente.

Portanto, minha dica para quem ainda não viu é: experimente. Afinal, este é aquele tipo de filme doido e único que você encontra poucas vezes durante a sua vida de cinéfilo - e, a julgar pela pasteurização das produções atuais, vai encontrar cada vez menos. Quem não gostou vai continuar não gostando, mas aqui eu não estou tentando converter ninguém.

Uma coisa, porém, é inegável: nesses tempos de blockbusters bilionários desprovidos de alma, originalidade e talento, em que naves alienígenas cada vez maiores e mais destrutivas arrasam a Terra em cenas típicas de videogame, dá a maior saudade do disco voador em miniatura daquele ET junkie de LIQUID SKY...

Trailer de LIQUID SKY



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Liquid Sky (1982, EUA)
Direção: Slava Tsukerman
Elenco: Anne Carlisle, Paula E. Sheppard, Susan Doukas,
Otto von Wernherr, Bob Brady, Elaine C. Grove, Stanley
Knapp, Jack Adalist e Nina V. Kerova.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

ASSASSINO A PREÇO FIXO (1972)


Usualmente, mecânico é aquele cara que você chama sempre que o seu carro não sai da garagem, te deixa na mão em algum lugar ou apresenta aquele barulho estranho e irritante. Mas, na gíria da bandidagem dos Estados Unidos, um "mechanic" também é um matador profissional que age sempre sozinho e vende os serviços a quem pagar mais.

É por isso que ASSASSINO A PREÇO FIXO, chamado "The Mechanic" no original, não traz Charles Bronson todo sujo de graxa e trabalhando numa oficina rodeado de pôsteres de mulher pelada pelas paredes. Pelo contrário, as "ferramentas" do mecânico Arthur Bishop (o personagem de Bronson) são bem diferentes e letais. Citando a frase no cartaz do filme: "Ele tem mais de uma dezena de maneiras de matar, e todas elas funcionam".


Embora nenhuma nota fiscal com o valor dos "serviços" do mecânico Bishop seja apresentada para sabermos se ele cobra um preço fixo ou não, foi com este título songo-mongo em português que os brasileiros receberam este belo filme de ação produzido em 1972, uma das primeiras produções norte-americanas dirigidas pelo inglês Michael Winner, que pavimentava sua carreira rumo a filmes mais ousados e bem-sucedidos.

Winner não foi a primeira opção para ASSASSINO A PREÇO FIXO, porém. O diretor (hoje) cult Monte Hellman estava cotado para comandar o filme, e chegou a trabalhar na história junto com o roteirista Lewis John Carlino, que por sua vez escreveu o roteiro baseado num livro de sua autoria que não tinha conseguido publicar. Consta que atores como Cliff Robertson e George C. Scott (para o papel que ficou com Bronson) e um jovem Jeff Bridges (para o personagem depois encarnado por Jan-Michael Vincent) envolveram-se de alguma forma com o projeto em seus primeiros estágios.


Quando o roteiro trocou de estúdio e foi parar nas mãos da United Artists, Hellman foi substituído por Michael Winner e o diretor inglês chamou seu amigo Charles Bronson para estrelar. Este é o segundo de seis filmes que fizeram juntos, sendo que o primeiro foi "Renegado Impiedoso", no ano anterior.

No fim, Bronson revelou-se uma escolha acertada para o papel, já que ele usa seu olhar frio e hipnotizante e seu semblante inexpressivo a serviço de um personagem digno dessas qualidades de "representação". Porque Arthur Bishop é um matador extremamente sofisticado e profissional, mas ao mesmo tempo solitário, melancólico e silencioso, e o rosto sem expressão do astro lhe dá um tom acentuadamente triste.


Para Bishop, a morte não é só uma fonte de renda, mas uma verdadeira arte. Ele trabalha exclusivamente para uma organização criminosa (que, suspeita-se, seja a Máfia), da qual seu pai foi conselheiro; goza, portanto, de uma posição de respeito diante dos empregadores. Vive sozinho numa bela casa - que tem até um quadro original de Bosch na parede! -, onde passa os dias em silêncio, reflexivo e solitário, estudando minuciosamente os detalhes para a realização de cada serviço.

A rotina do mecânico funciona mais ou menos assim: seus contratantes enviam um arquivo completo do alvo (incluindo até relatórios médicos!), que ele decora lentamente enquanto ouve música clássica, fuma cachimbo e toma vinhos finos; depois, Bishop segue a vítima durante dias e até semanas, para descobrir tudo sobre os seus hábitos e horários. Só depois de tudo isso é que o assassino age e despacha seu alvo.


"Não seria mais fácil dar logo um tiro na cabeça?", pode questionar o nobre leitor do FILMES PARA DOIDOS. Claro que seria. Mas, como eu escrevi ali em cima, Arthur Bishop encara o "negócio" do assassinato como uma arte, e não como um serviço sujo qualquer. E sua filosofia é executar trabalhos limpos que pareçam acidentes, onde a presença de um mecânico jamais possa ser identificada.

Esse preciosismo do personagem me lembrou uma cena incrível da comédia "Matador em Conflito", que traz John Cusack no papel de um assassino de aluguel em crise. Num de seus trabalhos, ele precisa pacientemente escorrer gotículas de veneno por um barbante suspenso sobre a boca aberta de um alvo que dorme tranquilamente!


E é mais ou menos dessa maneira que Arthur Bishop é apresentado ao espectador na cena inicial de ASSASSINO A PREÇO FIXO, uma brilhante sequência de 15 minutos sem nenhum diálogo, o que apenas enfatiza a solidão e o jeitão silencioso do personagem. Durante esses 15 minutos, Bishop segue pacientemente uma vítima e depois põe em prática uma sequência extremamente complexa de detalhes que resultarão numa inacreditável "morte acidental". Um trabalho perfeito que deve valer cada centavo do pagamento do mecânico - seja preço fixo ou não!

Apesar da vida reclusa, Bishop tem um amigo de longa data, Harry McKenna (interpretado por Keenan Wynn). Certo dia, ele pede que o mecânico converse com os chefes da organização para limpar seu nome, já que McKenna anda sendo ameaçado por eles. No mesmo dia, Bishop recebe um pacote com as fotos de sua nova vítima: o próprio Harry!


Aí percebemos mais uma faceta do nosso mecânico: seu profissionalismo exige que ele seja completamente desprovido de sentimentos, e é claro que ele não vai deixar que as relações de amizade atrapalhem a realização do serviço. Ele então despacha o pobre Harry, que só no fim da vida descobre que seu velho amigo será também o seu algoz.

Durante o funeral do falecido, Bishop conhece Steve McKenna (Jan-Michael Vincent, vergonhosamente canastrão), o problemático filho adolescente do morto, que parece até estar contente com o destino do pai, já que herdou a mansão e a fortuna do velho.


Aos poucos, um vai se aproximando do outro: Steve vê em Bishop a figura paterna que nunca teve, enquanto o mecânico enxerga em Steve a sua própria juventude, pois ele também é frio, calculista e não tem medo da morte. Quando ambos presenciam a tentativa de suicídio de uma ex-namorada de Steve, que nem ao menos tenta impedi-la enquanto ela corta os pulsos, Bishop tem a confirmação de que o rapaz pode virar um bom mecânico e, quem sabe, ser o herdeiro que ele nunca teve.

Steve aceita a proposta e passa por um rápido treinamento antes de executar sua primeira missão. Desenvolve-se uma relação estilo Batman & Robin, incluindo o respectivo ar homossexual (já falaremos sobre isso). Mas a organização que comanda Bishop fica enfurecida, pois não concorda com a associação do matador que sempre agiu sozinho.


Logo, nosso "herói" começa a desconfiar que é o próximo alvo dos próprios empregadores. E, pior, que o seu jovem ajudante é o mecânico contratado para eliminá-lo, exatamente como ele fez com o seu pai! Justiça poética?

A partir dessa relação ambígua entre mestre e pupilo que não podem confiar 100% um no outro, ASSASSINO A PREÇO FIXO desenvolve-se menos como um filme de ação e mais como um thriller de suspense, em que o medo da morte é frequente e ninguém sabe em quem confiar. O crítico norte-americano Roger Ebert definiu a trama de maneira brilhante: "A verdadeira ação do filme é psicológica, com duas cobras circulando uma à outra".


Apesar de optar por um ritmo mais lento e dialogado, e por uma construção pausada da relação entre os dois personagens, ASSASSINO A PREÇO FIXO também traz belas sequências de ação que são bem a cara do início dos anos 70: tiroteios, explosões e perseguições de carros e motos são filmadas de maneira fluida, sem a câmera sacolejante e a edição videoclipeira que são as marcas registradas da ação desse nosso novo século.

A única coisa que realmente me incomoda no filme é Jan-Michael Vincent no papel de Steve. Além de ser um péssimo ator (que depois seria relegado a papéis menores em filmes classe Z), ele compõe o jovem mecânico como um sujeito irritante, pedante e mimado, por isso nunca se justifica a adoração que Bishop tem por ele e nem o porquê de ficar obcecado em treiná-lo como seu parceiro - além, é claro, de já estar velho e querer um herdeiro do seu legado.


Se Steve é um pentelho de marca maior, Bishop, por outro lado, é um personagem riquíssimo - talvez um dos melhores de Bronson. Como um samurai, e ao contrário do seu jovem parceiro, o mecânico veterano vive num mundo guiado por um rígido código de honra, que não permite traições ou falhas; enfim, aquele estereótipo do "bandido honrado" que é mais comum no cinema oriental. Para ele, "assassinato é apenas matar sem licença. Policiais matam, soldados matam".

Para ilustrar a vida solitária que Bishop leva, ASSASSINO A PREÇO FIXO tem uma cena que é simplesmente genial: o encontro do matador com uma garota que parece lhe amar perdidamente. Ela escreveu uma carta de amor que lê apaixonada, e os dois têm uma noite de prazer. Parece um amor intenso, mas Bishop depois levanta da cama e pergunta "Quanto lhe devo dessa vez?", e a garota dá o preço justificando: "É mais caro porque deu um trabalhão escrever aquela carta". Ou seja, vivendo uma vida reclusa, o mecânico precisa pagar para uma prostituta parecer apaixonada por ele e inclusive lhe escrever cartas de amor! Ironicamente, a prostituta é interpretada por Jill Ireland, que foi esposa de Bronson na vida real.


Claro que o relacionamento "mecânico" (trocadilho intencional) com uma prostituta também pode ser uma evidência da falta de jeito de Bishop com o sexo oposto, o que apenas confirmaria aquele tom homossexual que eu citei lá em cima - talvez o caso entre o mestre e o pupilo não seja apenas profissional, afinal de contas...

No filme essa suspeita fica apenas no ar, com o amor platônico entre Bishop e Steve sendo sugerido bem de leve numa história com raríssimas personagens femininas. Mas essa não é nem de longe a tônica da aventura. Originalmente, entretanto, a relação dos dois mecânicos seria explicitamente gay, algo que estava no roteiro de Lewis John Carlino.


Numa entrevista, o roteirista confirmou isso e ainda falou que ASSASSINO A PREÇO FIXO é uma das grandes decepções da sua vida, porque os produtores pediram que ele retirasse (ou amenizasse, se preferirem) o tom homossexual dos personagens para transformar o roteiro em uma típica aventura com dois machões heterossexuais bons de tiro - ou um "pseudo-James Bond", nas palavras do próprio Carlino.

Gay ou não, ASSASSINO A PREÇO FIXO é um filme bastante eficiente, mesclando suspense e ação com bastante profissionalismo, num clima bem diferente daquelas aventuras alopradas que Bronson faria, nos anos 80, para a Cannon Films. Vale lembrar que, na época em que interpretou Arthur Bishop, ele era um astro mais popular na Europa do que no seu país de origem. Um dos primeiros sucessos de bilheteria do ator nos Estados Unidos foi justamente seu trabalho posterior com Winner, "Desejo de Matar", em 1974.


Recentemente, em 2011, as "aventuras" do mecânico Arthur Bishop ganharam um upgrade com uma refilmagem que, no Brasil, ganhou o mesmo título em português da aventura de 1972. Comparar os dois "The Mechanic" é como chutar cachorro morto, mas também é uma boa maneira de comprovar a imbecilização do cinema de ação norte-americano moderno.

Enquanto o original tinha a direção refinada de Winner e um personagem vivido de maneira fria e comedida por Bronson, o "Assassino a Preço Fixo" do século 21 tem um cabeça-de-bagre como diretor (Simon West, de "Tomb Raider" e do novo "Os Mercenários 2") e, no papel de mecânico, o inglês Jason Statham, que está mais para novo Chuck Norris ou Steven Seagal do que para novo Charles Bronson, e esbanja "brucutuzice" no papel que o outro interpretou com tanta "finésse", correndo, atirando, surrando e explodindo coisas sempre em alta velocidade, como se estivesse acelerado pelo efeito de anfetaminas.


Um espaço de tempo de 40 anos separa os dois filmes e o roteiro é praticamente o mesmo, mas é incrível como a refilmagem é covarde e parece ter sido produzida para débeis-mentais.

Primeiramente, porque os alvos do mecânico Statham são pessoas malvadas e muito piores do que ele - e, portanto, merecem morrer, tornando o mecânico muito mais "heróico" do que o profissional que matava por dinheiro no filme de Winner. Segundo porque algumas mudanças no roteiro subvertem praticamente toda a história do original, que aqui vira uma simples e rasteira trama de vingança, onde não falta nem mesmo o momento (absurdo, por sinal) em que Statham descobre que foi manipulado pela organização em que trabalhava e parte para dar o troco nos patrões (algo que jamais acontecia no filme de 1972, muito pelo contrário!).


Mas o mais cretino e bunda-mole do remake é o fato de que eles alteram o corajoso e cínico final-surpresa do ASSASSINO A PREÇO FIXO original, e que eu não vou contar aqui, mas é um daqueles desfechos que deixam o espectador com um sorriso no rosto mesmo quando o filme é revisto pela décima vez. Sendo a refilmagem uma aventura anabolizada feita para um público imbecil, o final-surpresa ganha outros contornos e passa longe daquele encenado 40 anos atrás.

Finalmente, há uma ironia brutal na comparação entre os dois filmes: no original, o Arthur Bishop de Winner odiava "agir como cowboy", ou seja, matar o alvo da forma mais rápida possível, sem muito planejamento ou frescura. Lembre-se que o velho mecânico passava dias estudando suas vítimas e a melhor forma de fazer o serviço.


Pois o Arthur Bishop do século 21, claro, "age como cowboy" o tempo todo, explodindo prédios, carros e pessoas num festival de grosseria que insulta aquele trabalho limpo e refinado demonstrado por Bronson lá em 1972. E naqueles 15 minutos iniciais de silêncio do filme de Winner, o mecânico de Statham já matou ou arrebentou uns vinte inimigos!

Mas o que mais podemos esperar desse "novo cinema de ação" que conseguiu transformar até os outrora refinados James Bond e Batman em brucutus que "agem como cowboys" e explodem tudo antes para perguntar depois?

PS: Reparem na picaretagem do trailer abaixo, que tenta vender o personagem de Charles Bronson como um "herói" que extermina o crime organizado!

Trailer de ASSASSINO A PREÇO FIXO



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The Mechanic (1972, EUA)
Direção: Michael Winner
Elenco: Charles Bronson, Jan-Michael Vincent, Keenan
Wynn, Jill Ireland, Linda Ridgeway, James Davidson,
Frank DeKova, Lindsay Crosby e Tak Kubota.